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sábado, 4 de fevereiro de 2017

"Para quem quer..." / J R Guzzo

J.R. Guzzo: Para quem quer

A morte do ministro Teori Zavascki foi a mais recente comprovação da atitude nacional de pouco-caso diante de comportamentos oficiais que não fazem nexo

Publicado na edição impressa de VEJA
O Brasil de hoje é provavelmente um dos países do mundo que melhor convivem com o absurdo. Fomos desenvolvendo na vida pública brasileira, ao longo de anos e décadas, uma experiência sem igual em aceitar a aberração como uma realidade banal do dia a dia, tal como se aceita o passar das horas ou o movimento das marés – “No Brasil é assim mesmo”, dizemos, e com isso as coisas mais fora de propósito se transformam em fatos perfeitamente lógicos. A morte do ministro Teori Zavascki, dias atrás, na queda de um turbo-hélice privado no litoral do Rio de Janeiro, foi a mais recente comprovação da atitude nacional de pouco-caso diante de comportamentos oficiais que não fazem nexo. É simples. O ministro Zavascki não podia estar naquele avião, porque o avião não era dele ─ estava viajando de favor, e um magistrado do Supremo Tribunal Federal não pode aceitar favores, de proprietários de aviões ou de qualquer outra pessoa. Nenhum juiz pode, seja ele do mais alto tribunal de Justiça do Brasil, seja de uma comarca perdi­da num fundão qualquer do interior.
Da morte de Teori Zavascki já se falou uma enormidade, e sabe lá Deus o que não se falou, ou talvez ainda se fale. Foram feitas indagações sobre o dono do avião, um empresário de São Paulo, seus negócios e suas questões junto ao Poder Judiciário. Foram apresentados detalhes sobre as suas relações pessoais, seus projetos empresariais e seu estilo de vida. Foram examinadas as circunstâncias em que se originou e evoluiu seu relacionamento com o ministro Zavascki. Não apareceu nada que pudesse sugerir qualquer decisão imprópria por parte do magistrado ─ ao contrário, sua conduta à frente dos processos da Operação Lava Jato continua sendo descrita como impecável. Mas o problema, aqui, não é esse. O problema é que ninguém, entre os que tomam decisões ou influem nelas, estranhou o fato de que um dos homens mais importantes do sistema de Justiça brasileiro, nos trágicos instantes finais de sua vida, estivesse viajando de carona no avião de um homem de negócios que não era da sua família nem do seu círculo natural de amizades. Não se trata de saber se o empresário era bom ou ruim. Sua companhia não era adequada, apenas isso, para nenhum magistrado com causas a julgar.
A questão não se limita aos empresários. Não está certo para um juiz, da mesma maneira, frequentar ministros de Estado e altos funcionários do governo. Ele também não pode andar com sócios de grandes escritórios de advocacia – grandes ou de qualquer tamanho. Entram na lista, ainda, diretores de “relações governamentais” de empresas, dirigentes de órgãos que defendem interesses particulares e políticos de todos os partidos. Não dá para aceitar convites de viagem com “tudo pago”, descontos no preço e qualquer coisa que possa ser descrita como um favor. Não é preciso fazer a lista completa ─ dá para entender perfeitamente do que se trata, a menos que não se queira entender. O ministro Zavascki não era, absolutamente, um caso diferente da maioria dos membros do STF e de uma grande parte, ninguém poderia dizer exatamente quantos, dos 17 000 magistrados brasileiros de todas as instâncias. Seu comportamento era o padrão – com a diferença, inclusive, de ser mais discreto que muitos. Ninguém nunca viu nada de errado no que fazia ─ e ele, obviamente, também não.
Cobrança exagerada? Diante dos padrões de moralidade em vigor na vida pública nacional, é o caso, realmente, de fazer a pergunta. Mas não há exagero nenhum em nada do que foi dito acima. Ao contrário, essa é a postura que se observa em qualquer país bem-sucedido, democrático e decente do mundo. Na verdade, não passa na cabeça de ninguém, nesses países, levar uma vida social parecida à que levam no Brasil os ministros do STF e de outros tribunais superiores, desembargadores e juízes de todos os níveis e jurisdições. Muitos magistrados brasileiros também acham inaceitável essa confusão entre comportamento privado e função pública. Não falam para não incomodar colegas, mas não aprovam – e não agem assim. Têm a solução mais simples para o problema: só falam com empresários etc. no fórum, e nunca a portas fechadas. Para todos eles, “conversa particular” é algo que não existe. Nenhum deles vê nenhum problema em se comportar assim. Eles aceitam levar uma vida pessoal com limites; só admitem circular na própria família, com os amigos pessoais e entre os colegas. Fica mais difícil, sem dúvida, mas ninguém é obrigado a ser juiz, nem a misturar as coisas. Só quem quer.

domingo, 18 de dezembro de 2016

"" Lula, há anos, só aparece em eventos em que a plateia é controlada por seguranças do seu partido ou dos “movimentos sociais”. "

J. R. Guzzo: Cara para bater

É a preocupação suprema: faça qualquer coisa, submeta-se a qualquer papel, mas não se arrisque, jamais, a ser vaiado num lugar público

Publicado na edição impressa de VEJA
Está ficando cada vez mais raro na vida pública brasileira, nos dias que correm, encontrar quem esteja disposto a fazer a coisa certa apenas porque é a coisa certa – mesmo quando a moral, os bons costumes e a lógica deixam claro que é a única coisa a ser feita. O que importa acima de tudo, hoje em dia, é fazer a coisa que dá certo; não é necessariamente um pecado, mas é diferente. Nem é tão importante assim, na verdade, fazer o que dá certo. Mais que tudo, o que vale é não fazer nada que possa dar errado. Trata-se da teoria e da prática do “risco zero”. Os grandes princípios, nessa maneira de encarar as responsabilidades públicas, se concentram em umas poucas definições. Por exemplo: não se pode “dar a cara para bater”. Ou: a maior virtude de um político é ser “profissional”; seu pior defeito é ser “ingênuo”. Atos de coragem pessoal, por essa cartilha, são estritamente desaconselhados; quando expõem o autor à “impopularidade”, então, passam a ser vistos como pura e irreparável estupidez. É indispensável, diante de qualquer problema a ser resolvido, dizer que “o povo não pode pagar a conta”. Nunca é o “momento adequado” para tomar uma providência, por mais necessária que seja, se ela significar algum sacrifício. É muito mais perigoso não prometer do que não cumprir. Um político eficaz deve acreditar, talvez como a regra primordial de todas, que dá mais certo tratar a população segundo os seus interesses do que segundo os seus direitos.

Nada mais natural, num país em que os políticos vivem à beira do xadrez, na mira da polícia e na dependência de sentenças judiciais para manter o cargo, que o pavor da vaia tenha assumido tanta importância. É a preocupação suprema: faça qualquer coisa, submeta-se a qualquer papel, mas não se arrisque, jamais, a ser vaiado num lugar público. Só mesmo no Brasil de hoje se entende, para ficar num exemplo recente, que tenha sido levada a sério pelo governo, como parece que foi, a possibilidade de que o presidente da República não comparecesse às cerimônias fúnebres que se seguiram ao desastre aéreo com a equipe da Associação Chapecoense de Futebol. Poucos fatos, nos últimos anos, mexeram tanto com as emoções do público brasileiro quanto essa tragédia. Mas até pouco antes dos funerais a informação oficial era que o presidente Michel Temer não iria – ou iria praticamente escondido, como a ex-presidente Dilma Rousseff na final da Copa do Mundo de Futebol de 2014, no Maracanã. Felizmente, inclusive para si próprio, ele foi. Mas é uma completa aberração que os maiores nomes do mundo político brasileiro (quer dizer: maiores pelo tamanho dos cargos) estivessem tão longe da cerimônia quanto o diabo da cruz. Pior: não poderia mesmo ser diferente. Imagine-se, por exemplo, se seria possível a presença do senador Renan Calheiros e do deputado Rodrigo Maia no palanque das autoridades em Chapecó; se algum assessor, por acaso, lhes tivesse dado a ideia de comparecer, ambos teriam passado mal só de ouvir. Temos, então, o seguinte: o presidente do Senado Federal (cargo hoje em tumulto) e o da Câmara dos Deputados não andam livremente no próprio país. Pode?
E o ex-presidente Lula, que é descrito por tanta gente, a começar por ele mesmo, como o maior líder popular que o Brasil jamais teve em toda a sua história? Esse, então, estava em Cuba, junto com a sucessora. Foi a um outro enterro; não ocorreu a ele, e talvez menos ainda a ela, correr o risco de estar junto do povo brasileiro naquela hora. O ex-presidente, aliás, é um dos pioneiros nesse tipo de sabedoria política – conseguiu não ir a uma única partida da mesma Copa do Mundo de 2014, que colocava entre as maiores realizações do seu governo e da sua vida. Lula, há anos, só aparece em eventos em que a plateia é controlada por seguranças do seu partido ou dos “movimentos sociais”. De novo, é a anomalia: o soberano das massas populares brasileiras não pode sair às ruas neste país. Ele e quantos mais? Quase todos. Na verdade, quantos políticos teriam coragem de ir a uma manifestação de rua como as que têm acontecido de 2015 para cá? Quantos se sentem realmente seguros para ir a um restaurante ou atravessar um saguão de aeroporto? Só o anonimato dá segurança; do jeito que as coisas vão, daqui a pouco nossos representantes começarão a ir para as sessões do Congresso Nacional com aquelas máscaras pretas que a polícia costuma usar em operações secretas. Chegamos a um ponto em que a regra principal para o exercício da vida pública no Brasil é não aparecer em público.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

STF :"São onze ilhas que não formam um arquipélago." / J R Guzzo

J. R. Guzzo: Onze ilhas

O ministro “A” discorda do ministro “B” não porque vê as leis de outra maneira, mas porque os dois são inimigos pessoais, políticos ou ambas as coisas ao mesmo tempo

Por: Augusto Nunes  
Um país pode ter certeza de que está a caminho de grande confusão – ou, talvez, até de que já tenha chegado lá – quando começam a se repetir na vida pública situações nas quais é preciso escolher entre o errado e o errado. É um erro um ministro do Supremo Tribunal Federal tomar uma decisão considerada flagrantemente ilegal pela maioria dos colegas; fica pior ainda quando se trata de uma contribuição consciente à desordem política. É um erro que a direção do Senado Federal se recuse a respeitar a decisão tomada, e que seis ministros da mais alta corte de justiça do Brasil concordem com o ato de desobediência. O que está valendo nessa história, afinal das contas? Quem fala primeiro? Quem fala mais alto? Eis aí, na prática, o preço que os brasileiros estão pagando por uma realidade que se torna cada vez mais alarmante: o STF deixou de funcionar como um tribunal de justiça. Tornou-se, para efeitos práticos, um ajuntamento de onze indivíduos que se separam uns dos outros não por pensarem de modos diferentes sobre a lei, mas por que têm interesses pessoais contraditórios entre si. São onze ilhas que não formam um arquipélago.
Um ministro da suprema corte brasileira, hoje em dia, equivale àquele tipo de evento natural que cai na categoria dos chamados fenômenos irresponsáveis – raio, chuva, terremoto. São coisas que acontecem, simplesmente, sem controle nenhum por parte de quem sofre os seus efeitos; é certo, apenas, que todos pagam, assim como a população paga pelos repentes de um grupo de cidadãos que têm poder de mais e responsabilidade de menos. Ultimamente deram para governar o país, sem ter recebido um único voto, sem a obrigação de prestar contas por nada do que fazem e sem correr, jamais, o mínimo risco de perderem seus cargos. Como os poderes executivo e legislativo foram desmoralizados até o seu último átomo pela corrupção, a incompetência e a vadiagem, o STF cresceu de uma maneira doentia, e completamente desproporcional à sua capacidade de gerir conflitos. Já seria suficientemente ruim se o Supremo, com todas as suas disfunções, agisse dentro de mecanismos racionais, coerentes e previsíveis. Mas não é assim, como se comprova com frequência cada vez maior. As decisões do STF podem ser qualquer coisa. O que é feito num caso não é feito em outro igual – ou tão parecido que não dá para saber a diferença. O que está valendo hoje pode não estar valendo amanhã. O ministro “A” discorda do ministro “B” não porque vê as leis de outra maneira, mas porque os dois são inimigos pessoais, políticos ou ambas as coisas ao mesmo tempo; um acha que o outro simplesmente não tem o direito de estar no cargo. Falam em “principialogia axiomática”, “egrégio sodalício” ou “ofício judicante”, como se esse tipo de dialeto revelasse sabedoria; conseguem, apenas, ser incompreensíveis.
Perde-se, como resultado disso, tanto o senso de decência como o respeito à lei. Será mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha, como na Bíblia, do que encontrar alguém a favor de Renan Calheiros entre os brasileiros que de alguma forma se importam com política ou questões da vida pública. É um tipo humano que praticamente só se encontra no Senado Federal e no STF. Um bode expiatório, afinal das contas, muitas vezes vale tanto quanto uma boa explicação – e Renan, com os onze processos que tem no lombo e todo o restante do seu repertório, é uma figura praticamente perfeita para o povo odiar. Mas quem está disposto, do mesmo jeito, a apontar algum herói entre os gatos pingados que votaram contra ele no Supremo? Situações de erro contra erro em geral não contêm inocentes.

domingo, 4 de dezembro de 2016

"Os comunicadores estão cada vez mais convencidos de que a sua maneira de ver o mundo é a melhor" / J R Guzzo

J.R. Guzzo: Falta combinar

Os comunicadores estão cada vez mais convencidos de que a sua maneira de ver o mundo é a melhor

Por: Augusto Nunes  
Publicado na edição impressa de VEJA
Os meios de comunicação, no Brasil e numa porção de países do Primeiro Mundo, muito civilizados, prósperos e democráticos, estão com uma doença que pelo jeito não tem cura. Publicam notícias, comentários e “conteúdo” segundo uma tábua de mandamentos que não deixa nenhuma dúvida sobre o que está certo e o que está errado, o que é bom e o que é ruim, o que é permitido e o que deveria ser proibido – só que não combinam com o público se ele próprio, o público, está de acordo com isso tudo. Os comunicadores estão cada vez mais convencidos de que a sua maneira de ver o mundo é a melhor, não apenas para o mundo, mas para leitores, espectadores e ouvintes; não parecem ter nenhuma dúvida a respeito.
O resultado é que estão sendo cada vez menos representativos do público que imaginam representar. Dão informações que esse público não está interessado em receber e opiniões que não está disposto a compartilhar. Ensinam coisas que ele não quer aprender. Falam de valores que não são os seus – ou não necessariamente os seus. Torcem por causas que não são obrigatoriamente as suas. Elogiam uma série de comportamentos, condenam outros tantos, e em ambos os casos deixam uma advertência clara: é assim que nós, órgãos de comunicação, esperamos que vocês, público, se comportem. Só existem duas maneiras de avaliar as coisas neste mundo. Uma é a maneira errada. A outra é a nossa. Qual é a surpresa, então, em que a mídia esteja com tantos problemas?
Não é preciso, para ver o tamanho do problema, recorrer a casos extremos como a eleição de Donald Trump para a Presidência dos Estados Unidos. Depois de atacar a sua candidatura como o pior momento da humanidade desde a ­vinda da peste negra, a imprensa americana e a internacional têm certeza, agora, de que sua vitória nos levará de volta à Idade da Pedra. Deveria estar mais do que óbvio, se fosse assim mesmo, que só um débil mental votaria nesse homem. Mas é claro que não foi isso que aconteceu, como é claro que ninguém está em pânico só porque a imprensa diz que todo mundo deveria estar em pânico.
No Brasil de hoje, então, o descolamento entre meios de comunicação e público parece caminhar para o modo mais extremo. O que dizer quando nas últimas eleições para prefeito os vencedores nas duas maiores cidades do Brasil foram justo os dois candidatos mais detestados pela mídia? Estão operando lado a lado, aí, duas linguagens opostas – a dos jornalistas e a de dezenas de milhões de cidadãos comuns.
Os exemplos se aplicam a um mundo de coisas. Os comunicadores, em sua maioria, são a favor da ocupação de escolas por grupos de organizações de estudantes, ou a veem com compreensão quase ilimitada; fazem um voto de confiança sem restrições no idealismo dos jovens e sua vontade de reformar o nosso ensino. São a favor da ocupação dos espaços públicos por marginais de todo tipo – acham que seu direito é maior que o direito do restante da população de utilizar em paz o mesmo espaço. São a favor de praticamente todo tipo de invasão (que chamam de “ocupação”), de lugar público ou privado; são contra a liberação desses locais pela polícia, mesmo com ordem judicial, e sua devolução aos legítimos donos; estão convencidos de que a polícia, sem exceção, age “com brutalidade”.
Há um critério rigoroso na escolha das palavras. A imprensa fala sempre em “manifestantes”, “militantes”, “estudantes”, “desabrigados” e até em “camponeses” – nunca, em nenhum caso, são “invasores”. Não fala mais “favela”, palavra hoje condenada como preconceituosa, elitizante e fascista; tem de ser “comunidade”. A imprensa brasileira continua falando do golpe militar de 1964 como se fosse algo que aconteceu ontem, e alerta para os “perigos” de se voltar, a qualquer momento, à mesma situação; esquece que só tinham chegado à maioridade, em 1964, pessoas que têm hoje pelo menos 70 anos de idade.
Nossa mídia dá a entender, cada vez mais, que ter um automóvel é uma falha moral – e que o importante, hoje, não é a propriedade, e sim o uso do veículo. Jamais lhe ocorre que para milhões de brasileiros o carro é um instrumento de liberdade, e sua propriedade um sonho individual importante. Ao contrário da imprensa, a população não acha que o problema do Brasil é ter gente de mais na cadeia; acha que é ter gente de menos. Não acha que o principal problema da segurança pública seja a polícia – acha que são os bandidos. Não acha que a fé evangélica seja uma ameaça.
Dá para escrever um “Manual de Redação” inteirinho com essas regras. Só que não são as regras do público.

sábado, 26 de novembro de 2016

A realidade do Brasil é intranquilizante, !


J.R. Guzzo: A justiça negada

Uma juíza vendeu sentença a um traficante. Outra manteve presa ilegalmente uma menina de 15 anos, que foi brutalmente torturada pelos demais presos. Que punição receberam?

Por: Victor Irajá  

Publicado na edição impressa de VEJA
O caso da juíza Olga Regina de Souza Santiago, do Tribunal de Justiça da Bahia, é de dar medo em qualquer brasileiro que imagina estar sob a proteção da lei. A juíza é a personagem central de uma história de negação absoluta da justiça — não se trata de injustiça, exatamente, mas de recusa do Estado em submeter um de seus agentes às leis que valem para o resto da população, prática que costuma ser encontrada apenas nos países mais totalitários do mundo. O que houve? Houve que a doutora Olga, em pleno exercício de sua função, recebeu dinheiro de um traficante de drogas colombiano como pagamento de propina para deixá-lo fora da cadeia — mas não foi, nem será, punida por isso. A juíza vinha sendo investigada desde o distante 2007; agora, após quase dez anos de “processo disciplinar” e com base em todas as provas possíveis, de gravações de conversas a comprovantes de transferência bancária, o Conselho Nacional de Justiça declarou, enfim, que ela é culpada de corrupção passiva e outros crimes — e como única punição para isso deve se aposentar, com vencimentos integrais. O apavorante é que não houve nenhum favor especial para a doutora Olga, longe disso; apenas se aplicou o que a Justiça brasileira, desde 2005, considera ser a lei. É ou não para assustar?
Vamos falar as coisas como elas são: uma criança de 7 anos, ao ouvir uma história como essa, sabe que o final está errado. Como a Justiça pode decidir que alguém cometeu um crime e, exatamente ao mesmo tempo, não mandar para a cadeia quem praticou o crime? Por mais respeito que se tenha pelos argumentos que tentam explicar tecnicamente a situação, sobretudo quando apresentados pelos maiores cérebros jurídicos do país, está acima da moral comum entender que possa haver algo correto na recusa de aplicar as leis criminais a um cidadão pelo simples fato de que ele é um juiz de direito. Pois foi precisamente isso que aconteceu. Qualquer outra pessoa, tendo feito o que a juíza Olga fez, seria condenada a até doze anos de prisão, pena agravada de um terço, pelo artigo 317 do Código Penal brasileiro; mas o máximo de castigo que se aplica a ela é que, sendo criminosa, deixe de ser juíza ao mesmo tempo. E mais: continuará recebendo o salário inteiro, pelo resto da vida (no seu caso, não se sabe exatamente qual será o custo disso para o contribuinte, que não cometeu crime algum, mas pouco não vai ser; já podem ir contando com uns 40 000 reais por mês, pelo menos). O pior de tudo é que não se trata de uma exceção; essa é a regra, e, se a regra é essa, está claro que o aparelho da Justiça brasileira parou de funcionar como um sistema lógico. Não pode existir lógica quando o CNJ, o órgão de controle mais elevado do Poder Judiciário, aceita tomar decisões dementes. O resto, para 99% dos seres humanos normais, é pura tapeação — de novo, com todo o respeito.
Quantos magistrados brasileiros estariam dispostos a admitir que existe alguma coisa insuportavelmente errada num sistema em que acontecem fatos como esse? O que temos aqui é uma tragédia permanente. Quase um mês antes da decisão sobre Olga Santiago, o mesmo CNJ resolveu que outra juíza, Clarice Maria de Andrade, do Pará, deve ficar dois anos afastada das funções por ter se recusado a atender, também em 2007, a um pedido para retirar de uma cela do interior do estado, onde estava presa ilegalmente, uma adolescente com 15 anos de idade. Durante mais de vinte dias, a menina foi brutalmente torturada pelos demais presos, até, enfim, ser retirada dali — e, por causa disso, a juíza Clarice recebeu a aposentadoria compulsória em 2010. Achou que era uma injustiça. Recorreu da decisão, foi desculpada pelo Supremo Tribunal Federal e agora recebe do CNJ a determinação de ficar afastada por dois anos — ou seja, nem aposentada ela acabou sendo. Mas ainda assim não está bom: a doutora Clarice vai recorrer da decisão, pois não aceita nem mesmo esse curto afastamento do cargo. A Associação dos Magistrados Brasileiros manifestou-se publicamente a seu favor. É essa a realidade. Simplesmente não há, para os juízes, sentença contrária, pois mesmo quando são condenados a decisão, na prática, é a favor — e ainda assim eles recorrem. O balanço final é um horror. De 2005 para cá, o CNJ examinou 100 casos de magistrados e todo tipo de acusação: corrupção, principalmente, sob a forma de venda de sentenças, mas também homicídio qualificado, extorsão, peculato, abuso sexual, e por aí afora. Cerca de 30% dos casos acabaram em absolvição; nos restantes, a punição mais grave foi a aposentadoria compulsória ou, então, a aplicação de penas como “disponibilidade do cargo”, “censura”, ou “advertência”. Há um ou outro caso, raríssimo, de prisão, quando o processo corre fora do nível administrativo — e isso é tudo. O contribuinte gasta dezenas de milhões com essas aposentadorias. Não há um cálculo exato de quanto, mas é caro — em nenhum estado brasileiro a média salarial dos magistrados é inferior a 30 000 reais por mês, e nos estados que pagam mais ela passa dos 50 000 mensais. É só fazer as contas.
É aí, nos ganhos dos juízes — além de procuradores e promotores de Justiça —, que está outra aberração em estado integral. A Justiça brasileira gasta cerca de 80 bilhões de reais por ano, 90% dos quais vão direto para a folha de pagamento, que, pelas últimas contas oficiais, sustenta mais de 450 000 funcionários. A qualidade do serviço que presta é bem conhecida por todos. O gasto, porém, é um dos maiores do planeta. Cada um dos 17 500 juízes brasileiros custa em média 46 000 reais por mês, ou mais de meio milhão por ano — em que outra atividade o custo médio do trabalho chega a alturas parecidas? Para os desembargadores à frente de tribunais de Justiça, essa média passa dos 60 000 por mês, e ainda assim estamos longe do pior. É comum, nas Justiças estaduais e na federal, salários mensais de 100 000, ou mais — o senador Renan Calheiros, que quer examinar melhor o assunto, cita muito o valor de 170 000, e há casos comprovados de 200 000 ou mais. Como pode dar certo uma coisa dessas? Nossos juízes, que se dizem cada vez mais preocupados com a justiça social, parecem não perceber que estão sendo beneficiados por uma das situações de concentração de renda mais espetaculares do mundo — resultado da distribuição pura, simples e direta de dinheiro público a uma categoria de funcionários do Estado. Faz sentido, numa sociedade como a do Brasil?
Não faz, mas é proibido tocar no assunto. Quando se lembram casos como os das juízas Olga ou Clarice, a reação imediata dos defensores do sistema é perguntar: “Mas por que tocar nessas histórias justo agora? O que há por trás disso? A quem interessa o assunto?”. Da mesma maneira, criticar as “dez medidas anticorrupção” tor­nou-se uma blasfêmia. Espalha-se a ideia de que ações como a de Renan em relação aos salários, e as de outros políticos que pensam numa lei de responsabilidades com sanções mais severas para o abuso de autoridade, não valem nada, porque são feitas com más intenções; o que eles propõem pode até ser correto, mas seus objetivos finais são suspeitos. É tudo uma conspiração para “abafar a Lava-Jato”. É culpa de Lula e da esquerda. É culpa do governo e da direita, e por aí se vai. Mas o fato é que dois mais dois são quatro — e, se o senador diz que são quatro, paciência; a conta não passa a ser cinco só porque é ele quem está dizendo que são quatro. Não é essa a realidade que os militantes do Judiciário intocável aceitam; querem tudo exatamente como está. O resultado é, e continuará sendo, a situação aqui descrita.

sábado, 5 de novembro de 2016

"Deu errado" / J R Guzzo

J.R. Guzzo: Deu errado

Como seria possível, numa sociedade racional, consumir duas unidades para produzir uma — e achar que está tudo bem?

Por: Augusto Nunes  
Publicado na edição impressa de VEJA
Aconteceu numa sessão qualquer de uma dessas comissões da Câmara dos Deputados em que pouca gente fala, pouca gente escuta e quase ninguém presta atenção, mas nas quais, de vez em quando, é possível ficar sabendo das coisas mais prodigiosas. No caso, o deputado Nelson Marchezan Júnior, do Rio Grande do Sul, tomou a palavra a certa altura dos procedimentos e revelou o seguinte: a Justiça do Trabalho deu aos trabalhadores brasileiros que recorreram a ela no ano passado um total de 8 bilhões de reais em benefícios; no decorrer desse mesmo ano, gastou 17 bilhões com suas próprias despesas de funcionamento. É isso mesmo que está escrito aí. A Justiça do Trabalho brasileira custa em um ano, entre salários, custeio e outros gastos, o dobro do que concede em ganhos de causa à classe trabalhadora deste país. Pela aritmética elementar, calculou então o deputado, o melhor seria a Justiça do Trabalho não existir mais, pura e simplesmente. Se o poder público tirasse a cada ano 8 bilhões de reais do Orçamento e entregasse essa soma diretamente aos trabalhadores que apresentam queixas na Justiça trabalhista, todos eles ficariam tão satisfeitos quanto estão hoje, as empresas reduziriam a zero os seus custos nesse item e o Erário gastaria metade do que está gastando no momento. Que tal?
Não existe nada de parecido em país algum deste mundo, ou de qualquer outro mundo. Como seria possível, numa sociedade racional, consumir duas unidades para produzir uma — e achar que está tudo bem? O sistema ao qual se dá o nome de “Justiça do Trabalho” continua sendo uma das mais espetaculares extravagâncias do Brasil — e mais uma demonstração concreta, entre talvez uma centena de outras, da facilidade extrema de conviver com o absurdo que existe na sociedade brasileira. É o que nos faz aceitar resultados exatamente opostos ao que se deseja — estamos nos tornando especialistas, ao que parece, em agir de forma a obter o contrário daquilo que pretendemos. Todos querem, naturalmente, que a Justiça do Trabalho produza justiça para os trabalhadores. Mas fazem tudo, ou aceitam tudo, para gerar o máximo de injustiça, na vida real, para esses mesmíssimos trabalhadores. Que justiça existe em gastar 17 bilhões de reais de dinheiro público — que não é “do governo”, mas de todos os brasileiros que pagam imposto — para gerar 8 bilhões? É obvio que alguma coisa deu monstruosamente errado aí. A intenção era fazer o bem; está sendo feito o mal em estado puro.
A Justiça trabalhista é acessível a apenas 40% da população; os outros 60% não têm contrato de trabalho. Ela não cria um único emprego — ao contrário, encarece de tal forma o emprego que se tornou hoje a principal causa de desestímulo para contratar alguém. Não cria salários, nem aumentos, nem promoções. Apenas tira do público o dobro do que dá. Mas vá alguém querer mexer nisso, ou propor que se pense em alguma reforma modestíssima — será imediatamente acusado de querer suprimir “direitos dos trabalhadores”. Hoje a Justiça trabalhista gasta 90% do orçamento com os salários de seus 3 500 juízes, mais os desembargadores de suas 24 regiões, mais os ministros do seu “Tribunal Superior do Trabalho”, mais os carros com chofer. Em nome do progresso social, porém, fica tudo como está.
Tudo isso, claro, é apenas uma parte da desordem que transforma a Justiça brasileira numa imensa piada fiscal. Com a mesma indiferença, aceita-se que o Supremo Tribunal Federal, com onze ministros, tenha 3 000 funcionários — cerca de 300, isso mesmo, para cada ministro. Mas não é suficiente: o brasileiro tem de pagar também 1 bilhão de reais por ano para ser assistido por um “Tribunal da Cidadania”, de utilidade desconhecida — o Superior Tribunal de Justiça, esse já com 33 ministros, quase 5 000 funcionários, incluindo os terceirizados e estagiários, e capaz de consumir dois terços inteiros do seu orçamento com a folha de pessoal. Tempos atrás, o historiador Marco Antonio Villa trouxe a público o deslize para a demência de um órgão público que foi capaz de consumir 25 milhões de reais, num ano, em alimentação para funcionários, pagar de 400 000 a 600 000 reais de remuneração mensal a seus ministros aposentados e ter na folha de pagamento repórteres fotográficos, auxiliares de educação infantil e até “jauzeiros”. O que seria um “jauzeiro”? Vale realmente tudo, nesse STJ.
Você pode querer que nenhuma mudança seja feita nisso aí. Também pode achar que esse sistema, tal como está, é uma conquista social. Só não pode querer que um negócio desses funcione.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

O discurso final de Dilma Roussef em defesa de seu mandato no Senado selou sua deposição ! / J R Guzzo

J. R. Guzzo: Zero na saída

O que se viu até o último minuto do último ato, foi Dilma Rousseff no papel de Dilma Rousseff

Por: Augusto Nunes  
Publicado na edição impressa de VEJA
De tudo o que houve de ruim no governo do segundo presidente da República deposto legalmente do cargo na história deste país, o pior, feitas com calma todas as contas, parece ter sido a saída. É uma alta proeza, sem dúvida, quando se leva em conta a espetacular ruindade do desempenho de Dilma Rousseff em seus cinco anos e tanto de estada na Presidência — alguém é capaz de citar, falando sério, um outro governo pior que o seu em 127 anos de República? A deposição, quando enfim chegou, na semana passada, foi uma cerimônia de encerramento perfeitamente adequada à miséria do espetáculo em cartaz. Em momentos de trauma político de primeira linha, como deveria ser a deposição legal de uma presidente da República eleita, o protocolo prevê alguns instantes de drama intenso — ou, pelo menos, uns quinze minutos de grandeza por parte de quem está sendo posto na rua. Foi o contrário disso tudo.
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Na sessão decisiva do Senado Federal que acabou por cassar seu mandato, Dilma Rousseff gastou o dia inteiro que tinha à disposição para fazer sua defesa enchendo a paciência dos ouvintes com a leitura do que deveria ser a obra magna de sua carreira política — e acabou sendo apenas mais uma montoeira de afirmações desesperadamente chatas, com atividade cerebral mínima e na maior parte do tempo incompreensíveis, neuróticas ou positivamente falsas. De uma presidente à beira da desgraça pública seria possível esperar algum momento mais caprichado em matéria de “falar bonito”; imaginava-­se, talvez, que tentasse “fazer um gesto”, algo como um “saio da vida para entrar na história”, por exemplo, ou coisa parecida. Nada disso. O que se viu na prática, até o último minuto do último ato, foi Dilma Rousseff no papel de Dilma Rousseff.
“Não é 30% dos recursos da exploração”, resolveu dizer a ex-presidente a certa altura daquele que deveria ser, no seu mundo, o equivalente ao discurso de Marco Antônio no funeral de Júlio César. Que diabo “recursos da exploração” e outras miudezas desse tipo estariam fazendo num pronunciamento que pretendia tornar-se histórico? Bem, o discurso era dela — e ela tinha o direito de enfiar ali o que bem entendesse. Foi o que fez. O resultado é que essa história dos “30%” em sua fala de defesa promete sobreviver como um dos maiores clássicos do “dilmismo” em todos os tempos. Eis o que disse Dilma: “Não é 30% da receita da exploração. É 30% de 25%. Ou 30%… de 30%, portanto não é 30%. Está entre 7,5% ou um pouco mais de 12%. Não se trata de 30%”. Como de costume, a ex-presidente serviu esse angu de números com a cara brava, a voz irritada e um tom geral de impaciência; parecia que ela estava com raiva das porcentagens, coitadas. Ninguém entendeu coisa nenhuma, como sempre, mas aí é que está: Dilma Rousseff, na hora de ir embora, foi a Dilma Rousseff de sempre. A ex-presidente apareceu como ela é — e seu governo apareceu como ele foi. É essa a pessoa que nos governou até a semana passada. Não poderia dar certo.
A saída foi pior que a estada, também, quando se considera a contabilidade final da cassação. Não é fácil para ninguém, claro, ser demitido da Presidência da República. Mas demitido por 61 a 20? É, de novo, uma surra com cara de Brasil e Alemanha na Copa de 2014 — e que, por sinal, mostra a perda de tempo sem limites que foi levar a sério o noticiário sobre “placar apertado”, as capacidades sobrenaturais de Lula para “virar a votação” e outras bobagens do mesmo tipo. O que o painel de votação do Senado mostrou na vida real é que Dilma não conseguiu encontrar mais que vinte senadores, num total de 81, dispostos a absolvê-la dos crimes de fraude fiscal pelos quais perdeu o mandato. Como governar o Brasil desse jeito?
Some-se a isso, para completar, o “apoio das ruas” que deveria salvar o mandato de Dilma e o seu “projeto de sociedade” — e com o qual, no discurso em modo de rancor extremo que fez após a condenação, Dilma ameaça guerrear o governo legítimo que lhe sucedeu. Todo esse apoio somou um grande zero. Na hora suprema da resistência, o máximo que conseguiu mostrar foi uma fileira de pneus queimados atrapalhando o trânsito de uma avenida em São Paulo. É um retrato que combina perfeitamente com um governo em ruínas. Dilma deixa a mais demorada recessão que a economia do Brasil já conheceu, 11 milhões de desempregados e uma destruição sem paralelo no patrimônio público — a começar pela Petrobras, privatizada em favor da corrupção confessa e contabilizada. Combina, sobretudo, com aquilo que esse governo realmente foi — uma minoria.