quarta-feira, julho 12, 2017
Thoreau aos 200 -
JOÃO PEREIRA COUTINHO
FOLHA DE SP - 11/07
Quem lê Henry David Thoreau? Passam amanhã 200 anos do seu nascimento. E os artigos da efeméride não são entusiastas. Thoreau parece "irrelevante", "anedótico", "adolescente". Para voltar ao início: quem lê Thoreau, hoje?
Resposta: eu. Poderia argumentar que a minha costela anarquista é a melhor da minha anatomia política –e uma fonte de equívocos para quem não entende direito o meu "conservadorismo".
Mas devo a Thoreau essa costela. Lembro-me de ler "Walden", pela primeira vez, em plena adolescência. Alguns dirão que "Walden" é, precisamente, um livro adolescente escrito para adolescentes. Ali temos o autor, na primeira pessoa do singular, a relatar dois anos e dois meses de vida no bosque. Afastado da "civilização", enfim, como um Rousseau americano.
A visão é superficial e ignora, pelo menos, duas coisas. A primeira é a beleza da prosa. Como são belas as manhãs em Thoreau –"a manhã traz de volta as eras heroicas" etc., cito de cor– e como são certeiras as suas observações mundanas. "Todos nos rimos das modas antigas", escreve ele, "e todos seguimos religiosamente as modas novas" (também cito de cor). É frase que fica gravada para sempre.
Por causa dele, aprendi a rir mais depressa das modas novas do que das antigas, o que me impediu de as seguir com um entusiasmo –agora, sim– adolescente. Falo de modas ideológicas ou indumentárias, tanto faz: o último grito não passa de um grito.
E também por causa dele, confissão pessoal, cheguei aos 41 sem nunca ter usado relógio. Somos escravos do tempo mas não precisamos exibir as correntes.
Mas leituras superficiais de Thoreau ignoram outro ponto: a escolha de viver junto ao lago Walden expressa um desejo nobre que define toda a sua obra. Qual? O desejo de ser deixado em paz.
Bem sei que, nas sociedades infantilizadas em que vivemos, exigimos da autoridade central uma companhia intrusiva. Não queremos o Estado nas suas funções básicas; exigimos um Estado máximo até para as coisas mínimas.
Na sua "A Desobediência Civil", o programa das festas é diferente para Thoreau: "o melhor governo é o que menos governa", diz ele, logo de início, na impossibilidade de ter governo nenhum.
O texto não se limita a uma condenação da escravidão e da guerra, promovida por um Estado imoral. Thoreau vai mais longe –e ocupa-se de questões pré-políticas que nunca verdadeiramente nos abandonam. Será que o Estado substitui a consciência individual? Ou esta pertence apenas aos homens, o que logicamente exclui um Estado moralista que determina como devemos viver ou morrer?
Cem anos antes das grandes carnificinas do século 20, Thoreau vislumbrou as consequências trágicas dessa transferência de responsabilidade moral do indivíduo para o Estado.
A primeira consequência é a atribuição de um poder abusivo a homens limitados e corrompíveis. A segunda é a transformação de uma sociedade de homens livres, moralmente livres, em uma organização de autômatos que se limitam a seguir ordens vindas de cima.
Quando escutamos as desculpas de Eichmann em Jerusalém, é impossível não lembrar as manhãs gloriosas de Thoreau.
O desejo de sermos deixados em paz é também o desejo de protegermos o nosso caráter.
Discórdias sobre o meu amigo? Várias. Não tenho da "civilização" a visão dantesca que ele cultiva. Digo mais: Thoreau só escreve como escreve porque ele é, acima de tudo, um homem civilizado.
Mas o essencial não mora aqui. Gosto de ler Thoreau nos momentos confusos, só para lembrar verdades límpidas como as águas do lago Walden.
A vida é minha. O tempo é escasso. As modas de hoje são gargalhadas futuras. Por vezes, a multidão que interessa é a multidão de um único homem. O poder político é necessário, mas não deixa de ser um mal necessário. E não assiste a nenhum político, a nenhum governo, a nenhum Estado, a condução da minha alma.
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