terça-feira, setembro 27, 2016
Pessoas ignorantes em política devem ter direito de votar? -
JOÃO PEREIRA COUTINHO
FOLHA DE SP - 27/09
Vamos ser honestos? A democracia não é o melhor regime político. Você sabe disso. As maiorias, muitas vezes, elegem governos incompetentes, mentirosos, corruptos. Até autoritários. Devemos conceder o direito de voto a quem não tem inteligência suficiente para escolhas responsáveis?
O cientista político Jason Brennan defende que não. O livro, que provocou polêmica nos Estados Unidos, intitula-se "Against Democracy" ("contra a democracia"). Não é um panfleto populista contra o populismo circunstancial de Donald Trump. É um estudo acadêmico com toneladas de bibliografia científica.
Tese do dr. Brennan: em todas as pesquisas disponíveis, os eleitores americanos são comprovadamente ignorantes sobre os assuntos da República. Desconhecem coisas básicas, como identificar qual dos partidos controla o Congresso. Para usar a terminologia de Brennan, a maioria dos eleitores se divide em "hobbits" e "hooligans".
Os "hobbits" são apáticos, apedeutas, raramente votam –e, quando votam, votam com a cabeça vazia.
Os "hooligans" são o contrário: fanáticos, como os torcedores do futebol, defendendo os seus "clubes" de uma forma irracional, ou seja, tribal. É possível perguntar a um "hooligan" democrata se ele concorda com uma política de Bush e antecipar a resposta. (É contra, claro.)
O eleitor ideal, para Brennan, é um "vulcan": alguém que pensa cientificamente sobre os assuntos. Mas os "vulcans" são artigo raro. Em democracia, somos obrigados a suportar as escolhas de "hobbits" e "hooligans".
Existem vários modelos de epistocracia. Dois exemplos: todos teriam direito a um voto e depois, com a progressão acadêmica, haveria votos extra; ou, em alternativa, só haveria votos para quem tivesse boa nota em exame de política. Faz sentido?
Não, leitor, não faz. Seria possível escrever várias páginas de jornal a desconstruir o livro de Jason Brennan. Por falta de espaço, concentro-me na sua falha básica: Brennan, um cientista político, não compreende a natureza da política.
Como um bom racionalista, Brennan acredita que os fatos políticos são neutros; consequentemente, as escolhas do eleitor podem ser "científicas".
Um "exame" de política, por exemplo, dependeria sempre das preferências políticas dos examinadores –nas perguntas e na correção das respostas. Brennan até pode defender perguntas "factuais" para respostas "factuais". Mas a simples escolha de certos temas (mais economia) em prejuízo de outros (menos história) já é uma escolha política.
Além disso, acreditar que diplomas acadêmicos conferem a alguém um poder especial em política é desconhecer o papel que os "intelectuais" tiveram nos horrores do século 20.
Por último, não contesto que a maioria desconhece informação política relevante. Mas as pessoas não precisam de um Ph.D. para votarem. Basta que vivam em sociedade. Que sintam na pele o estado dos serviços públicos. O dinheiro que sobra (ou não sobra) no final do mês. A segurança que sentem (ou não sentem) nos seus bairros, nas suas cidades, nos seus países. E etc. etc.
Como lembrava o filósofo Michael Oakeshott, não se combatem ditadores com a balança comercial. Tradução: a política não depende apenas de um conhecimento técnico; é preciso um conhecimento prático, tradicional, vivencial. O conhecimento que só a experiência garante.
A democracia pode não ser o regime ideal para seres humanos ideais. Infelizmente, eu não conheço seres humanos ideais. No dia em que Jason Brennan me mostrar onde eles vivem, eu prometo jogar a democracia no lixo.
Vamos ser honestos? A democracia não é o melhor regime político. Você sabe disso. As maiorias, muitas vezes, elegem governos incompetentes, mentirosos, corruptos. Até autoritários. Devemos conceder o direito de voto a quem não tem inteligência suficiente para escolhas responsáveis?
O cientista político Jason Brennan defende que não. O livro, que provocou polêmica nos Estados Unidos, intitula-se "Against Democracy" ("contra a democracia"). Não é um panfleto populista contra o populismo circunstancial de Donald Trump. É um estudo acadêmico com toneladas de bibliografia científica.
Tese do dr. Brennan: em todas as pesquisas disponíveis, os eleitores americanos são comprovadamente ignorantes sobre os assuntos da República. Desconhecem coisas básicas, como identificar qual dos partidos controla o Congresso. Para usar a terminologia de Brennan, a maioria dos eleitores se divide em "hobbits" e "hooligans".
Os "hobbits" são apáticos, apedeutas, raramente votam –e, quando votam, votam com a cabeça vazia.
Os "hooligans" são o contrário: fanáticos, como os torcedores do futebol, defendendo os seus "clubes" de uma forma irracional, ou seja, tribal. É possível perguntar a um "hooligan" democrata se ele concorda com uma política de Bush e antecipar a resposta. (É contra, claro.)
E depois, quando o pesquisador comunica ao "hooligan" que a referida política, afinal, é de Obama, o "hooligan" muda de opinião; ou afasta-se; ou indigna-se. Como dizia T. S. Eliot sobre Henry James, a cabeça de um "hooligan" é tão dura que nenhuma ideia é capaz de violá-la.
O eleitor ideal, para Brennan, é um "vulcan": alguém que pensa cientificamente sobre os assuntos. Mas os "vulcans" são artigo raro. Em democracia, somos obrigados a suportar as escolhas de "hobbits" e "hooligans".
Felizmente, Jason Brennan tem uma solução: se as pessoas precisam de uma licença para dirigir, o mesmo deveria acontecer para votar. "Epistocracia", eis a proposta. O governo dos conhecedores. Antes de votar, é preciso provar.
Existem vários modelos de epistocracia. Dois exemplos: todos teriam direito a um voto e depois, com a progressão acadêmica, haveria votos extra; ou, em alternativa, só haveria votos para quem tivesse boa nota em exame de política. Faz sentido?
Não, leitor, não faz. Seria possível escrever várias páginas de jornal a desconstruir o livro de Jason Brennan. Por falta de espaço, concentro-me na sua falha básica: Brennan, um cientista político, não compreende a natureza da política.
Como um bom racionalista, Brennan acredita que os fatos políticos são neutros; consequentemente, as escolhas do eleitor podem ser "científicas".
Acontece que nunca são: a política, ao contrário da matemática ou da geometria, lida com a complexidade e a imperfeição da vida humana.
Um "exame" de política, por exemplo, dependeria sempre das preferências políticas dos examinadores –nas perguntas e na correção das respostas. Brennan até pode defender perguntas "factuais" para respostas "factuais". Mas a simples escolha de certos temas (mais economia) em prejuízo de outros (menos história) já é uma escolha política.
Além disso, acreditar que diplomas acadêmicos conferem a alguém um poder especial em política é desconhecer o papel que os "intelectuais" tiveram nos horrores do século 20.
Ou, para não irmos tão longe, é ignorar o estado de fanatismo ideológico que as universidades, hoje, produzem e promovem.
Por último, não contesto que a maioria desconhece informação política relevante. Mas as pessoas não precisam de um Ph.D. para votarem. Basta que vivam em sociedade. Que sintam na pele o estado dos serviços públicos. O dinheiro que sobra (ou não sobra) no final do mês. A segurança que sentem (ou não sentem) nos seus bairros, nas suas cidades, nos seus países. E etc. etc.
Como lembrava o filósofo Michael Oakeshott, não se combatem ditadores com a balança comercial. Tradução: a política não depende apenas de um conhecimento técnico; é preciso um conhecimento prático, tradicional, vivencial. O conhecimento que só a experiência garante.
A democracia pode não ser o regime ideal para seres humanos ideais. Infelizmente, eu não conheço seres humanos ideais. No dia em que Jason Brennan me mostrar onde eles vivem, eu prometo jogar a democracia no lixo.
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