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domingo, 6 de novembro de 2016

A delação da Odebrecht poderá virar um tsunami político ...

Para lá do fim do mundo - 

FERNANDO GABEIRA

O Globo - 06/11

Os que usaram caixa dois consideram a prática tão corriqueira que querem uma espécie de anistia


Saiu a delação de Marcelo Odebrecht e seus 75 executivos. Trezentos novos casos de corrupção devem inundar o noticiário. Os políticos a chamam de delação do fim do mundo. O próprio Sérgio Moro teria comentado: espero que o Brasil sobreviva. Sobreviverá. Olho Lisboa da janela do avião. Em 1775 houve um terremoto, seguido de uma tsunami e um grande incêndio. A cidade lá embaixo está linda e ensolarada. Não será nada fácil. Como não deve ter sido para os contemporâneos do Marquês de Pombal enfrentar tantas calamidades em série. Não é possível começar do zero, vamos ser governados por mortos e feridos. Um cenário que parece ter saído daquela série americana “Black mirror”, cheia de histórias que projetam um sinistro futuro a partir das tendências do presente. Teremos enfermarias de caixa dois, propinas, achaques, chantagens, formação de quadrilha e lavagem do dinheiro.

Poderemos usar os mortos recolhendo todos os seus posts no Facebook, discursos antigos, confissões, com essa base de dados simularemos suas respostas à nova situação. Os que usaram caixa dois consideram a prática tão normal e corriqueira que inclusive querem uma alta da enfermaria, uma espécie de anistia. Afinal, dizem eles, caixa dois existe desde Cabral (Pedro Álvares). Se todos forem punidos, será preciso reescrever a História do Brasil.

É preciso definir um marco no tempo: as próximas eleições, por exemplo. Quem usou recursos lícitos e não declarou, está livre. A partir de 2018, tudo será diferente.

Vai ser uma confusão. O caixa dois, no caso, seria apenas um dinheiro de origem lícita, não contabilizado na Justiça Eleitoral. Ao contrário da propina, grana em troca de algum favor oficial. Tudo isso ainda está na fase de roteiro, conversas de bastidores. O Ministro da Justiça disse que a Lava-Jato iria até onde os fatos a levassem.

O melhor, portanto, é esperar todos os fatos e ver quem, realmente, estará em que enfermaria, quem será ressuscitado para uma breve vida virtual, quem irá para as nuvens do céu de Curitiba.
Ninguém vai morrer calado. O governo, por exemplo, move-se para salvar Renan Calheiros no Supremo. O próprio PSDB que se saiu bem nas eleições vai passar por momentos difíceis. A empreiteiras estão envolvidas em todos os governos do país, elas eram o verdadeiro ministério do planejamento; as obras, assim como as propinas, brotavam de suas planilhas.

Cada estrada, cada ponte, cada viaduto, cada estádio de futebol, onde quer nossos olhos repousem, com ou sem lente de contato, o dinheiro escorre pelos canais do superfaturamento. Cada edifício que cai, cai vergado pelo peso da grana espúria. Essa é nossa história. Não é preciso que os fatos nos levem a ela. A Lava-Jato é apenas um inventário para efeito dos ritos judiciais. No terremoto que abalou Lisboa, seguido de ondas que varreram suas áreas baixas, e um grande incêndio que lambeu seus prédios, foi preciso decisão rápida.

Pombal era um homem decidido, mandou jogar os corpos no mar, articulou engenheiros e construtores, enfim ganhou tempo em vez de apenas se lamentar. Num desastre de natureza política, o caminho da reconstrução não é tão linear. Depois das eleições, o mar está tinto de algas vermelhas. Não foi preciso prender todo mundo para que os eleitores compreendessem. Da mesma maneira, não será com anistia que os políticos ganharão um passaporte para o futuro. Basta seguir os fatos, conhecê-los de uma forma responsável. A delação do fim do mundo deveria ser homologada rapidamente e divulgada com todos os detalhes, não aos poucos, como se fosse uma ação entre amigos.

É preciso examinar a extensão do desastre para começar a reconstruir. Ou será que os escândalos semanais criaram uma espécie de dependência que ficará insatisfeita quando o trabalho essencial for apenas reformar um país devastado?


A hecatombe nos ameaça de todos os lados. Hillary Clinton diz que Trump levará o planeta a uma guerra nuclear. Melhor fazer logo o que tem de ser feito e ver o que há, realmente, para lá do fim do mundo. Keynes dizia que a longo prazo estaremos todos mortos. Isto é válido para pessoas. Países, com raríssimas exceções, sempre sobrevivem.


segunda-feira, 17 de outubro de 2016

"A esquerda que caiu não está preparada para essa nova fase. Ela não só acha que os salvadores da pátria merecem comida grátis. Ela acha que os defensores dos pobres podem encher a cueca de dólares."



domingo, outubro 16, 2016


Hora de usar a cabeça -

 FERNANDO GABEIRA

O Globo - 16/10

Ao som do tiroteio no morro Pavão-Pavãozinho, reflito sobre o momento político cujo ponto alto na semana foi a votação da PEC que estabelece um teto para os gastos do estado. Sempre houve tiroteio por aqui. Na primeira viagem que fiz ao Haiti ouvi tiros à noite. Pensei: estão fazendo tudo para me sentir em casa. E dormi em paz. Mas o tiroteio dessa semana parece marcar o fim de uma época e o começo de tempos bem mais difíceis. A ruína do projeto do PMDB no Rio acabou levando consigo algo que o sustentava, eleitoralmente: a política de segurança.

Tempos difíceis pela frente. A decisão de criar um teto para os gastos é correta. No entanto, há argumentos da oposição que merecem um exame. Acompanhei os debates e concordo com a tese de que a demanda com saúde e educação deve aumentar nos próximos anos. Como encará-las com recursos decrescentes?

Alguns setores da esquerda propõem questionar a dívida pública. Acredito que isso apenas vai nos levar a uma crise maior. Todos os caminhos da esquerda radical nos farão cruzar a fronteira com a Venezuela e nos fundir com o fracasso bolivariano.

O acerto de determinar um teto pode ser problemático adiante, se o governo se contentar com isso. Não me refiro apenas à reforma da previdência como um rumo de continuidade. Não teremos recursos para atender às demandas. O que fazer? O governo afirma que o dinheiro virá com o crescimento econômico, mais investimento, empregos e, consequentemente, mais arrecadação. Isso leva algum tempo. No meu entender, em vez de simplesmente sentir-se vitorioso com a votação do teto, o governo deveria preparar um choque de gestão. É a única maneira de fazer com que a escassez não torne mais difícil a vida das pessoas vulneráveis.

Por onde começar? Nem todo o aparato do governo é irremediavelmente incompetente. Existem algumas ilhas de excelência que deveriam ser estudadas, não para que sejam universalizadas artificialmente, mas como fonte de inspiração. Eu faria algumas perguntas simples. Por que a rede Sarah de hospitais funciona? O que é possível aprender com ela e aplicar em outros setores da saúde? Por que funciona a distribuição de água durante a longa seca no Nordeste, organizada pelo Exército Brasileiro? O que é possível aprender da experiência?

O choque da gestão é tão ou mais importante do que acabar com a roubalheira. O cenário que o governo nos apresenta deve ser avaliado com calma para que não surjam falsas expectativas. O governo quer fazer crescer a economia para voltar a gastar. E possivelmente a roubar, porque uma grande parte dele esteve associada ao PT no assalto aos cofres públicos. Portanto a questão é essa: como voltar a crescer de forma sustentável, em termos econômicos, e, ao mesmo tempo, evitar a roubalheira?

A corrupção está sendo combatida pela Lava-Jato e outras operações. As medidas para combatê-las, com o aval de mais de dois milhões de eleitores, estão na mesa dos parlamentares para serem transformadas em lei. Mas o problema da eficácia passa ao largo das considerações políticas. O próprio Congresso é um exemplo de desperdício. Inúmeras vezes defendi a tese de que a redução de mais da metade dos gastos não influenciaria o resultado do trabalho. Sei que pode parecer mesquinho o que vou dizer. Mas o próprio processo de articulação política para reduzir os gastos foi dispendioso. O presidente ofereceu almoço e jantar para quase 300 parlamentares. Ninguém pensou em pagar a própria comida porque, afinal, estavam todos salvando a pátria. É esse raciocínio que dificulta a reforma. O trabalho de todos é importante, poucos se dispõem a buscar uma racionalidade que os tire da zona de conforto.

Os brasileiros, sobretudo os mais pobres, serão de alguma forma tocados pelas medidas de austeridade. Não creio que apenas o crescimento econômico resolverá, magicamente, os problemas acumulados. Será preciso domar o monstro irracional que se tornou o estado brasileiro. Há quem ache que defender os mais vulneráveis se resume a pedir mais dinheiro. De um modo geral, são as pessoas cujos salários e benefícios dependem de mais verba. O desafio agora é gastar bem, fazer com que cada centavo tenha o maior efeito benéfico na vida das pessoas.
A esquerda que caiu não está preparada para essa nova fase. Ela não só acha que os salvadores da pátria merecem comida grátis. Ela acha que os defensores dos pobres podem encher a cueca de dólares. Muito se fala do buraco em que a esquerda se meteu. Acabaram os partidos? Não importa. As ideias de que as pessoas mais vulneráveis têm de ser consideradas não desaparecem. Acabam ressurgindo no próprio bloco dominante.

Não foi apenas a corrupção que nos levou ao fundo do poço. Foram também o populismo de esquerda e a formidável incompetência brasileira. Suas características mais patéticas se expressam na engrenagem do estado. Não sei até que ponto o próprio mundo das empresas foi contaminado e isso virou um traço nacional.

A racionalidade não se obtém em jantares e almoços no palácio. Tem de ser um pão nosso de cada dia.

domingo, 25 de setembro de 2016

... A longa agonia do sistema político brasileiro" ... / Fernando Gabeira

domingo, setembro 25, 2016

Psicodramas - 

FERNANDO GABEIRA

O Globo - 25/09
Grão Mogol, Minas — De novo na estrada, e o intenso trabalho ao ar livre é o antídoto para a tristeza de ver não só o momento econômico, mas também a longa agonia do sistema político brasileiro. Não são animadoras as notícias que vêm de esquerda, direita e centro. Em toda parte, os parâmetros políticos são subvertidos. Lula, por exemplo, fez um pronunciamento para anunciar que era candidato. Comparou-se a Jesus Cristo e insultou numa só frase todos os funcionários públicos concursados do Brasil.

Os admiradores fazem vista grossa. Os livros do século passado definem a classe operária como a eleita para transformar a História. Eles querem um presidente operário, ainda que delirando. Lula disse coisas que contrariam o mais elementar senso político. A única saída é colocá-lo à força no modelo marxista e, sobretudo, não levar em conta o que diz. No fundo é adotar a mesma tática que adotei quando disse que Lula tinha habeas língua. Buscar um sentido é perder tempo.

Num outro espaço, escrevi sobre o psicodrama da denúncia, parecido com aquele da condução coercitiva. As críticas se concentraram na coletiva da Lava-Jato e no PowerPoint. A denúncia tem em torno de 150 páginas. Sérgio Moro não ia aceitá-la ou rejeitá-la apenas vendo uma entrevista e o PowerPoint. É obrigado a ler atentamente. E aceitou. A denúncia foi apenas o segundo ato. O terceiro será a sentença, após um trabalho específico de coleta de dados e exame dos argumentos da defesa.

Mas, se o panorama é desolador à esquerda, o que dizer do restante do espectro? Rodrigo Maia, um jovem do DEM, foi aconselhado a não usar casa oficial ou avião da FAB. Maia recusou. Nesse último caso, então, o avião da FAB só para transportá-lo é um disparate econômico e ambiental. Acomodado no assento oficial de um avião vazio, sente-se, possivelmente, projetando mais poder. Mas está em franco conflito com a situação do país, inclusive com nosso compromisso internacional de reduzir emissões.

Um grupo de deputados tentou aprovar às pressas um projeto anistiando o caixa dois. Descobertos, pareciam um grupo de garotos travessos. De quem é o projeto que já estava na mesa do presidente? Ninguém sabia. O projeto não tem autor. Sua inclusão na pauta também é um mistério.
Uma semana depois do maior criador de jabutis, Eduardo Cunha, ser cassado, eles inventam um outro jabuti, desta vez destinado a proteger os investigados na Lava-Jato.

Dizem que Renan estava ciente e Maia também. Renan está em luta aberta contra a Lava-Jato. Pena que a recíproca não seja verdadeira. Apesar de tantos inquéritos, não foi incomodado. O interessante é pensarem que daria certo. Vão se recolher e preparar um novo truque. Possivelmente tão patético quanto esse.

As pessoas que fazem campanha eleitoral hoje contam que estão comendo o pão que o diabo amassou. As ruas estão frias, no limite da hostilidade. A indiferença era prevista. O inquietante é imaginar que vencedores vão emergir desse processo eleitoral tão atípico.

No psicodrama da denúncia contra Lula, ouvi alguns jornalistas dizendo: o Planalto acha que os promotores exageraram. Mas quem no Planalto? Temer, Geddel, Padilha ou Moreira? Quem está com sua espingardinha atrás da janela querendo atirar na Lava-Jato? Houve gente que se expôs, de um lado e de outro, e a discussão sobre os caminhos da Justiça é saudável, embora inexista quando os acusados são pessoas anônimas.

Foram 115 as conduções coercitivas antes de Lula. E centenas de denúncias antes da dele.

De psicodrama em psicodrama, avança o conhecimento do que se passou no Brasil, e aproxima-se o julgamento dos acusados.
Ainda não sabemos tudo porque o governo Temer é opaco, por escolha ou inépcia. É preciso usar a Lei da Transparência para descobrir o que resta.

Os homens no Palácio do Planalto, Temer à frente, estão no governo por um acidente constitucional. São parte de um sistema político em agonia, sócios menores do governo petista.
O Planalto com seus palpites, Renan e os deputados querendo anistiar o caixa dois, Lula defendendo-se da denúncia — todos de alguma forma reagem ao processo da Lava-Jato, que precipitou a ruína do sistema político. Rodrigo Maia sentado na poltrona do avião da FAB: apenas uma das várias maneiras de se apegar ao passado.

Na ausência de um olhar para o futuro, para um sistema reformado, o Brasil dá uma sensação de exilar a própria sociedade que pede mudanças desde 2013.

De costas para a parede, protegendo-se da LavaJato, os políticos de Brasília não almejam do futuro nada mais do que escapar de seu passado.

domingo, 4 de setembro de 2016

Um governo cheio de raposas com armas de canetas

domingo, setembro 04, 2016

As raposas que nos governam -

 FERNANDO GABEIRA

O Globo - 04/09

Cheguei a Brasília no seu típico calor seco, sabendo que não haveria surpresas no resultado final. Dilma seria cassada. Restavam-me apenas as peripécias, essas sim imprevisíveis. Pela primeira vez, vi Renan Calheiros perder a calma no plenário. E olha que, ao microfone, já disse coisas bem pesadas para ele, e sua máxima reação foi suspender os trabalhos por algum tempo. Renan disse que o Senado parecia um hospício. Lembrou-me de Maura Lopes Cançado que escreveu o livro “Hospício é Deus”. E la colaborava com o suplemento literário do “JB”. Ficou internada por muito tempo. O livro mostra que o hospício, além de todos os seus horrores, era também um espaço de negociação. Renan ficou próximo da realidade ao reconhecer o lado maluco do plenário do Senado, assim como Maura contribuiu ao sugerir o lado parlamentar do hospício. O problema é o equilíbrio entre os dois. Há visões mais céticas, como a do filósofo inglês John Gray.

“De qualquer forma”, escreve ele, “apenas alguém milagrosamente inocente em relação à História poderia acreditar que a competição entre ideias possa resultar no triunfo da verdade. Certamente, as ideias competem umas com as outras, mas os vencedores são aqueles que têm o poder e a loucura humana ao seu lado”.

Renan disse também, ao microfone, que a burrice humana era infinita. Na verdade, repetia o final de um famosa frase de Albert Einstein, para quem o universo e a estupidez humana eram infinitos. Alguns cientistas ainda pesquisam se o universo é mesmo infinito. Mas a parte final da frase sobre a estupidez humana nunca foi contestada. Refletindo sobre isso em Brasília, no corre-corre do trabalho cotidiano, constatei que também a esperteza humana é infinita. Renan e a bancada do PMDB fatiaram a Constituição: condenaram Dilma por irresponsabilidade fiscal e mantiveram seus direitos políticos. Não me parece que fizeram isso por Dilma. No fundo, é também uma manobra defensiva, prevendo o próprio futuro. Quando Romero Jucá disse que era preciso estancar a Lava-Jato, não estava brincando. O objetivo da cúpula do PMDB é o de bloquear investigações e neutralizar o trabalho das instituições que combatem a corrupção no Brasil.

Nessa empreitada, contam com o deslumbramento de Temer, para quem um pedaço do mandato presidencial é um presente dos céus. E com a timidez dos tucanos, que temem romper uma aliança num momento de reconstrução. O sonho das raposas é continuar depenando o galinheiro. Se as pessoas não se derem conta, elas liquidam os avanços das instituições de controle e continuarão roubando o país até o último centavo. Se o quadro é tão ameaçador, não teria sido melhor manter o mandato do PT até 2018?

Acontece que são forças com objetivos diferentes. As raposas do PMDB querem apenas enriquecer em paz. O PT tinha um projeto hegemônico que passava pelo crescente controle do Parlamento, dos juízes e, também, se tudo desse certo, da própria imprensa. Com sua vasta experiência política, as raposas recebem as críticas, lamentando apenas que estamos sendo injustos com elas. O PT seguia arruinando o país mas recebia as críticas com uma agressiva tática de defesa. Questionar a corrupção oficial era coisa da elite, da burguesia, de gente loura de olhos azuis que não aceita que o filho da lavadeira estude Medicina nem que os pobres viajem ao seu lado nos aviões.

A mudança no discurso oficial é insidiosa, sedutora. Cúmplice de toda a política que arruinou o país, num misto de incompetência e corrupção, o PMDB se dispõe a conduzi-lo a um porto seguro.

O lugar para onde as raposas sonham em nos conduzir é um oásis ameno, onde possam continuar enriquecendo, posando, ao mesmo tempo, de estimados líderes nacionais.
Assim como setores da esquerda toleram a corrupção sob o argumento de que a vida do povo melhorou, os liberais tendem a olhá-la com complacência desde que se façam as reformas sonhadas pelo mercado. Num livro sobre a tolerância na idade moderna, Wendy Brown lembra aos estudiosos que ela é uma descendente da superação das sangrentas guerras que separaram política e religião. Modernamente, existe um espaço maior para o indivíduo, diante do Estado e da Igreja. Mas existe também um certo cansaço diante das tramas políticas, uma vontade de se concentrar apenas na sua própria vida. O novo governo traz um perigo de natureza diferente. Ele não quer transformar o país num paraíso bolivariano. Nem se meter na liberdade individual, classificando as pessoas como reacionárias, progressistas ou preconceituosas. Quando Renan disse que a estupidez humana era infinita, concordei com ele pela primeira vez. Se estivesse no plenário, apenas acrescentaria: a malandragem humana também. O país apenas se livrou de um tipo de exploração. Por falar em tortura, tema que Dilma trouxe à tona, não se pode esquecer que uma boa equipe é sempre dividida entre os bons e os maus torturadores. Uns mordem, outros sopram.

sábado, 27 de agosto de 2016

Depois das Olimpíadas, do impeachment de Dilma é hora de deixar de lado nosso espírito de cigarra..../ Fernando Gabeira

Resultado de imagem para foto da festa de encerramento dos jogos do Rio

Vivemos intensamente o nosso espírito de cigarra. Agora é hora de baixar o espírito da formiga

Fernando Gabeira: Depois da festa

Por: Augusto Nunes  
Publicado no Estadão
Critiquei a Olimpíada porque achava que fora decidida num período de crescimento econômico e acabou sendo realizada no auge de uma crise. No entanto, uma vez que a decisão era irreversível, o melhor seria desejar que os Jogos Olímpicos transcorressem sem grandes incidentes e as pessoas, satisfeitas, ganhassem mais energia para enfrentar os desafios que temos pela frente.
Creio que o sucesso do evento confirma as previsões daqueles que achavam que hospedar a Olimpíada era o máximo. Eu não achava isso. Apenas desejava o êxito, sobretudo neste momento histórico.
Mas os críticos que partiram de um mesmo patamar, acentuando problemas ambientais e de segurança, dificuldades econômicas, não ficaram de mãos vazias. Para começar, o próprio Comitê Olímpico Internacional (COI) reavaliou o sistema de escolha de cidades sede, reconhecendo que as Olimpíadas sobrecarregam a economia local e o meio ambiente.
A partir de agora, a tendência é realizar os jogos nas estruturas já existentes, respeitando o momento de austeridade e mudança de estilo de vida que a realidade impõe. O Brasil acabou, por vias tortas, contribuindo para as Olimpíadas, em escala global, com um legado de austeridade.
O saneamento básico ganhou nova dimensão quando apareceu na imprensa internacional como um fator negativo do País. E o governo se moveu, iniciando um processo de privatização ainda no curso dos próprios jogos.
A privatização do setor não significa uma saída mágica. Existem inúmeras cidades do mundo que realizam os serviços com recursos públicos.
O problema é que estamos muito atrasados e o Estado não pode responder à demanda. Nem a um bom socialista seria razoável pedir que espere uns dez anos para que o serviço não caia nas mãos da iniciativa privada.
Cruzada com a história da Operação Lava Jato, a trajetória do saneamento básico no Brasil pode viver, como outros aspectos da infraestrutura, uma importante mudança. Com tudo o que se conhece hoje sobre a relação das empreiteiras com os governos, é razoável duvidar se o País tem mesmo um planejamento ou apenas segue o ritmo de negócios lucrativos para empresários e políticos. Liberto dessa relação de dependência, o governo teria condições de pensar um planejamento de acordo com as necessidades reais do Brasil.
É apenas uma possibilidade, um legado da Lava Jato. O legado dos críticos da Olimpíada foi contribuir para que o tema entrasse na agenda. A repercussão internacional acabou enfatizando uma realidade que muitos consideram um dado da natureza. Agora despertam para essa lacuna na nossa trajetória.
Nem todos. Alguns comentários nas redes diziam que a prova de que a Baía Guanabara era limpa foi o mergulho dos atletas nas suas águas após a vitória.
Mas o ufanismo pode ser tratado à parte. Minhas dúvidas sobre ele é que é visto como um antídoto ao famoso complexo de vira-lata. Será mesmo?
Acabou a Olimpíada. Deve acabar oficialmente a longa passagem do PT pelo governo, deixando os antigos aliados em seu lugar. E também terminar a cinematográfica carreira política de Eduardo Cunha, que resultou em milhões de dólares nos bancos suíços.
Cunha passeava com a família pelos lugares mais caros do mundo e se elegia fazendo piedosos sermões religiosos numa rádio evangélica. Com os sermões e muita grana.
Não entendo por que governo e oposição não se unem para resolver esse caso o mais rápido possível, entregar Cunha a Sergio Moro e deixá-lo cuidar da tonelada de petições e recursos que escreverá na cadeia.
A política é feita muito de conflitos entre objetivos diferentes. Desprezar objetivos comuns apenas para manter os conflitos não é, a rigor, fazer política, mas, de uma certa forma, ser viciado em política.
Não há sentido de urgência para atender a uma demanda clara não só da sociedade, como da própria Justiça. Mesmo na remota data que escolheram, ainda transmitem insegurança sobre o quórum da sessão que cassará Cunha. Todas as pessoas informadas, contudo, jamais esquecerão o nome dos faltosos, que com sua ausência darão um abraço de afogados no ex-presidente da Câmara.
Resolvida essas questões, a Olimpíada ainda nos deve ocupar. Como foram gastos os recursos públicos, isso é algo que só virá com a transparência das contas. Nos últimos momentos, o governo injetou R$ 250 milhões na Paralimpíada.
O que está em jogo é o seguinte: quando as contas forem abertas, mesmo os mais entusiasmados com os Jogos Olímpicos vão reprovar os desvios e os equívocos, se forem demonstrados pelos números. Caso contrário, a realização da Olimpíada terá superado dois males numa só tacada: a incompetência e a corrupção.
Com todos os pequenos incidentes, o Brasil mostrou competência e alguns atores políticos, como o prefeito Eduardo Paes, devem se beneficiar. Lula, Sérgio Cabral e Dilma, a quem critiquei pela megalomania, também conseguiram realizar seu sonho.
São adversários. Mas tomados pelo espírito olímpico, podemos festejar também o impulso do governo no sentido de sair do marasmo nas obras de saneamento.
E festejar, sobretudo, a conclusão do COI ao decidir mudar o processo de escolha das cidades-sede, ajustando-se à realidade do mundo contemporâneo, que já emergiu, simbolicamente, na presença de uma delegação de atletas refugiados. Como dizem as plaquinhas em banheiro de hotel, o planeta agradece.
Enfatizo essa decisão do COI porque sempre foi muito próxima das minhas expectativas. Foi um grande risco ter trazido a Olimpíada para o Rio de Janeiro.
Decisão irreversível, o certo era desejar que tudo ou quase tudo desse certo. Vivemos intensamente o nosso espírito de cigarra. Agora é hora de baixar o espírito da formiga.

domingo, 21 de agosto de 2016

"É tempo de eleições, e os mágicos virão com todos os truques, lenços desaparecem, coelhos saem da cartola. Os políticos não inventaram o Brasil. Apenas exploram alguns pontos fracos.

Um país estranho - 

FERNANDO GABEIRA

O Globo - 21/08

Neste momento, a Olimpíada já acabou, estou de novo na estrada, Dilma e Cunha preparam-se para deixar a cena nas próximas semanas. O melhor cenário para a Olimpíada seria a ausência de grandes desastres. E isso aconteceu. Não fomos avaliados apenas por hospedar os Jogos, mas sim por fazê-lo no meio de uma grande crise política e econômica.

Muitas cidades do mundo vão continuar querendo hospedar uma Olimpíada sabendo que custam bilhões de dólares. Cada uma deve ter sua razão. Legado e contas a pagar, a qualidade do biscoito Globo e que diabo o nadador americano andou fazendo na noite em que teria sido assaltado — tudo isso ainda pode render alguma polêmica. Como disse o treinador do francês que perdeu o ouro no salto com vara, o Brasil é um país muito estranho, e é possível que usem as forças mágicas do candomblé nas grandes decisões. Onde estavam os santos no sete a um para a Alemanha, em todas as provas que perdemos? Santos não amarelam, logo é possível supor que estivessem de férias. Nem todos os temas têm o charme do esporte ou dos choques culturais que uma Olimpíada enseja. Mas são o tecido de uma realidade que se recusa a desaparecer apesar da euforia com as vitórias, dos casos de gente que superou a mesa de operações, o câncer ou a pobreza para disputar a medalha olímpica.

No meio da confusão, o governo pelo menos notou essa realidade incômoda, quando anunciou um novo caminho para o saneamento básico: a privatização. Não é o único caminho. No mundo há serviços públicos e particulares que funcionam bem. Se o governo estava fazendo uma cena, apenas para aparecer bem no filme da Olimpíada, vamos ficar sabendo mais cedo ou mais tarde. O que será da violência depois dos Jogos? Os assaltos continuaram acontecendo, um soldado da Força Nacional morreu alvejado na Maré, um policial rodoviário foi atingido gravemente em outro incidente. O soldado, infelizmente, morreu numa circunstância cada vez mais comum: entrar, inadvertidamente, numa área perigosa da cidade. Temer não entendeu o que se passou. Disse na TV que a morte do soldado foi um incidente lamentável, mas que tudo estava correndo bem na Olimpíada.
Poderia, pelo menos, dizer que era solidário com a família do soldado, que o Brasil reconhecia seu sacrifício. Parece que a morte de um policial é algo natural, frequente e previsível. Nada a fazer, nenhuma lágrima, nesse oceano que foi a Olimpíada. Choro de vitória ou derrota, quase vitória ou quase derrota, choro de locutor esportivo, de torcedor, todos choramos quando perdemos um jogo. Mas não choramos quando perdemos um soldado.
Todos nos indignamos quando há uma tentativa de estupro. E vasculhamos todos os meandros do discurso para apontar traços da cultura do estupro. As camareiras da Vila Olímpica apanharam mais do que Neymar em campo. Foram assediadas por boxers, espancadas por atleta búlgaro, mas as camareiras, como os soldados, são transparentes. Nos EUA caiu um presidente do FMI por molestar a camareira do hotel. A Olimpíada foi um grande momento. Os atletas festejam suas vitórias, avaliam seus erros, preparam um novo plano de treinamento.

E nós caímos na vida cotidiana, que para muitos é tão difícil e arriscada como uma Olimpíada. Depois de uma certa idade, então, cada corrida, cada salto, cada longa caminhada é celebrada como um recorde. Mas o mais importante é perceber que começou de novo o jogo cotidiano. Vamos ter os forças federais até quando? Se ficarem, o que fazer para assegurar que sua saída não cause danos? Há um problema adicional que poucos notaram: a campanha eleitoral começou. Não vi ainda candidatos no meu caminho. Mas sei que existem e que, daqui a pouco, sorridentes e com as mãos estendidas, virão propor soluções fáceis para os intrincados problemas de sempre. Antes da operação Lava-Jato, as campanhas já pareciam irreais. Agora, depois de tudo revelado, a distância entre o discurso dos políticos e a realidade das pessoas deve provocar inúmeros curto-circuitos.

Não se trata apenas de uma operação que desvendou os meandros da organização criminosa no poder. Em 2013, as pessoas já pressionavam por serviços públicos decentes; em 2015, pelo impeachment de Dilma. Em termos puramente subjetivos, o Brasil mudou muito nos últimos anos. A Olimpíada foi produto de um delírio do passado, realizado com os pés no chão na aspereza do presente. Como disse o técnico francês ao “Le Monde”, o Brasil é um país estranho, mágico. Vivo nele há muitas décadas para saber que por baixo da cortina de exotismo alguns problemas sobrevivem a todos os orixás, santos e pajés. Quando ouvi um locutor satisfeito porque o lixo da Baía de Guanabara foi para o fundo, num dia de regata, pensei: se apenas os estrangeiros acreditassem na magia brasileira, seria mais fácil.

É tempo de eleições, e os mágicos virão com todos os truques, lenços desaparecem, coelhos saem da cartola. Os políticos não inventaram o Brasil. Apenas exploram alguns pontos fracos.