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domingo, agosto 25, 2013
Nós não somos nada
A minha missão era a de resgatar alguns livros e quadros. Quando soube da sua morte, ainda que não tivesse com ele relações pessoais significativas e nem mesmo sintonia artística, a notícia veio acompanhada do relato de que toda a sua obra estava se perdendo. Artista plástico solitário, Renato Pessanha havia deixado casa e acervo para uma cuidadora de idosos que o acompanhou na velhice. E agora o que me chegava era que seus quadros estavam sendo levados por quem quisesse e seus livros estavam próximos do lixo.
A casa de fundos em terreno de área central, próximo a alguns dos grandes prédios que tomam as áreas nobres, mantinha um ar interiorano de distrito. Pequena, de desenho modesto, muro baixo antes da varanda estreita. A marca do morador estava na majestade singela de um quase caramanchão que formava um arco sobre o portão de madeira. A sinalização era nítida: a morada é simples, mas a alma é aristocrática.
O que vi foram os restos depostos de uma vida, em meio a um terrível e persistente cheiro da morte. Seu corpo havia sido encontrado há algumas semanas, na sala, pela senhora cuidadora, esta mesma que me dizia agora que tudo estava muito melhor, em comparação com aqueles dias trágicos em que precisou acionar policiais, bombeiros e até mesmo profissionais do ramo da desinfecção.
Experiente, ela me confirmava, enquanto me contava a cena que vira, aquilo que é comum ouvir nestes casos: “nós não somos nada”. E com senso prático me convidava para entrar, e me mostrava os livros do artista morto, e exibia objetos de trabalho e de devoção religiosa. Eu poderia levar o que quisesse, com exceção de um imponente oratório de madeira escura e tamanho intimidador, que seria doado para a igreja frequentada pelo artista.
E os quadros? Perguntei. Foram levados por um amigo da senhora, interessado em aproveitar as molduras.
A obra derradeira do artista só não estaria totalmente perdida em razão de um destes infortúnios da vida que acabam por se tornar providenciais. Doente e sem dinheiro, nos seus últimos anos vinha pagando consultas médicas e exames com seus quadros. Estas telas, atualmente pertencentes a alguns doutores da cidade, escaparam da má sorte de servirem apenas de adorno para as molduras que viriam a interessar ao certo conhecido da herdeira.
Nenhum dos seus parentes diretos se interessou pelo seu espólio. E nem fizeram objeções à sua vontade manifesta de deixar todos os seus bens (que se resumiam à casa, aos livros, aos quadros e a poucos móveis) para a senhora, a única que restou em sua companhia e que nem mesmo, há muitos anos, salário recebia. As providências legais foram tomadas por uma irmã, que mora no Rio, a quem pareceu ser justa a escolha do irmão pela herdeira.
Ele era “complicado”, me contou a cuidadora, mas ela se dava bem com ele. Era das poucas, se não a única, que recebiam ligações quase diárias e que, justamente por isso, estranhou a ausência de notícias e os telefonemas não atendidos. Em alguns dias o encontraria morto.
Os parentes é que não gostavam das suas idiossincrasias. Não explorei detalhes, péssimo repórter que sempre fui, mas ouvi o bastante para saber, por exemplo, que o artista havia se tornado um religioso de convicções muito ortodoxas e que queria impor a familiares comportamentos rígidos esperados pela doutrina que professava.
Não tenha em mente o leitor, portanto, a imagem típica de um artista incompreendido, controverso e “à frente do seu tempo”, por isso renegado por uma família conservadora. O que aqui temos é quase o oposto: um pintor tomado por fortes convicções religiosas, que acreditava estar rodeado por pecadores e que dedicava a maior parte da sua arte aos temas da igreja. O mundo, para ele, estava perdido, e houve até mesmo oportunidade em que cobrou providências do Vaticano e da igreja local contra a investida anticristã que via tomar conta da sociedade.
Professor de história, religioso fervoroso, pintor e restaurador, seus livros retratavam estas preferências acumuladas por décadas. Encontrei obras raras do catolicismo, volumes de arte e história, em meio a alguns álbuns de fotografias, na maioria dos casos com reproduções das suas telas. Muitos deles com anotações e desenhos (que estão até por se transformar em uma exposição).
Confesso que, enquanto remexia seus livros, cheguei a me sentir tentado a uma íntima vingança histórica. É que havia muitas publicações tradicionalistas que demonizavam o comunismo, o que mexia com a minha afetiva inclinação adolescente de esquerda e com o meu ceticismo maduro de quase ateu. Lembrei-me das centenas de livros proibidos e queimados pela igreja, quando não iam para fogueira seus próprios autores, e me vi na condição de quem poderia também desaparecer com parte de um registro que, para mim, é de opressão e obscurantismo. Mas sorri sozinho e pensei: não farei como eles.
Após uma triagem feita pelo bravo amigo Wellington Cordeiro, deixamos parte do acervo na Associação de Imprensa Campista, e outra parte destinamos a um seminário católico indicado pelo professor Wainer Teixeira, onde terá melhor proveito. Afinal, o direito à memória e ao conhecimento é maior do que nossos sentimentos mais mesquinhos. E nós não somos nada.
A casa de fundos em terreno de área central, próximo a alguns dos grandes prédios que tomam as áreas nobres, mantinha um ar interiorano de distrito. Pequena, de desenho modesto, muro baixo antes da varanda estreita. A marca do morador estava na majestade singela de um quase caramanchão que formava um arco sobre o portão de madeira. A sinalização era nítida: a morada é simples, mas a alma é aristocrática.
São Francisco, em quadro de Renato Pessanha |
Experiente, ela me confirmava, enquanto me contava a cena que vira, aquilo que é comum ouvir nestes casos: “nós não somos nada”. E com senso prático me convidava para entrar, e me mostrava os livros do artista morto, e exibia objetos de trabalho e de devoção religiosa. Eu poderia levar o que quisesse, com exceção de um imponente oratório de madeira escura e tamanho intimidador, que seria doado para a igreja frequentada pelo artista.
E os quadros? Perguntei. Foram levados por um amigo da senhora, interessado em aproveitar as molduras.
A obra derradeira do artista só não estaria totalmente perdida em razão de um destes infortúnios da vida que acabam por se tornar providenciais. Doente e sem dinheiro, nos seus últimos anos vinha pagando consultas médicas e exames com seus quadros. Estas telas, atualmente pertencentes a alguns doutores da cidade, escaparam da má sorte de servirem apenas de adorno para as molduras que viriam a interessar ao certo conhecido da herdeira.
Nenhum dos seus parentes diretos se interessou pelo seu espólio. E nem fizeram objeções à sua vontade manifesta de deixar todos os seus bens (que se resumiam à casa, aos livros, aos quadros e a poucos móveis) para a senhora, a única que restou em sua companhia e que nem mesmo, há muitos anos, salário recebia. As providências legais foram tomadas por uma irmã, que mora no Rio, a quem pareceu ser justa a escolha do irmão pela herdeira.
Ele era “complicado”, me contou a cuidadora, mas ela se dava bem com ele. Era das poucas, se não a única, que recebiam ligações quase diárias e que, justamente por isso, estranhou a ausência de notícias e os telefonemas não atendidos. Em alguns dias o encontraria morto.
Os parentes é que não gostavam das suas idiossincrasias. Não explorei detalhes, péssimo repórter que sempre fui, mas ouvi o bastante para saber, por exemplo, que o artista havia se tornado um religioso de convicções muito ortodoxas e que queria impor a familiares comportamentos rígidos esperados pela doutrina que professava.
Não tenha em mente o leitor, portanto, a imagem típica de um artista incompreendido, controverso e “à frente do seu tempo”, por isso renegado por uma família conservadora. O que aqui temos é quase o oposto: um pintor tomado por fortes convicções religiosas, que acreditava estar rodeado por pecadores e que dedicava a maior parte da sua arte aos temas da igreja. O mundo, para ele, estava perdido, e houve até mesmo oportunidade em que cobrou providências do Vaticano e da igreja local contra a investida anticristã que via tomar conta da sociedade.
Professor de história, religioso fervoroso, pintor e restaurador, seus livros retratavam estas preferências acumuladas por décadas. Encontrei obras raras do catolicismo, volumes de arte e história, em meio a alguns álbuns de fotografias, na maioria dos casos com reproduções das suas telas. Muitos deles com anotações e desenhos (que estão até por se transformar em uma exposição).
Confesso que, enquanto remexia seus livros, cheguei a me sentir tentado a uma íntima vingança histórica. É que havia muitas publicações tradicionalistas que demonizavam o comunismo, o que mexia com a minha afetiva inclinação adolescente de esquerda e com o meu ceticismo maduro de quase ateu. Lembrei-me das centenas de livros proibidos e queimados pela igreja, quando não iam para fogueira seus próprios autores, e me vi na condição de quem poderia também desaparecer com parte de um registro que, para mim, é de opressão e obscurantismo. Mas sorri sozinho e pensei: não farei como eles.
Após uma triagem feita pelo bravo amigo Wellington Cordeiro, deixamos parte do acervo na Associação de Imprensa Campista, e outra parte destinamos a um seminário católico indicado pelo professor Wainer Teixeira, onde terá melhor proveito. Afinal, o direito à memória e ao conhecimento é maior do que nossos sentimentos mais mesquinhos. E nós não somos nada.
Postado por Vitor Menezes às 01:26 Marcadores: artes plásticas
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