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quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Che Guevara tem quem queira debater sobre sua vida... "Vocês querem saber se ele matou muito ou pouco ?"

terça-feira, outubro 10, 2017

Che Guevara é venerado porque tem sangue verdadeiro para mostrar - 

JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 10/10
Che Guevara morreu há 50 anos e ainda há quem lhe conceda o benefício da dúvida. Na semana passada, recebi um convite para um "debate" sobre Guevara e o seu legado. Pensei que era piada. Ainda perguntei: "Vocês querem saber se ele matou muito ou pouco?".

Ninguém riu. A ideia era mesmo "debater". Eu estaria entre os "críticos" (muito obrigado) e, do outro lado da mesa, estariam os apologistas. Recusei.

Aliás, quando o assunto são psicopatas, eu recuso sempre —uma questão de respeito pela minha própria sanidade. Nunca me passaria pela cabeça debater seriamente o Holocausto com um negacionista. Por que motivo o comunismo seria diferente? Escutar alguém a defender a União Soviética é tão grotesco como estar na presença de um neonazi a defender Hitler e o Terceiro Reich.

De igual forma, também nunca me passaria pela cabeça convencer terceiros sobre a monstruosidade do nazismo —ou a do comunismo. Como se ainda houvesse dúvidas.

Não há -e, no caso de Guevara, o próprio deixou amplos testemunhos a comprovar a sua excelência. O culto do ódio; a excitação do cheiro a sangue; a necessidade de um revolucionário ser uma "máquina de matar" -o Che não enganava.

E os fuzilamentos, que ele executou ou mandou executar, são ostentados pelo nosso Ernesto como se fossem medalhas na farda de um general. A criminalidade de Che Guevara não é questão de opinião. Isso seria um insulto ao próprio.

Mas há um ponto que me interessa sobre o Che: a sua sobrevivência como símbolo. Atenção: não falo de adolescentes retardados que desconhecem o verdadeiro Che e ostentam na camiseta o retrato que Alberto Korda lhe tirou. A adolescência é uma fase inimputável que, nos piores casos, pode durar uma vida inteira.

Não. Falo dos intelectuais que, conhecendo Che Guevara e o seu "curriculum vitae", o canonizam sem hesitar. O que leva pessoas inteligentes a aplaudir um criminoso?

O sociólogo Paul Hollander dá uma ajuda no seu "From Benito Mussolini to Hugo Chávez - Intellectuals and a Century of Political Hero Worship". O título, apesar de longo, é importante.

Em primeiro lugar, porque Hollander não discrimina entre "direita" ou "esquerda". O totalitarismo só tem um sentido —a sepultura.

Em segundo lugar, porque não é a natureza dos regimes que interessa ao sociólogo; é a devoção dos intelectuais pelos "heróis" revolucionários do século.

No caso de Che, existem explicações históricas —e psicológicas.

As históricas lidam com a Revolução Cubana de 1959, ou seja, três anos depois de Nikita Khrushchev ter denunciado os crimes do camarada Stálin.

A desilusão foi profunda —e, para a "nova esquerda", a União Soviética deixava de ser o farol da humanidade. Era apenas mais um estado opressor (como os Estados Unidos, claro) que atraiçoara a beleza do ideal marxista.

A partir da década de 1960, os "peregrinos políticos" (expressão de outro livro famoso de Hollander) passaram a ver o Terceiro Mundo —Cuba, China, Vietnã, Nicarágua— como o paladino virginal da libertação do homem. Fidel Castro e o seu ajudante Che Guevara ocuparam os papéis principais como "bons selvagens".

Mas existe um motivo suplementar para Che palpitar no peito dos intelectuais, escreve Hollander: o fato de ele não ser um intelectual "defeituoso".

Uma história ajuda a compreender o adjetivo: em 1960, Sartre visitou Cuba e comoveu-se com as confissões de Fidel. "Nunca suportei a injustiça", disse o Comandante. Sartre concluiu que Fidel entendeu como ninguém "a inanidade das palavras".

Tradução: não basta falar contra o imperialismo/capitalismo/colonialismo; é preciso agir. Che Guevara, que Sartre batizou como "o mais completo ser humano do nosso tempo", simboliza essa totalidade. Alguém que não se fica pelas palavras —e passa aos atos. Che Guevara é venerado porque tem sangue verdadeiro para mostrar.

É um erro afirmar que os "intelectuais revolucionários" que admiram Che Guevara continuam a prestar-lhe homenagem apesar da violência e do crime. Pelo contrário: a violência e o crime estão no centro dessa homenagem.
Che sobrevive porque foi capaz de ser o 

"anjo exterminador" que todos eles sonharam e não conseguiram.

quarta-feira, 19 de julho de 2017

"Thoreau aos 200 anos" / João Pereira Coutinho

quarta-feira, julho 12, 2017

Thoreau aos 200 - 

JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 11/07
Quem lê Henry David Thoreau? Passam amanhã 200 anos do seu nascimento. E os artigos da efeméride não são entusiastas. Thoreau parece "irrelevante", "anedótico", "adolescente". Para voltar ao início: quem lê Thoreau, hoje?

Resposta: eu. Poderia argumentar que a minha costela anarquista é a melhor da minha anatomia política –e uma fonte de equívocos para quem não entende direito o meu "conservadorismo".

Mas devo a Thoreau essa costela. Lembro-me de ler "Walden", pela primeira vez, em plena adolescência. Alguns dirão que "Walden" é, precisamente, um livro adolescente escrito para adolescentes. Ali temos o autor, na primeira pessoa do singular, a relatar dois anos e dois meses de vida no bosque. Afastado da "civilização", enfim, como um Rousseau americano.

A visão é superficial e ignora, pelo menos, duas coisas. A primeira é a beleza da prosa. Como são belas as manhãs em Thoreau –"a manhã traz de volta as eras heroicas" etc., cito de cor– e como são certeiras as suas observações mundanas. "Todos nos rimos das modas antigas", escreve ele, "e todos seguimos religiosamente as modas novas" (também cito de cor). É frase que fica gravada para sempre.

Por causa dele, aprendi a rir mais depressa das modas novas do que das antigas, o que me impediu de as seguir com um entusiasmo –agora, sim– adolescente. Falo de modas ideológicas ou indumentárias, tanto faz: o último grito não passa de um grito.

E também por causa dele, confissão pessoal, cheguei aos 41 sem nunca ter usado relógio. Somos escravos do tempo mas não precisamos exibir as correntes.

Mas leituras superficiais de Thoreau ignoram outro ponto: a escolha de viver junto ao lago Walden expressa um desejo nobre que define toda a sua obra. Qual? O desejo de ser deixado em paz.

Bem sei que, nas sociedades infantilizadas em que vivemos, exigimos da autoridade central uma companhia intrusiva. Não queremos o Estado nas suas funções básicas; exigimos um Estado máximo até para as coisas mínimas.

Na sua "A Desobediência Civil", o programa das festas é diferente para Thoreau: "o melhor governo é o que menos governa", diz ele, logo de início, na impossibilidade de ter governo nenhum.

O texto não se limita a uma condenação da escravidão e da guerra, promovida por um Estado imoral. Thoreau vai mais longe –e ocupa-se de questões pré-políticas que nunca verdadeiramente nos abandonam. Será que o Estado substitui a consciência individual? Ou esta pertence apenas aos homens, o que logicamente exclui um Estado moralista que determina como devemos viver ou morrer?
Cem anos antes das grandes carnificinas do século 20, Thoreau vislumbrou as consequências trágicas dessa transferência de responsabilidade moral do indivíduo para o Estado.

A primeira consequência é a atribuição de um poder abusivo a homens limitados e corrompíveis. A segunda é a transformação de uma sociedade de homens livres, moralmente livres, em uma organização de autômatos que se limitam a seguir ordens vindas de cima.

Quando escutamos as desculpas de Eichmann em Jerusalém, é impossível não lembrar as manhãs gloriosas de Thoreau.

O desejo de sermos deixados em paz é também o desejo de protegermos o nosso caráter.

Discórdias sobre o meu amigo? Várias. Não tenho da "civilização" a visão dantesca que ele cultiva. Digo mais: Thoreau só escreve como escreve porque ele é, acima de tudo, um homem civilizado.

Mas o essencial não mora aqui. Gosto de ler Thoreau nos momentos confusos, só para lembrar verdades límpidas como as águas do lago Walden.

A vida é minha. O tempo é escasso. As modas de hoje são gargalhadas futuras. Por vezes, a multidão que interessa é a multidão de um único homem. O poder político é necessário, mas não deixa de ser um mal necessário. E não assiste a nenhum político, a nenhum governo, a nenhum Estado, a condução da minha alma.

No bicentenário do nascimento, Thoreau simboliza a coragem da liberdade. Toda gente tem a palavra "liberdade" na boca. Mas raros são aqueles que possuem a coragem suficiente para a viver. Um adolescente? Engraçado. Não conheço autor mais exigente, mais indispensável –e mais adulto.


sexta-feira, 30 de junho de 2017

A decadência da civilização. .. /João Pereira Coutinho

sexta-feira, maio 05, 2017

Olhos abertos, boca fechada! - 

JOÃO PEREIRA COUTINHO


FOLHA DE SP - 05/05


A decadência da civilização é coisa divertida. Ainda me lembro do tempo em que a minha avó ensinava algumas regras de etiqueta. Coisas simples, como não comer com as mãos ou não olhar pasmado para as pessoas. "Menino, maneiras!" E o menino, com a dificuldade própria dos selvagens, tentou refinar-se.

Podemos dizer que usa talheres. E não tem por hábito imitar o personagem central de "Laranja Mecânica", com os olhos esbugalhados, a olhar em volta como um demente.

Pois bem: que diria a minha avó - que hoje faria 93 anos - sobre a mais recente recomendação da Universidade de Oxford aos seus estudantes?

Leio na imprensa britânica que a Unidade para a Igualdade e a Diversidade está preocupada com "microagressões racistas". Essa frase é todo um manicómio. "Unidade para a Igualdade e a Diversidade". "Microagressões racistas". Matem-me. Já. E depois enterrem-me: Oxford afirma que desviar o olhar quando se fala com "alguém" (leia-se: negro, asiático, talvez esquimó) pode ter consequências nefastas na saúde mental do outro.

Não pode, gente: se o outro se sente ofendido porque alguém desviou o olhar é porque já não tem grande saúde mental para preservar.

Além disso, Oxford também recomenda que ninguém seja inquirido sobre a sua origem. "De onde vem?" deixou de ser uma curiosidade normal entre gente normal - e internacional. É um ofensa que esconde, sei lá, um prazer perverso, colonialista, obviamente genocida. Presumo que, para a Unidade, o ideal é ninguém falar com ninguém - mas sempre de olhos abertos, como peixes no aquário.

Comecemos pelo óbvio: na sua ânsia paranóica de combater o "racismo", a Unidade comete uma "macroagressão racista". Porque parte sempre do pressuposto de que um branco que desvia o olhar perante um negro é um nazista em potência. Não existem outras razões: distracção, cansaço, timidez, educação. Ou a velha e boa indiferença que é a base de uma sociedade tolerável.

A Unidade, como qualquer organismo totalitário, inverte a presunção de inocência. E, como qualquer organismo totalitário, condena com base em suposições. Pior: condena o que acredita existir na cabeça dos outros. O racismo já não é um crime objectivo, ou seja, identificável em palavras ou actos. Pode ser um delito de consciência. Socorro?

terça-feira, 7 de março de 2017

"Metade da fúria contra Trump é de uma hipocrisia sem limites"

terça-feira, março 07, 2017

Metade da fúria contra Trump é de uma hipocrisia sem limites -

 JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 07/03

1. Donald Trump pode ser mau para a América mas é bom para o negócio. Eis, em resumo, uma conversa tida com um jornalista americano –ainda antes da eleição.
Ele, democrata desde o berço, contava-me os seus dilemas. Politicamente falando, o Donald não lhe oferecia optimismo e confiança. Mas, por outro lado, ele tinha família para sustentar. Os jornais já tinham conhecido melhores dias. E a presidência Obama, apesar de um escândalo aqui e ali, era um tédio sentimental.

Com o Donald, pelo contrário, haveria matéria diária para oferecer às massas. Aliás, não apenas com o Donald: qualquer republicano era sempre garantia de melhores vendas. Moral da história?

Ele votaria Hillary (por princípio) mas torceria por Trump (secretamente). "Foi a mesma coisa com Bush", disse. E acrescentou: "Você acha que Al Gore ou John Kerry vendem um único exemplar?".

Escusado será dizer que o ianque tinha razão. A sabedoria chinesa aconselha qualquer ser humano a não viver em tempos interessantes? A sabedoria chinesa não tem jornais para vender.

Basta olhar para os números. Kyle Smith, no "New York Post", relembra alguns: no seu discurso ao Congresso, 48 milhões de americanos assistiram ao espectáculo Trump (o Oscar, "by the way", teve 33 milhões).

Mas há mais: Trump foi um bálsamo para as assinaturas do "The New York Times" ou do "The Wall Street Journal", que subiram a pique. Sem falar da CNN ou da Fox News, que melhoraram dramaticamente o ibope.

Mas o milagre Trump não ficou pelas notícias. A sátira televisiva nunca conheceu dias tão solares. Trump ressuscitou o "The Daily Show", idem para o "The Late Show", e ofereceu os melhores resultados do "Saturday Night Live" (em 23 anos).

E a tendência, opinião pessoal, é para subir. A mídia, como diz o fanfarrão, é "inimiga do povo"? Isso é música celestial para os ouvidos das redações. Com o Donald, o jornalismo adquire um renovado propósito –e uma épica missão.

Eu próprio, à minha insignificante escala, já estou grato ao demente. Durante anos, estudei anonimamente a democracia e as suas metástases (como o chamado "populismo"). Desde a eleição de Trump, são regulares os convites (pagos) para iluminar o povo sobre temas tão solenes. Não é de excluir um livro sobre o assunto.

Metade da fúria contra o presidente americano é justificada e genuína. Mas a outra metade, sejamos francos, é de uma hipocrisia sem limites: aqueles que marcham contra Trump, ou aqueles que marcharam contra as guerras de Bush, são os mesmos que mais faturam com ele.

Se houvesse justiça neste mundo, o "The New York Times" ou a CNN já teriam partilhado os lucros dos últimos meses com o santo padroeiro que chegou à Casa Branca.

2. "Cresce apoio gay a Marine Le Pen", avisava esta Folha. Bizarro? À primeira vista, talvez. À segunda, nem tanto.

O jornalista Daniel Avelar explica que a Frente Nacional é o partido preferido da comunidade LGBT na França. Motivos? Sim, houve esforços para "desdemonizar" a legenda –e Florian Philippot, homossexual e vice-presidente de estratégia e comunicação do partido, tem sido exímio nessa tarefa.

Mas é preciso acrescentar um detalhe: a comunidade LGBT apoia Marine Le Pen porque teme, mais do que qualquer outro grupo, a potencial "islamização" de um país onde 7,5% da população (no mínimo) é muçulmana. Um medo justificado?

Prefiro responder à pergunta com outra pergunta: que tipo de tratamento os gays, lésbicas ou bissexuais recebem em países de maioria muçulmana?

Agora respondo: a tolerância pode ir da prisão (Omã, Egito, Síria etc.) até a pena de morte (Arábia Saudita, Irã, Iêmen etc.). O mapa do Oriente Médio é o terror de qualquer homossexual.

Para usar as palavras do filósofo Nassim Nicholas Taleb, a comunidade LGBT da França é um caso de "skin in the game". Ela sente na carne aquela belíssima expressão brasileira sobre a pimenta e o refresco.

Nós, que não temos a "pele no jogo", podemos considerar esse medo um preconceito, uma aberração, um insulto, uma calamidade. É indiferente. A única forma de compreender o populismo, e se possível travá-lo, é descer da torre de marfim e provar o nosso refresco com a pimenta dos outros.


terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Ensaio com a Ansiedade, o Medo, a Velhice, a Mortalidade / João Pereira Coutinho

terça-feira, janeiro 17, 2017

Sobreviver a grandes naufrágios é uma via estreita e de final incerto - 

JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 17/01

Entro na livraria e pasmo: duas mesas, longas, cheias, com títulos que se repetem. A lista é exaustiva mas exaustão é preciso: "Como Viver sem Ansiedade"; "Livre de Ansiedade"; "As 10 Melhores Técnicas para Vencer a Ansiedade" etc., etc.

Depois, os dramas sobem de tom: "Cure os Seus Medos"; "As Regras Essenciais para Viver sem Medo"; "Como Parar o Envelhecimento"; "A Dieta Anti-idade" etc., etc.

Finalmente, e após todas as tormentas, o santo graal: "Pequenos Passos para a Imortalidade"; "Curar para a Imortalidade"; "A Promessa de Imortalidade" etc., etc.

A moda não começou hoje. Mas só hoje reparei na moda. Duas conclusões. A primeira é que a nossa sociedade já não admite certos traços da condição humana que os nossos antepassados compreendiam e com os quais conviviam do berço até a cova. Ansiedade. Medo. Velhice. Mortalidade.

A história da literatura, desde Homero, é um catálogo desse rio permanente. Hoje, é uma mancha que estraga a "euforia perpétua", como a chamou Pascal Bruckner, e que humilha os seus sofredores.

Amigos meus, ansiosos, não sofrem apenas de ansiedade. Eles sofrem com a ansiedade de terem ansiedade. Eles têm medo de terem medo. Eles olham para a velhice e para a morte como os homens primitivos olhavam para trovões e tempestades.

Mas os títulos mostram outra coisa: a pós-modernidade não passa de uma ilusão. Vivemos ainda tempos racionalistas: se existe um problema, qualquer problema, então existe uma solução para ele. Nem a morte escapa a estes "engenheiros de almas humanas". A ideia de que alguns problemas não têm solução –uma solução clara e distinta, como diriam os cartesianos– é intolerável para a sociedade "prêt-à-porter". Que fazer?

Sugestão: assistir ao filme "Manchester à Beira-Mar", que estreia nesta semana, uma espécie de "missa solemnis" filmada por Kenneth Lonergan. Então encontramos Lee (Casey Affleck, em papel que só aparece uma vez na vida), um "handyman" que vive em Boston.
Ele cumpre o trabalho com o entusiasmo dos condenados. Bebe forte e bate forte, normalmente no mesmo bar. Não admite os floreados sociais que decoram as nossas existências –conversas, alegrias, intimidades. Para quem gosta de mortos-vivos, Lee é a prova de que é possível encontrar um fora da fantasia.

Mas eis que chega um telefonema com uma notícia funesta. É o primeiro momento em que Lee permite a sombra de uma emoção. De volta à cidade de Manchester, de onde saiu anos antes, Lee volta também ao passado –um passado brutal, infernal, inominável.

"Manchester à Beira-Mar", apesar de alguns excessos formais que se dispensam (quem ainda usa a música de Albinoni para momentos dramáticos?), cumpre duas ideias antiquadas.
A primeira, explorada em tempos por um certo escritor russo, é a certeza de que não existe nada de tão insuportável como um crime sem castigo –e, por essa via, sem expiação.

Nesse passado, que se vai revelando em sutis "flashbacks", Lee confessou à polícia a sua tragédia. A polícia escutou-o, compreendeu-o e liberou-o.
A reação de Lee é uma mistura de incredulidade e revolta –a revolta de quem não terá punição externa; apenas interna. Em dez minutos, Kenneth Lonergan joga no lixo a ideia simpática de que a "culpa" não passa de uma relíquia judaico-cristã.

Mas existe uma segunda ideia que nos permite medir a vida de Lee e a vida daqueles que "seguiram em frente", para usar a expressão das novelas. Acontece quando ele conversa com a ex-mulher, ou melhor, quando contemplamos a incapacidade de haver qualquer conversa porque até as palavras têm limites.
Só então perguntamos qual dos destinos será pior: o mundo petrificado de Lee ou a busca desesperada de fugir desse mundo rumo a um simulacro de normalidade.

"Manchester à Beira-Mar" não é o filme ideal para quem lê "Como Viver sem Ansiedade" ou "Cure os Seus Medos". Mas é o filme ideal para uma classe de adultos que sabe, ou pelo menos suspeita, que sobreviver a grandes naufrágios é uma via estreita, longa e de final incerto.

No primeiro diálogo do filme, quando a vida ainda era uma vida, Lee conversa com o sobrinho pequeno para lhe perguntar quem ele levaria para uma lha deserta: o pai ou o tio?

Ironicamente, para essa ilha deserta só viajou Lee. E quando nos perguntamos se algum dia haverá um barco para o visitar ou até resgatar, o pano desce com pudor. O futuro é um porto distante para quem navega um dia de cada vez.


terça-feira, 18 de outubro de 2016

"Desde John Lennon convivemos com a praga das 'celebridades humanitárias' / João Pereira Coutinho

terça-feira, outubro 18, 2016

Desde John Lennon convivemos com a praga das 'celebridades humanitárias' - 

JOÃO PEREIRA COUTINHOResultado de imagem para foto de Bob D

FOLHA DE SP - 18/10

1. Serão precisas mais mulheres na política? A pergunta, confesso, sempre me provocou urticária mental. E as respostas também: sim, diziam os eruditos, e depois não acrescentavam uma única razão válida para defender a "política no feminino" (ou, em casos extremos, "cotas para mulheres" em listas eleitorais ou cargos institucionais).

Havia sempre a palavra "igualdade", um vocábulo poético e nulo. Mas ninguém demonstrava –seriamente, empiricamente– que tipo de contributo extra as mulheres dão à política pelo simples fato de serem mulheres.

Perante esse vazio, eu defendia a minha posição inicial: igualdade de oportunidades, tudo bem; mas é o mérito, e não a anatomia, que as sociedades democráticas devem premiar.


Confesso que tenho de repensar os meus conceitos –por causa da eleição presidencial americana. Segundo informa esta Folha, a revista "The Atlantic" realizou uma enquete sobre Hillary Clinton e Donald Trump. Conclusão: se apenas os homens votassem, Trump seria eleito presidente dos Estados Unidos.

Acontece que as mulheres também votam e são elas que concedem uma maior vantagem para Hillary. Essa vantagem, de acordo com as últimas pesquisas, garante a vitória da donzela por dois dígitos.

Claro que, para sermos rigorosos, o voto feminino estaria sempre com Hillary. Primeiro, porque ela é democrata. Depois, porque é mulher. E, no caso particular de 2016, porque Trump ficou "persona non grata" entre as senhoras depois do "Pussygate".

Seja como for: se Hillary for eleita em novembro, é às mulheres americanas que o mundo deve agradecer.

2. Há mulheres e mulheres. De um lado, elas salvam os Estados Unidos de um destino grotesco; do outro, elas envergonham a restante classe quando andam pela Europa em "missões humanitárias".

Para começar, Pamela Anderson, "atriz", visitou Julian Assange na sua gaiola londrina e mostrou preocupação com a saúde do australiano.

"Muito pálido", disse ela, uma descrição que não me convence: Assange, repito, é australiano; Pamela, relembro, está habituada à pigmentação da série "Baywatch". Não admira que, aos olhos dela, Assange tenha as feições de um cadáver.

De resto, a pergunta fundamental é outra: o que levou Pamela Anderson a visitar Assange na embaixada do Equador? Saber que a "atriz" também é ativista dos direitos dos animais só serve de insulto ao pobre Assange.

Do outro lado do Canal da Mancha, o nome é Lily Allen, "cantora". No campo de refugiados de Calais, na França, a sra. Lily pediu desculpas públicas a um adolescente afegão de 13 anos. "Em nome do meu país", disse ela, com as câmeras a filmar o momento.

A frase é inane por motivos óbvios: a culpa pela tragédia dos refugiados deve ser depositada em Damasco e aos pés do terrorismo islamita, não em Londres. Mas a pergunta fundamental, uma vez mais, é outra: o que levou Lily Allen a visitar um campo de refugiados?

Bem sei que, desde John Lennon, a praga das "celebridades humanitárias" nunca mais nos largou. Falo de pessoas semialfabetizadas que, não contentes com o sucesso artístico, desejam consolar o ego com assuntos mais adultos.

Mas o meu problema com as "celebridades humanitárias" não está na megalomania delas, aliás legítima. Está na atenção igualmente infantil que os jornalistas profissionais concedem aos caprichos dessas crianças.

Será que, naquele dia, em Calais, nenhum jornalista questionou seriamente o que estava ali a fazer?

3. Bob Dylan venceu o Nobel da Literatura e a polêmica instalou-se entre os críticos: mereceu? Não mereceu?

Eu, modestamente, acho que sim –mas a questão que me move é outra: e será que isso interessa? Não, não vou recorrer ao argumento clichê de lembrar a longa lista de autores que não venceram a medalha. Todos conhecemos os casos de Tolstói, Joyce, Nabokov, Borges etc. etc.

Prefiro olhar para o problema do avesso e recordar os que venceram: Carducci, Spittler, Sholokhov, Mo Yan etc. etc. Aqui entre nós: o leitor conhece algum deles? Leu a obra? É capaz de citar de cor algum título memorável?
Em caso negativo, o melhor é escutar um pouco de Bob Dylan. A ideia de que o Nobel confere qualidade e imortalidade a um autor é uma fantasia desmentida pelos fatos.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Não reclame do Big Brother... Já existe o banheiro transparente ! / João Pereira Coutinho

terça-feira, outubro 04, 2016

A civilização só existe pela recusa da transparência totalitária - 

JOÃO PEREIRA COUTINHOResultado de imagem para imagem de banheiro transparente

FOLHA DE SP - 04/10

Li há tempos que já existem banheiros transparentes na via pública. Não brinco. Seria na Ásia? Na China? Talvez, talvez. Mas o meu ponto é outro: qual é o problema de termos um vaso sanitário para uso (nosso) e contemplação (dos outros)?
Os moralistas dirão: é falta de pudor. Ou, melhor ainda, é uma redução da nossa humanidade ao estado mais animalesco. Concordo. Mas os moralistas não entendem que vivemos na "sociedade da transparência"?

Uso essa expressão porque ela é o título de um ensaio –mais um, primoroso– do filósofo Byung-Chul Han. E, a páginas tantas, o professor Han cita Jean-Jacques Rousseau (quem mais?). Escrevia Rousseau as palavras que se seguem: "Só um mandamento da moral pode suplantar todos os outros, a saber, este: nunca faças nem digas seja o que for que o mundo inteiro não possa escutar."

E conclui o genebrino, em antecipação do banheiro transparente: "Eu, pelo meu lado, sempre considerei como sendo o mais digno de apreço de entre os homens esse romano cujo desejo era que a sua casa estivesse construída de maneira a poder ver-se tudo o que nela se passava."

As palavras de Rousseau fazem parte do seu particular programa filosófico: uma crítica radical às mentiras da "civilização" –e uma apologia da vida "autêntica" que existiria no estado da natureza.

Sim, eu sei: Rousseau nunca defendeu um regresso à selva. Mas as suas propostas transportam ainda o aroma selvático de um tempo em que o homem não precisava de "artifícios" (como portas opacas ou papel higiênico, imagino eu) para conhecer a felicidade pura.

Como relembra Byung-Chul Han, Rousseau tinha uma preferência por cidades pequenas, onde "cada um está sempre sob os olhos do público, o censor nato dos costumes dos outros" e onde "a polícia exerce uma vigilância fácil sobre todos".
Arrepiado, leitor? Não esteja. Se o banheiro transparente ainda é um exclusivo asiático, o Ocidente já cultiva há muito os seus próprios banheiros transparentes. Basta olhar para as "redes sociais", onde a maioria gosta de expor a intimidade com a mesma naturalidade com que um animal defeca no mato.

A esse respeito, recordo sempre um amigo que me dizia ter cortado relações com um cunhado porque ele publicara as fotos do filho bebê no Facebook. Fotos do bebê vestido, despido; brincando, dormindo, tomando banho; não sei se havia um penico no portfólio, mas você entende a ideia. O meu amigo considerava o gesto aberrante; o familiar discordava e, mais, nem percebia onde estava o erro.

O nosso mundo é o mundo sonhado por Rousseau. "A polícia exerce uma vigilância oficial sobre todos?" Afirmativo. Vivemos em democracia. Mas o Estado, pelos usos e abusos da tecnologia, sabe mais sobre os cidadãos do que em qualquer outra era histórica. Sabe quanto você ganha ou gasta; com quem vive, com quem fala; para onde viaja, onde fica; e, nas matérias mais íntimas, não é preciso uma polícia política. O cidadão revela voluntariamente o que sobra da sua existência.
Imagino um ex-agente da Pide portuguesa ou da KGB soviética a suspirar de nostalgia: "Tivemos tanto trabalho com vigilâncias, grampos, torturas –e agora tudo isso é grátis!"

Mas não é apenas o Estado que vive dentro do nosso banheiro transparente. "Cada um está sempre sob os olhos do público, o censor nato dos costumes dos outros"?
Afirmativo novamente. Como escreve Byung-Chul Han, a "sociedade da transparência" consegue a proeza de nos transformar em seres vigiados e vigilantes ao mesmo tempo. Não apenas por uma autoridade externa –um Big Brother clássico. Mas porque esse Big Brother, agora, somos nós.

"E qual é o problema?", pergunta o leitor que gosta de publicar fotos dos filhos no Facebook.
O problema é que a nossa civilização só existe pela recusa da transparência totalitária. "A arte é a natureza do homem", dizia Burke.

Traduzindo: aquilo que nos separa dos animais é o artifício, as convenções, até as repressões. É desse artifício que brota a arte, o conhecimento, a sedução, a paz possível.

E é também por causa dessa "cortina" que nos podemos retirar do mundo para dar descanso à vida: a vida que pensa, sente, imagina, planifica.

Rousseau escrevia que o luxo da civilização corrompia o homem.

A "sociedade da transparência" considera que a civilização já é um luxo. O futuro dos banheiros transparentes não terá nem civilização, nem luxo, nem homens.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

"Vamos ser honestos? A democracia não é o melhor regime político..." / João Pereira Coutinho

terça-feira, setembro 27, 2016


Pessoas ignorantes em política devem ter direito de votar? - 

JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 27/09
Vamos ser honestos? A democracia não é o melhor regime político. Você sabe disso. As maiorias, muitas vezes, elegem governos incompetentes, mentirosos, corruptos. Até autoritários. Devemos conceder o direito de voto a quem não tem inteligência suficiente para escolhas responsáveis?

O cientista político Jason Brennan defende que não. O livro, que provocou polêmica nos Estados Unidos, intitula-se "Against Democracy" ("contra a democracia"). Não é um panfleto populista contra o populismo circunstancial de Donald Trump. É um estudo acadêmico com toneladas de bibliografia científica.

Tese do dr. Brennan: em todas as pesquisas disponíveis, os eleitores americanos são comprovadamente ignorantes sobre os assuntos da República. Desconhecem coisas básicas, como identificar qual dos partidos controla o Congresso. Para usar a terminologia de Brennan, a maioria dos eleitores se divide em "hobbits" e "hooligans".


Os "hobbits" são apáticos, apedeutas, raramente votam –e, quando votam, votam com a cabeça vazia.

Os "hooligans" são o contrário: fanáticos, como os torcedores do futebol, defendendo os seus "clubes" de uma forma irracional, ou seja, tribal. É possível perguntar a um "hooligan" democrata se ele concorda com uma política de Bush e antecipar a resposta. (É contra, claro.)

E depois, quando o pesquisador comunica ao "hooligan" que a referida política, afinal, é de Obama, o "hooligan" muda de opinião; ou afasta-se; ou indigna-se. Como dizia T. S. Eliot sobre Henry James, a cabeça de um "hooligan" é tão dura que nenhuma ideia é capaz de violá-la.

O eleitor ideal, para Brennan, é um "vulcan": alguém que pensa cientificamente sobre os assuntos. Mas os "vulcans" são artigo raro. Em democracia, somos obrigados a suportar as escolhas de "hobbits" e "hooligans".
Felizmente, Jason Brennan tem uma solução: se as pessoas precisam de uma licença para dirigir, o mesmo deveria acontecer para votar. "Epistocracia", eis a proposta. O governo dos conhecedores. Antes de votar, é preciso provar.

Existem vários modelos de epistocracia. Dois exemplos: todos teriam direito a um voto e depois, com a progressão acadêmica, haveria votos extra; ou, em alternativa, só haveria votos para quem tivesse boa nota em exame de política. Faz sentido?

Não, leitor, não faz. Seria possível escrever várias páginas de jornal a desconstruir o livro de Jason Brennan. Por falta de espaço, concentro-me na sua falha básica: Brennan, um cientista político, não compreende a natureza da política.

Como um bom racionalista, Brennan acredita que os fatos políticos são neutros; consequentemente, as escolhas do eleitor podem ser "científicas".
Acontece que nunca são: a política, ao contrário da matemática ou da geometria, lida com a complexidade e a imperfeição da vida humana.

Um "exame" de política, por exemplo, dependeria sempre das preferências políticas dos examinadores –nas perguntas e na correção das respostas. Brennan até pode defender perguntas "factuais" para respostas "factuais". Mas a simples escolha de certos temas (mais economia) em prejuízo de outros (menos história) já é uma escolha política.

Além disso, acreditar que diplomas acadêmicos conferem a alguém um poder especial em política é desconhecer o papel que os "intelectuais" tiveram nos horrores do século 20.

Ou, para não irmos tão longe, é ignorar o estado de fanatismo ideológico que as universidades, hoje, produzem e promovem.

Por último, não contesto que a maioria desconhece informação política relevante. Mas as pessoas não precisam de um Ph.D. para votarem. Basta que vivam em sociedade. Que sintam na pele o estado dos serviços públicos. O dinheiro que sobra (ou não sobra) no final do mês. A segurança que sentem (ou não sentem) nos seus bairros, nas suas cidades, nos seus países. E etc. etc.

Como lembrava o filósofo Michael Oakeshott, não se combatem ditadores com a balança comercial. Tradução: a política não depende apenas de um conhecimento técnico; é preciso um conhecimento prático, tradicional, vivencial. O conhecimento que só a experiência garante.

A democracia pode não ser o regime ideal para seres humanos ideais. Infelizmente, eu não conheço seres humanos ideais. No dia em que Jason Brennan me mostrar onde eles vivem, eu prometo jogar a democracia no lixo.


terça-feira, 16 de agosto de 2016

"As mulheres caminham integralmente cobertas, repito. Mas o homem avança na frente, expressão pública e visível do lugar que a mulher ocupa na hierarquia dos sexos"

terça-feira, agosto 16, 2016

Estado de Direito não deve permitir a exibição pública de mulheres-múmias - 

JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 16/08

1. Caminho pelo centro de Londres. Várias mulheres de burca passam por mim. Como sempre, sinto desconforto físico e moral.

Essas coisas não se sentem, dizem. Nem se escrevem. Que direito tenho eu de impor um código de vestuário sobre terceiros?

Admito: nenhum. Mas quando vejo uma mulher transformada em múmia, não penso em mim. Penso nela. Aquilo é uma escolha pessoal? Ou, na esmagadora maioria dos casos, uma forma de submissão ao poder masculino?

As mulheres caminham integralmente cobertas, repito. Mas o homem avança na frente, expressão pública e visível do lugar que a mulher ocupa na hierarquia dos sexos.

É também por isso que concordo com a proibição de burcas ou véus integrais no espaço público europeu –já acontece na França; há debate na Alemanha. Primeiro, porque é uma forma de respeito pelos outros: viver nas sociedades ocidentais significa partilhar um código mínimo de valores ou comportamentos.

E, como já escrevi nesta Folha, se eu não ando nu pelas ruas (apesar da minha costela panteísta), agradeço que os outros não andem tapados da cabeça aos pés.

Mas a proibição é também uma forma de respeito pelas mulheres. Excetuando casos extremos, defendo que o Estado não entre na casa dos cidadãos. Que o mesmo é dizer: se uma mulher deseja estar integralmente vestida ou despida entre quatro paredes, problema dela.

Coisa diferente é falar do mundo que existe fora das quatro paredes.

Será que um Estado de Direito deve permitir a exibição pública de uma mulher encerrada em presídios de tecido? Ou deve declarar, em alto e bom som, que não há qualquer tolerância para essas manifestações de brutalidade masculina?

Claro que alguns crentes afirmam o oposto: brutalidade é remover a burca e o véu integral sem respeitar "culturas diferentes". Engraçado: eu julgava que a violência sobre as mulheres não era uma "cultura" digna de respeito entre pessoas civilizadas.

E, já agora, relembro aos multiculturalistas que o Ocidente também é uma "cultura diferente". Por que motivo a "tolerância" perante a diferença se aplica aos outros –mas não a nós?
Seja como for, só posso aconselhar às brigadas a leitura da história que o "Daily Telegraph" publica sobre a libertação da cidade síria de Manbij.

Foram dois anos sob as garras do chamado "Estado Islâmico". A libertação chegou com as tropas americanas. E quando as mulheres viram os soldados entrarem na cidade, o que fizeram? Rasgaram as burcas e, para festejar, fumaram cigarros.

Admito que essas duas ações –rasgar burcas, fumar cigarros– possam ofender multiculturalistas e higienistas em partes iguais. Mas quando vejo uma mulher de burca nas ruas de Londres, é também essa a minha vontade: convidá-la a sair da masmorra e oferecer-lhe um cigarro para comemorar.

2. Estreou no Brasil "Amor & Amizade", o mais recente filme de Whit Stillman. Prometo escrever em breve sobre o assunto. Merece. Primeiro, porque Stillman filma pouco mas filma barbaramente bem (conheci-o com "Metropolitan" e virei cliente). Depois, porque o diretor pegou uma novela "menor" de Jane Austen ("Lady Susan") e acertou no essencial: a cínica misoginia de Jane Austen.
Essa verdade não cai bem em certas fãs da escritora, que veem em Austen uma espécie de feminista "avant la lettre". Não era. Os homens, na prosa dela, podem ser tontos ou vulgares. Mas as mulheres, exceções à parte, são retratadas como seres gananciosos ou reptilianos. Só uma mulher poderia escrever assim sobre as outras mulheres.

E o que é válido para a literatura, é válido para o desporto. Leio na "The Economist" que a Universidade Harvard estudou "padrões de reconciliação" entre homens vs. homens e mulheres vs. mulheres depois de jogos "confrontacionais" (tênis, ping-pong, badminton, boxe).

Conclusão: quando o confronto termina, os homens têm mais contato físico (cumprimentos, abraços, palmadas nas costas etc.) do que as mulheres. As donzelas, com má cara, despacham o assunto rapidamente.

Como explicar a diferença? Os antropólogos de Harvard não sabem. Um pouco de Jane Austen talvez fosse útil para eles. Da minha parte, prometo apenas que vou prestar mais atenção aos Jogos do Rio. Só para confirmar se a "guerra dos sexos" é samba de uma nota só.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

"Mulheres e cachorros" / João Pereira Coutinho

terça-feira, fevereiro 16, 2016

 JOÃO PEREIRA COUTINHO

Mulheres e cachorros -

Folha de SP - 16/02

Dúvidas sobre o casamento, todos temos. Mas Charles Darwin enfrentou o dilema com o racionalismo característico do século 19. Em 1838, perante o dilema de casar ou não casar com a prima Emma Wedgwood, o eminente cientista resolveu fazer uma lista com os prós e contras do matrimônio.

Conhecia a história, mas confesso que nunca tinha lido a lista com atenção. Um jornal inglês, no aniversário do nascimento de Darwin (12 de fevereiro) e antes do dia de São Valentim, publicou essa preciosidade.
Então encontramos duas colunas, nas quais razões para não casar suplantam incentivos para dar o nó.

Entre as primeiras, Darwin elenca o fim da liberdade para ir onde quiser; a necessidade de socializar com os parentes da mulher; a diminuição do dinheiro disponível para livros (e do tempo correspondente para lê-los); e a hipótese de haver discussões conjugais que são sempre uma perda de tempo (grande verdade, Charles).

Nas razões para casar, Darwin é mais lacônico: é bom ter companhia (sobretudo na velhice); é bom ter alguém para tomar conta da casa; e, bem vistas as coisas, "uma mulher sempre é melhor que um cachorro".

Apesar da escassez de motivos, Darwin acabou por casar. Podemos fazer listas e listas e listas. Mas o amor que sentimos por uma mulher acaba com qualquer lista.

Passaram quase dois séculos. E esse amor que Darwin sentia por Emma -visível nos seus escritos mais pessoais- talvez não se ajuste aos tempos modernos. Hoje, as manifestações de afeto do sexo masculino podem ser formas sutis de degradação do feminino. Estranho?

Longe disso. Ainda sobre o dia de São Valentim, a jornalista Jessica Abrahams escreveu na revista "Prospect" um ataque a esse dia apaixonado.

Para Abrahams, a data de São Valentim só expressa o "sexismo benevolente" que os homens ainda cultivam em relação às mulheres. Esse "sexismo", apesar de "benevolente", é apenas outra forma de subjugar o sexo feminino, atribuindo às mulheres um papel "démodé" e francamente inferior.

Oferecer flores, chocolates ou simplesmente "fazer a corte" é reduzir a mulher a um sujeito passivo e, quem sabe, sexualmente disponível. Exatamente como ocorre quando um cavalheiro abre a porta a uma dama ou paga a conta do jantar.

As palavras de Abrahams são corajosas e certeiras. Experiência pessoal. Durante anos, perdido em clichês conservadores, também eu abria portas a senhoras ou torrava o cartão de crédito em refeições elaboradas. Mas um dia, em Lisboa, um exemplar da espécie rosnou qualquer coisa contra o meu "sexismo benevolente".

Acordei do meu sono embestado e, sem exagero, renasci para a masculinidade. Para começar, os jantares eram pagos rigorosamente a meias -bebida a bebida, azeitona a azeitona-, e a poupança permitiu-me investir o pecúlio em livros, viagens e farras privadas.

E, em matéria de portas abertas, devo ter quebrado várias dentaduras a senhoras emancipadas. No início, ainda pensei em avisar: "Cuidado com a porta, madame!". Mas isso seria mais um gesto de "sexismo benevolente", especialmente quando a libertação das mulheres permite que elas paguem do próprio bolso uma reconstituição dentária.

Claro que, na relação entre sexos, ainda conservei por uns tempos noções arcaicas de afeto e galanteio. Flores, chocolates, mensagens privadas. Agora, graças a Jessica Abrahams, compreendo que reduzi as mulheres a um papel submisso e indigno. Mil perdões a todas elas.

E mil avisos a todos eles: rapazes, não sejam selvagens. Tratar uma mulher como mulher é, segundo Jessica Abrahams, agir de acordo com "pressupostos baseados em papéis de gênero". Melhor não agir. Melhor não ter pressupostos. Se isso significar uma separação permanente entre eles e elas, paciência: melhor a extinção da espécie do que o "sexismo benevolente".

E para quem pensa no casamento, nada melhor que reler a lista de Darwin e riscar os argumentos a favor do "sim". Até porque Darwin estava errado. "Uma mulher sempre é melhor que um cachorro?"

Isso é sexismo benevolente. Porque há mulheres e mulheres. E há cachorros e cachorros.


sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

"Nós, os vermes..." João Pereira Coutinho / blog do Murilo


terça-feira, agosto 26, 2014

Nós, os vermes - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 26/08
Se nós, ocidentais, não respeitamos o que somos, por que motivo devem os outros respeitar-nos?

Que beleza, leitor: um grupo intitulado Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL) agora domina partes da Síria e do Iraque. Melhor: já faz vídeos. Com decapitações de ocidentais. E proclamações: existe um novo Califado, dizem os assassinos, renascido das cinzas otomanas que a Primeira Guerra provocou.

Essa utopia terrena está atraindo jihadistas do mundo inteiro. Do mundo inteiro, vírgula: do Reino Unido em especial. O premiê David Cameron está pasmo. Membros do seu governo, "idem". E a "inteligência" britânica quer saber como é possível que cidadãos britânicos, que nasceram e cresceram à sombra do Estado de bem-estar social, viram as costas ao Ocidente para lutarem contra o Ocidente.

Boas perguntas. Nenhuma delas é especialmente misteriosa. Qualquer pessoa com dois neurônios compreende que, no caso do Reino Unido, a produção de jihadistas explica-se pela belíssima cultura de "tolerância" que, durante duas gerações, permitiu que muitas mesquitas locais fossem antros de ódio e extremismo.

Só Deus sabe --ou Alá, já agora, para não ferir certas sensibilidades ecumênicas-- a extrema dificuldade legal que Londres teve para extraditar Hamza al-Masri, o famoso "Capitão Gancho" da mesquita de Finsbury Park, em Londres, para os Estados Unidos, onde era acusado de vários complôs. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem estava preocupado com os "direitos humanos" de um terrorista, mas não com os direitos das vítimas que ele potencialmente causava com as suas palavras de loucura e morte.

E só agora a ministra do Interior britânica, a conservadora Theresa May, promete legislação pesada para o extremismo e as incitações ao ódio --em espaços públicos, escolas, mesquitas etc. Até os trabalhistas aplaudem a "coragem" da senhora.

Não admira: como informa o "Daily Telegraph", existem mais cidadãos britânicos de origem muçulmana marchando nas fileiras do EIIL do que no exército de Sua Majestade. Eis um retrato da pátria de Churchill.

Mas há outro. Porque não existem apenas fanáticos islamitas que, dentro do Ocidente, pregam a morte do Ocidente. É preciso relembrar os fanáticos revisionistas e multiculturalistas que, na mídia e nas universidades, foram oferecendo as doces pastagens da retórica antiocidental.

Caso clássico: anos atrás, Ian Buruma e Avishai Margalit escreverem um livro que inverte o título (e a tese) do celebrado "Orientalismo" de Edward Said. Chama-se "Ocidentalismo" e é um estudo sobre a visão deturpada e grotesca do Ocidente produzida pelos seus inimigos.

E, no topo da lista, está um longo rol de intelectuais ocidentais --de Spengler a Heidegger, sem esquecer o demencial Sartre-- para quem o Ocidente era um antro de decadência/declínio/corrupção/brutalidade/desumanidade/exploração (pode escolher à vontade). Essa retórica, escreviam os autores, acabou por emigrar para o mundo inteiro, Oriente Médio em especial. E é hoje repetida, "ipsis verbis", pela turma do EIIL.

No livro, há até um episódio pícaro (e grotesco; atenção, famílias) que ilustra bem como as más ideias viajam depressa. Acontece quando o Taleban tomou Cabul em 1996, pendurou o presidente afegão Najibullah no poste, encheu os seus bolsos de dólares e colocou cigarros entre os dedos quebrados do cadáver.

Mensagem: esse aí é um produto degenerado do Ocidente em seus vícios e ganâncias.

(Curioso, lembrei agora: as campanhas antifumo poderiam usar a imagem do antigo presidente afegão enforcado e com cigarros entre os dedos. E o lema: "Fumar prejudica a saúde." Mas divago.)

Porque a questão é glacial: se nós, ocidentais, não respeitamos o que somos ou temos, independentemente de todos os erros cometidos (e corrigidos: será preciso lembrar a escravatura, abolida por aqui e praticada ainda no resto do mundo?), por que motivo devem os outros respeitar-nos?

Gostamos tanto de nos apresentar como vermes que os outros acabam olhando para nós como vermes.

Soluções?

Deixemos isso para os líderes do mundo, como Barack Obama, que tipicamente não sabe o que fazer. (Uma sugestão: que tal reduzir à Idade da Pedra quem tem a mentalidade de homens das cavernas, senhor presidente?)

Mas já seria um grande contributo se o Ocidente fosse um pouco mais intolerante com a intolerância daqueles que recebemos, alimentamos, sustentamos --e enlouquecemos de ódio com o ódio que sentimos por nós próprios.


Postado por MURILO às 10:26