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domingo, 3 de dezembro de 2017

"Se a arte não desculpa o crime, o crime não inculpa a arte ..." / João Pereira Coutinho

joão pereira coutinho
Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.

Se a arte não desculpa o crime, o crime não inculpa a arte 

Angelo Abu/Folhapress
Acabo de assistir ao último longa de Noah Baumbach, "The Meyerowitz Stories (New and Selected)", na Netflix. O filme vale pelo roteiro, pelos atores, pela inteligência diletante de Baumbach.
Mas vale, sobretudo, pelo papel de Dustin Hoffman como o patriarca da família —Harold, um escultor egocêntrico, temperamental, pedante, arrogante, amoral (a lista não tem fim).
Terminei o filme levitando —e depois, de regresso à realidade, descubro: duas atrizes acusam Dustin Hoffman de assédio sexual.
Pergunto: será que a conduta do cidadão Dustin afeta o gênio do ator Hoffman?
A minha resposta é negativa —e concordo com a posição de Hélio Schwartsman nesta Folha. "Pessoas ruins podem fazer coisas boas", escreve o colunista com a sua habitual lucidez. E eu gostaria de sublinhar a palavra "coisas".
Não é preciso subirmos aos patamares metafísicos da arte para comprovarmos a divisão das águas. Eu também seria capaz de comprar uma cadeira bela a um carpinteiro eticamente grotesco.
Admito que possam existir limites. Para citar um caso amplamente glosado, será possível elogiar a arquitetura das câmaras de gás de Auschwitz?
Não creio. É como se a memória da tragédia materializada naquela construção impedisse qualquer juízo extramoral. Mas eu também não seria capaz de comprar a cadeira bela se o carpinteiro a tivesse usado para matar a família inteira.
Quando o objeto vem manchado com as cores da infâmia, não há beleza que o salve.
Dito de outra forma: a cadeira, se estivesse limpa, ficaria bem na minha sala; o carpinteiro, se não fosse inocente, ficaria bem na prisão.
E o que é válido para o carpinteiro, é válido para Roman Polanski : é perfeitamente possível imaginar os filmes de Polanski na tela —e o diretor na cadeia.
Todos conhecemos a história: na década de 1970, Polanski violou uma menor nos Estados Unidos.
Após acordo judicial, a acusação baixou o chicote para relações sexuais com menor. Polanski aceitou, confessou —e fugiu para a Europa.
Será legítimo admirar os seus filmes apesar do crime?
Ou as feministas que pedem boicote a uma mostra do diretor em Paris têm razão?
O raciocínio mantém-se: depende de que filmes falamos.
Se, por absurdo, Polanski tivesse filmado o seu próprio crime —ou, para não sermos tão brutais, se os seus filmes fossem exortações a esses crimes, não haveria nenhuma consideração artística autônoma.
Mas os filmes de Polanski pertencem a outra esfera. Se a arte não desculpa o crime, o crime não inculpa a arte.
Anos atrás, ainda sobre o caso Polanski, o jornal "The New York Times" organizou um debate com vários autores e acadêmicos. Para saber, no fim das contas, se a divisão entre o homem e a obra deve ser respeitada.
Relembraram-se fatos óbvios: olhamos para a história da arte e alguns dos maiores criadores eram seres moralmente questionáveis.
Do Renascimento (que Vasari relata no seu indiscreto "Vidas de Artistas") à presente modernidade (Wagner, Picasso, Pound etc.), nem sempre as grandes obras foram produzidas por santos e beatos. Mas quem relembra isso ao passear pelo Louvre, ao escutar os "Niebelungos", ao ler os "Cantos"?
Aliás, o verbo correto não é relembrar; é conhecer.
No debate promovido pelo "Times", o roteirista Damon Lindelof foi direto ao ponto: 200 anos depois, o consumidor de cultura desconhece o lado lunar de muitos autores que admira.
Daqui a 200 anos, pergunta ele, será que as gerações futuras vão assistir a "Annie Hall" com o pensamento perturbante de que Woody Allen casou com a filha?
Boa piada. Boa pergunta. Boa resposta.
Talvez a melhor forma de resolvermos as tensões presentes entre a arte e a biografia do criador seja imaginar esse mundo futuro, onde não estaremos nós nem as nossas confusões e histerias transitórias.
Longe de mim desvalorizar os crimes dos indivíduos. Repito: esses crimes não têm perdão. Mas a grande arte é sempre perdoada.
Quando os bisnetos dos meus bisnetos encontrarem Dustin Hoffman em "The Meyerowitz Stories (New and Selected)", tudo que terão na frente é o talento imenso de um ator eterno. 

sábado, 25 de novembro de 2017

O Brasil mostra sua cara: trata melhor o criminoso do que a vítima...

Sem-terra invadem fazenda de Roger Abdelmassih no interior de SP

Reprodução/Facebook
Protesto do MST em fazenda de Abdelmassih em Avaré (SP) no dia Dia Internacional de Combate à Violência contra Mulheres
Protesto em fazenda de Abdelmassih no dia Dia Internacional de Combate à Violência contra Mulheres

O MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) anunciou neste sábado (25) a invasão de uma fazenda do ex-médico Roger Abdelmassih em Avaré (SP), a 270 km da capital paulista.
Segundo o MST, cerca de 200 mulheres sem-terra estão no local em protesto pelo Dia Internacional de Combate à Violência contra Mulheres.
Abdelmassih foi condenado a 181 de prisão por 48 estupros de 37 mulheres. Em setembro, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), permitiu que o ex-médico voltasse a cumprir prisão domiciliar.
"As mulheres sem-terra seguem em luta pelo direito à terra e por uma política de reforma agrária; contra o machismo e a violência contra as mulheres e LGBTs; e contra a cultura do estupro", diz a nota do movimento.
A fazenda em Avaré chegou a ser monitorada pela Polícia Civil e documentos encontrados ali podem ter ajudado a capturar Abdelmassih no Paraguai, em 2014, para onde havia fugido.
O ex-médico era produtor de laranja na região e chegou a ter 17 fazendas no interior de São Paulo. José Luiz Cutrale, genro de Abdelmassih, é um dos maiores produtores de laranja do mundo.
A reportagem entrou em contato com a defesa de Abdelmassih para comentários a respeito da ação do MST, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
Nos últimos meses, a Justiça alterou diversas vezes o local de cumprimento da pena do ex-médico. 

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

." Linchamentos atuais são parte de uma economia de mercado e marketing digital" / Luiz Felipe Pondé

luiz felipe pondé


luiz felipe pondé
Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência. Escreve às segundas.

Linchamentos atuais são parte de uma economia de mercado e marketing digital








Não creio na boa-fé da maioria que se diz indignada com frases infelizes que soam racistas ou atitudes suspeitas de assédio sexual.
O que move a maioria esmagadora dos "indignados" nas redes sociais e fora delas é o gosto de sangue. Não há nenhum senso de justiça ultrajado aqui, mas, sim, o mero gosto da humilhação das vítimas "culpadas". O simples gosto pelo linchamento. Se os "movimentos progressistas" não tivessem eles mesmos virado um "mercado de impacto", gerando milhões de dólares, (quase) ninguém estaria nem aí pra vítimas de racismo ou sexismo. A própria luta da Inglaterra contra a escravidão foi um business em si.
Essa constatação em nada retira do combate às misérias humanas o seu justo valor, mas nos ajuda a entender, de uma forma mais "sociobiológica", o gosto pelo linchamento de pessoas de grande sucesso e competência como William Waack e Kevin Spacey. O sucesso envenena a alma do rebanho. A inveja move a turba "indignada". O ressentimento é seu café da manhã cotidiano. O ódio, seu afeto primário. A irrelevância, seu estado natural. Sua ética é fake. "Fake ethics".
Não acho que a histeria ao redor desses dois casos (e outros) seja fruto de avanço moral e político da humanidade. Linchar pessoas, que não podem se defender, exerce sobre nós a mesma força de atração que a luz exerce sobre mariposas ou insetos em geral. As redes sociais são apenas o caldo de cultura de bactérias em que a fúria animal humana por sangue se manifesta.
Olhemos de mais perto esse enxame. Mas, antes, um reparo. Se você considera um desses dois casos "culpado" e, por isso mesmo, "merecedor da punição coletiva", cuidado! Nunca deixe se levar por esse gosto de sangue travestido de "justiça". Principalmente se você for uma pessoa de sucesso e pública, um dia você poderá ser a próxima vítima de linchamento.
Não existe relativização de valor de linchamentos. Ou são condenados a priori ou são justificáveis de acordo com a vontade do freguês. E você poderá ser a próxima vítima do freguês.
Você se lembra que, anos atrás, quando ladrões foram linchados nas ruas do Brasil, muitos criticaram (com razão) esses linchadores de rua, e uma jornalista, que aparentemente defendeu os linchadores, foi ela mesma linchada nas redes sociais?
Pois bem. É interessante perceber que há uma semelhança ideológica entre o grupo que defendia (com razão) os ladrões vítimas de linchamento e o grupo que agora adere (sem razão) ao linchamento de Waack.
Por que ladrões não devem ser (e não devem ser mesmo) linchados na rua, mas um jornalista essencial para o Brasil deve ser linchado nas redes sociais (e quem sabe nas ruas)? Por que é injusto linchar ladrões, mas é "progressista" linchar alguém como Waack? Simples: porque todo linchador é um canalha. Não há regra, só o gosto do sangue que ele quer beber.
A tese segundo a qual jornalistas devem ser "santos" se alimenta de hipocrisia tanto quanto a tese segundo a qual santos devem ser santinhos.
O politicamente correto destruiu qualquer possibilidade de reflexão minimamente honesta sobre virtudes na vida pública contemporânea. Essa discussão está morta. O politicamente correto criou o "fake ethics". A presunção de "retidão política" implica a prática da mentira pública. A democracia é, essencialmente, idiota em sua pretensão de ser politicamente correta.
A reação imediata da Globo é paradigmática: todos temem a turba. Pior: ela, a Globo mesma, é um celeiro de inteligentinhos que adoram linchamentos. Linchamentos, hoje, são parte da economia de mercado. Uma sub-área do marketing digital.
No caso de Kevin Spacey, vemos a já identificada tendência contemporânea em "gozar" mais com a histeria relacionada ao tema do assédio sexual do que gozar, de fato, com a penetração sexual física. À medida que os jovens deixam de fazer sexo, mais obcecados ficam com o tema do assédio sexual. Por trás do linchamento público de Kevin Spacey esconde-se o crescente ódio ao sexo real.
A proibição de manifestar desejo sexual real será logo clausula pétrea da Constituição e da ONU.

domingo, 19 de novembro de 2017

"iGen: Jovens em agonia " / Luiz Felipe Pondé

segunda-feira, novembro 13, 2017


iGen: Jovens em agonia - 

LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 13/11
O conceito de geração, criação bem sucedida do marketing americano desde os chamados baby boomers, ganhou "credencial" científica.

A pesquisadora americana Jean Twenge, em seu último livro "iGen, Why Today's Super-Connected Kids Are Growing Up Less Rebellious, More Tolerant, Less Happy -and Completely Unprepared for Adulthood" (Geração i, por que os jovens de hoje, superconectados, estão crescendo menos rebeldes, mais tolerantes, menos felizes -e completamente despreparados para idade adulta), lançado pela Atria Books, constrói, a partir de um arsenal de pesquisas, um perfil dos jovens nascidos entre 1995 e 2012.

O universo é o americano, mas, podemos aplicá-la com razoável segurança aos jovens brasileiros das classes A e B.

Vale esclarecer que "i" (internet) aqui se refere ao "i" do iPhone, logo, a autora está dizendo que esses jovens vivem com um iPhone nas mãos. E também "i" para "individualismo", traço marcante da iGen.

Trabalho com jovens entre 18 e 20 há 22 anos. E posso perceber enormes semelhanças entre o que ela descreve e o que vejo no dia a dia, não só em sala de aula mas também graças ao contato alargado com jovens via mídias sociais.

Muitas dessas características são quase universais, devido à ampla rede de comunicação e distribuição de bens criada pelas mesmas mídias sociais.

Escolas e famílias, muitas vezes, são parte do problema, e não da solução. Ambas se atolam em modas de comportamento e iludem a si mesmas e aos jovens por conta, seja do marketing das escolas, seja das projeções vaidosas dos pais sobre seus filhos. O marketing das escolas é desenhado a partir dessas mesmas projeções vaidosas dos pais em relação aos seus filhos, ou seja, clientes das escolas.

Algumas dessas projeções são: os jovens de hoje são mais evoluídos afetivamente, são mais preocupados com temas sociais, mais tolerantes com o diferente, mais seguros com relação ao que querem, menos submetidos à moral "imposta" pela sociedade, mais sensíveis a desigualdade social, mais conscientes de uma alimentação equilibrada e, no caso das meninas, mais autônomas, independentes e donas do seu corpo.

Algumas dessas projeções não são, necessariamente, falsas.

O discurso da tolerância entre os jovens aumentou de fato, principalmente no tema gay/lésbica/transgênero (associado a questão "cada um é cada um").

A preocupação com a desigualdade social também aparece, mas, principalmente, limitado ao campo das mídias sociais ou intercâmbios caros pra cuidar de crianças sírias na Alemanha, claro, aprendendo alemão junto e conhecendo jovens do mundo inteiro.

A realidade e o clichê não se recobrem totalmente.

Segundo a pesquisa de Twenge, nunca houve jovens tão infelizes na face da Terra. Consumidores de ansiolíticos em larga escala, a iGen busca "safe spaces" nas instituições de ensino a fim de não sofrerem com "frases" que causem desconforto emocional. Se são cuidadosos com os riscos físicos, esse mesmo cuidado no âmbito emocional indica a quase total incapacidade de lidar com a realidade.

Percebe-se facilmente que os jovens, "cozidos" no discurso psi da "vulnerabilidade", vão se tornando mais medrosos. Inseguros, morrem de medo de qualquer ideia que coloque em xeque seus "direitos à felicidade".

O mundo não ajuda. Ainda mais com essa gente que mente por aí dizendo que o capitalismo está ficando consciente ou espiritual. Eles sabem muito bem que o mundo deles será pior: mais incerto, mais violento, mais competitivo. A agonia com o futuro é crescente.

Se esses jovens desconfiam do mundo, têm razão em fazê-lo. Muitos pais e professores optaram por um discurso infantil, muitas vezes querendo "aprender" com os mais jovens -quando deviam apenas pedir ajuda com o iPhone.

Fazem menos sexo, ao contrário do que o blá-blá-blá da liberação sexual diz até hoje. Têm medo de contato físico e veem em tudo a ameaça de assédio sexual. A simples demonstração de desejo é assédio.
Pensar em ter filhos, jamais! Filhos, como eles, custam caro, duram muito e nunca querem virar adultos. Melhor cachorros e gatos.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

"Liberdade de expressão também significa liberdade para ser imbecil" / João Pereira Coutnho

joão pereira coutinho
Escritor português, é doutor em ciência política.
Escreve às terças e às sextas.

Liberdade de expressão também significa liberdade para ser imbecil

Sakchai Lalit - 25.set.2001/Associated Press
Homem tailandês vende camisetas com o rosto de Osama bin Laden, em 2001
Homem tailandês vende camisetas com o rosto de Osama bin Laden, em 2001
Usar uma camiseta de futebol com o nome "Bin Laden" gravado nas costas dá direito a prisão?
Na França, dá. Leio no "The Daily Telegraph" que Chakib Limane, 34, foi condenado a seis meses de cadeia pela proeza. Nas palavras do próprio, ele usava a camiseta durante o jogging "só por brincadeira".
Mas não foi o jogging o verdadeiro crime, o que seria compreensível. Foi, segundo o tribunal, a "apologia do terrorismo" que ele espalhava pelas ruas.
Pior: o nosso Chakib não tinha apenas camisetas "Bin Laden". Também tinha vestuário com os nomes de Mullah Omar, o reputado líder Talibã, e Ali, o Químico, o famoso bombista iraquiano.
Manifestamente, Chakib Limane tinha uma queda por torcionários. Mas, pergunto, ter uma preferência por torcionários deve ser punido com a prisão?
Duvido. Terrorismo é coisa séria e nunca marchei com o rebanho que procura "compreender", leia-se "desculpar", as atrocidades islamitas. Não há compreensão nem desculpa para a morte indiscriminada de civis.
Mas é preciso distinguir a mera estupidez de danos objetivos. Quando alguém tenta "compreender", leia-se "desculpar", o terrorismo islamita, isso é um sintoma de estupidez (no mínimo) ou de psicopatia intelectual (no máximo). Mas essas simpatias não devem ser criminalizadas, exceto se se converterem em exortações diretas à matança.
Se usar camisetas com criminosos célebres fosse punido com prisão, desconfio que não haveria espaço nos presídios para todos os adolescentes que ostentam Che Guevara com orgulho. Liberdade de expressão também significa liberdade para ser imbecil.
Mas o caso francês não é apenas uma questão de liberdade de expressão. Todos os estudos apontam para o mesmo cenário: as prisões da Europa são vespeiros de formação terrorista.
O mesmo "Daily Telegraph", aliás, informa que o Ministério da Justiça britânico está alarmado com o número de publicações jihadistas confiscadas no seu sistema prisional. "Não é possível tolerar uma situação em que as pessoas entram na prisão como criminosos e saem terroristas", afirmou o governo de Sua Majestade.
Na França, a mesma coisa: 50% da população prisional (no mínimo) é muçulmana, qualquer coisa como 20 a 30 mil pessoas (não há número seguros, apenas estimativas). Mesmo que só uma ínfima parte se radicalize, é o suficiente para repetir os atentados de Paris ou Nice.
Se as autoridades franceses desconfiavam do "jogger" Chakib Limane, o melhor era deixá-lo à solta —e mantê-lo sob vigilância. A prisão, para certos casos, não é um castigo. É uma universidade —e um início de carreira. 

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

"Brasil, um país de Luislindas " / Alexandre Schwartsman

quarta-feira, novembro 08, 2017

Brasil, um país de Luislindas 

ALEXANDRE SCHWARTSMAN

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FOLHA DE SP - 08/11 
O artigo 37, inciso XI, da Constituição Federal estabelece um teto salarial para o funcionalismo: "O subsídio mensal, em espécie, dos ministros do Supremo Tribunal Federal".

Apesar disso, a ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois, foi manchete de vários jornais em razão de seu requerimento à Casa Civil, pedindo que fosse somado à sua aposentadoria como desembargadora (R$ 30,5 mil/mês) também o salário integral de ministra (R$ 30,9 mil/mês), o que traria seu ganho mensal para R$ 61,4 mil/mês, ultrapassando, em muito, os vencimentos dos ministros do STF (R$ 33,7 mil/mês).

O "argumento" da ministra (entre outros de validade tão duvidosa quanto se "vestir com dignidade") é que, devido ao teto, seu trabalho no ministério acrescenta "apenas" R$ 3.300/mês a seu rendimento, o que, no seu imparcial entendimento, configuraria trabalho análogo à escravidão, pois "todo o mundo sabe que quem trabalha sem receber é escravo".

Noto somente que o rendimento adicional da ministra supera, com folga, a média de todos os trabalhadores brasileiros, R$ 2.100/mês, e equivale à média da categoria com maior rendimento, o funcionalismo.

Da mesma forma, não podemos deixar passar que ninguém a forçou a assumir um ministério; nesse sentido, sua decisão se equipara à de milhares de pessoas que se dedicam ao trabalho voluntário, sem receber nada, e que, certamente, não se consideram escravas.

Não é esse, porém, o ponto central da coluna, por mais escandalosa que seja sua atitude. Em parte porque o fiasco de seu pedido —consequência da exposição à mídia— é a exceção, não a regra, em casos como esses.

Em agosto deste ano, houve também notícias sobre juízes cujos vencimentos superavam o teto constitucional, por força de vantagens eventuais, indenizações e demais penduricalhos que, por entendimento, vejam só, da própria Justiça, não estariam sujeitos a limitação do teto. E, diga-se de passagem, uma breve busca pelo Google nota casos similares em 2016, 2015, 2014...

Mais relevante ainda é que tais casos ainda não correspondem, nem de longe, à totalidade dos privilégios que tipicamente são conferidos pelo setor público a grupos próximos ao poder.

A triste verdade é que a sociedade brasileira se tornou, e não de hoje, prisioneira de um círculo vicioso de caça à renda (a melhor tradução que vi para rent-seeking ).

"Renda", no sentido econômico do termo, representa a remuneração a algum insumo acima do valor que seria necessário para mantê-lo empregado nas condições atuais. Parece abstrato, mas os exemplos abundam: de licenças para táxis (um caso bastante atual, a propósito) à proteção contra concorrência internacional, passando por subsídios e toda sorte de privilégios.

A caça à renda representa um imenso jogo de rouba-monte, com o agravante de que sua prática contribui para reduzir o tamanho do monte, pois recursos reais da sociedade são utilizados para esse fim, e não para a produção, além de tipicamente favorecer setores menos produtivos. Embora possa enriquecer alguns de seus participantes, esse jogo empobrece as sociedades que o praticam.

Curioso mesmo, porém, é como economistas autodenominados "progressistas" se engajam facilmente na defesa da caça à renda. Eu já passei da idade de achar que se trata apenas de ingenuidade.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

"Pai, as bruxas existem?". .. / Contardo Calligaris

quinta-feira, novembro 02, 2017


Resultado de imagem para imagem de bruxa de halloweenGarotas têm razão em temer homens que alimentam o ódio do feminino 

 CONTARDO CALLIGARIS 

FOLHA DE SP - 02/11

Disfarçada de bruxa, uma menina de 7 anos deve participar de um arrastão de "doçura ou travessura" no prédio de uma amiga. Ela pergunta: "Pai, as bruxas existem?".


Achando que as bruxas podem ser apavorantes, o pai responde que elas não existem: bruxas são só fantasias para crianças brincarem. A menina insiste: e se aparecer algum adulto que não quer brincar? O pai garante que, na festa, bruxa só será disfarce de criança.

Na verdade, a menina não disse que ela tinha medo das bruxas. Ela perguntou se as bruxas existem e se há adultos que não topam brincar (não necessariamente adultos disfarçados de bruxas). Ou seja, talvez a menina não tenha medo das bruxas, mas, caso ela mesma seja a bruxa de brincadeira, dos "adultos" que não saberiam brincar.

Ela tem razão. Não precisou que as bruxas existissem para que 50 mil mulheres fossem queimadas vivas, enforcadas, afogadas e torturadas ao longo de poucos séculos, que, aliás, terminaram anteontem, menos de 300 anos atrás.

Para os leitores que pedem a lista dos 200 livros imperdíveis: "A Feiticeira" (prefiro "a bruxa"), de Jules Michelet (Aquariana, 2003).


Voltando: O Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídio do mundo. Feminicídio não é qualquer assassinato de uma mulher; no ano passado, houve 5.657 registros de mulheres assassinadas, e 533 deles eram feminicídios.

Há feminicídio quando uma mulher é morta por ela ser mulher. A lei do feminicídio (13.104/2015 ) reconhece nele um crime de ódio: trata-se de odiar e matar uma mulher por sua diferença, por ela ser mulher.

Esse ódio do diferente está presente em grande parte da violência contra a mulher: o estuprador, por exemplo, não age por gostar "demais" das mulheres e não conseguir se controlar. O inenarrável deputado Jair Bolsonaro fala como se quisesse estuprar mulheres que acha gostosas. É um erro primário: sem exceções conhecidas, quem estupra odeia a sua vítima (e o feminino em geral).

Enfim, a caça às bruxas foi uma enorme onda de feminicídios, bem na aurora da modernidade. A nossa menina de Halloween tem razão em ter medo –não das bruxas, mas dos (homens) adultos que não brincam e, há 20 séculos, alimentam um formidável ódio do feminino.

Começou com a ideia de que Eva, a tentadora, seria responsável pela desobediência e pela desgraça de Adão. Continuou com a punição que Eva recebeu de Deus: parir com dor e estar sob o domínio do marido.

A literatura feminista mostra de maneira irrefutável, há quase meio século: repressão e ódio do feminino são constantes e talvez até princípios organizadores da nossa cultura.

É engraçado e compreensível que, ao mesmo tempo, o desejo feminino tenha sido idealizado como grande e fascinante mistério (Freud e a psicanálise entraram nessa), porque ele seria, desde aquele início bíblico, o protótipo do desejo sexual que deveria ser recalcado para que Adão e sucessores vivessem em paz.

Qualquer flecha contra essa estranha ordem do mundo é bem-vinda. Chester Brown acaba de publicar uma extraordinária história em quadrinhos, "Maria Chorou aos Pés de Jesus - Prostituição e Obediência Religiosa na Bíblia" (Martins Fontes).

Ele reconstrói as histórias de personagens que conhecemos bem: Caim e Abel, Tamar, Raabe etc., até Maria, mãe de Jesus. Só aos poucos nos damos conta das pequenas distorções que Brown introduz, sempre para mostrar outra possibilidade de situar o desejo feminino na história.

A coisa desabrolha quando Brown explica a suposta virgindade de Maria como uma maneira oculta de contar que Maria era promíscua e não saberia de quem Jesus seria filho – entendendo que a promiscuidade seria originalmente um traço positivo de várias figuras femininas do Antigo Testamento: figuras fortes, livres, cujo desejo não seria submisso ao do homem.

Mesmo que você se indigne com tanta "ousadia", não desista. Os quadrinhos são acompanhados de notas e referências bibliográficas preciosas: Chester Brown conhece a história bíblica, suas variantes, suas interpretações possíveis e sua exegese. Perder-se nos livros que ele cita, aliás, é sumamente interessante.

E, sobretudo, lembre-se: a de Brown é uma empreitada desesperada contra séculos de repressão cultural. Desesperada, mas portadora de uma grande esperança: a de que uma menina, no dia de Halloween, não precise ter medo de ser menina e de se vestir de bruxa.