quarta-feira, setembro 20, 2017
A negação como método - ROBERTO DAMATTA
ESTADÃO - 20/09
No Brasil, é uma maneira de mostrar superioridade. ‘O que vem de baixo não me atinge’
É necessário ignorar e negar para viver. Mas alguns estudos revelam que em muitas sociedades ignorar é uma arte e negar um método.
No Brasil, a negação é um método de demonstrar superioridade. “O que vem de baixo não me atinge”, falamos diante de um desafeto. As pedras (ou flechas) atiradas pelos inimigos não nos afetam. Pelo elo contrário, podem – como bumerangues – cair nos que ousaram nos atacar. Descobrir que isso tem mudado é um dos trabalhos da crise.
Anular o outro distingue sistemas aristocráticos imobilizados por posições sociais fixas das democracias marcadas pela mobilidade. O privilégio marca certos cargos e categorias sociais nas aristocracias. Nelas, uma mesma ação é crime se for feita por um indivíduo sem “eira ou beira” (sem relações), mas vira crise política se o seu praticante for “gente grande”.
A resistência extremada à igualdade perante a lei é o cerne da crise. Nela, as chamadas imunidades atreladas a certos cargos impedem qualquer processo. Seria absurdo sugerir que esse oceano de privilégios seria uma projeção da matriz aristocrática e escravocrata, que vigorou de 1500 até 1889 no contexto republicano?
Na monarquia, nobres, claro, e povo tinham os seus códigos. Numa república proclamada a partir desse contexto (sem esquecer a escravidão), capitularam-se cuidadosamente os privilégios dos seus funcionários. Altas patentes, hoje chamadas de assessores ou aspones – esses recebedores de mochilas, malas e caixas cheias de dinheiro sujo –, são muito mais do que governantes. Eles passaram a ter foro privilegiado e, mais obsceno que isso, prescrição para seus crimes que têm o colarinho mais branco do que suas camisas.
O viés aristocrático da burocracia republicana é um brasileirismo. A surpresa de Pedro II diante da maluquice republicana é significativa. Pois a maluquice é imaginar que se pode sair de uma monarquia para uma república sem crises e tumultos. As perenes crises republicanas todas, aliás, muito semelhantes resultam de uma revolução: a se tentar governar por meio do mérito individual uma sociedade de credo escravocrata e patriarcal. Republicanismo num contexto sócio-histórico patriarcal e escravocrata é muito mais revolucionário do que se pode imaginar. E as crises são o testemunho disso. Elas são chamadas de políticas mas, de fato, são crises sociais e de valores promovidas na sua totalidade por racionalidades opostas ou muito diferenciadas. Imaginar que a transição seria sem crise ou que a crise é defeito nosso é tão absurdo quanto pensar que os responsáveis por empresas estatais sejam indicados por suas capacidades e trabalhem para o bem do País e não para os seus partidos e famílias.
A passagem por golpe de uma monarquia a uma república não é algo trivial. Esse é o ponto.
Somente no Brasil se pode imaginar que o trânsito de uma reciprocidade maussiana do dar para receber para os labirintos contratuais hobbesianos seria como tomar um sorvete ou ir ao cinema. Não é de graça que se substitui a mão visível do amigo preocupado em providenciar a propina, pela mão invisível de Mr. Adam Smith. Tal transformação é profunda e a ausência dessa percepção engendra todo tipo de mal-entendidos. Um deles é fantasiar que o Estado deve “corrigir” ou “curar” a sociedade.
Não se pode negar o papel de impulsionador do Estado, mas isso não é igual a ele atribuir uma onipotência que em todo lugar resultou em totalitarismo e, no Brasil hodierno, nessa vasta roubalheira.
Estou dizendo que a república foi um erro ou que ela é historicamente impossível no Brasil? De modo alguém. Só os imbecis negam o que foi feito. Mas como não apontar que a crise brasileira é sistêmica e que ela tem um elo profundo com a tentativa largamente inconsciente de operar com valores opostos sem discuti-los.
O que espanta na construção da democracia à brasileira é a inocência cultural relativa ao seu funcionamento. Inocência da qual os malandros se aproveitam.
A “corrupção” é o resultado na intrusão do passado no presente. Um anacronismo que reproduz no novo regime as práticas recorrentes dos tempos do rei e dos déspotas porque sua força simbólica sempre foi subestimada. E o poder da política como uma engenharia sem consequências sociais sempre foi superestimado.
A negação como narrativa – ninguém cometeu nenhum crime, tudo foi inventado, MAS... ninguém é de ferro – nada mais é do que a consequência da descoberta da democracia. Hoje sabemos que ela não é uma utopia; que ela é alérgica a privilégios e tem como ideal a igualdade, essa igualdade que é, de longe, o maior problema brasileiro.
No Brasil, é uma maneira de mostrar superioridade. ‘O que vem de baixo não me atinge’
É necessário ignorar e negar para viver. Mas alguns estudos revelam que em muitas sociedades ignorar é uma arte e negar um método.
No Brasil, a negação é um método de demonstrar superioridade. “O que vem de baixo não me atinge”, falamos diante de um desafeto. As pedras (ou flechas) atiradas pelos inimigos não nos afetam. Pelo elo contrário, podem – como bumerangues – cair nos que ousaram nos atacar. Descobrir que isso tem mudado é um dos trabalhos da crise.
Anular o outro distingue sistemas aristocráticos imobilizados por posições sociais fixas das democracias marcadas pela mobilidade. O privilégio marca certos cargos e categorias sociais nas aristocracias. Nelas, uma mesma ação é crime se for feita por um indivíduo sem “eira ou beira” (sem relações), mas vira crise política se o seu praticante for “gente grande”.
A resistência extremada à igualdade perante a lei é o cerne da crise. Nela, as chamadas imunidades atreladas a certos cargos impedem qualquer processo. Seria absurdo sugerir que esse oceano de privilégios seria uma projeção da matriz aristocrática e escravocrata, que vigorou de 1500 até 1889 no contexto republicano?
Na monarquia, nobres, claro, e povo tinham os seus códigos. Numa república proclamada a partir desse contexto (sem esquecer a escravidão), capitularam-se cuidadosamente os privilégios dos seus funcionários. Altas patentes, hoje chamadas de assessores ou aspones – esses recebedores de mochilas, malas e caixas cheias de dinheiro sujo –, são muito mais do que governantes. Eles passaram a ter foro privilegiado e, mais obsceno que isso, prescrição para seus crimes que têm o colarinho mais branco do que suas camisas.
O viés aristocrático da burocracia republicana é um brasileirismo. A surpresa de Pedro II diante da maluquice republicana é significativa. Pois a maluquice é imaginar que se pode sair de uma monarquia para uma república sem crises e tumultos. As perenes crises republicanas todas, aliás, muito semelhantes resultam de uma revolução: a se tentar governar por meio do mérito individual uma sociedade de credo escravocrata e patriarcal. Republicanismo num contexto sócio-histórico patriarcal e escravocrata é muito mais revolucionário do que se pode imaginar. E as crises são o testemunho disso. Elas são chamadas de políticas mas, de fato, são crises sociais e de valores promovidas na sua totalidade por racionalidades opostas ou muito diferenciadas. Imaginar que a transição seria sem crise ou que a crise é defeito nosso é tão absurdo quanto pensar que os responsáveis por empresas estatais sejam indicados por suas capacidades e trabalhem para o bem do País e não para os seus partidos e famílias.
A passagem por golpe de uma monarquia a uma república não é algo trivial. Esse é o ponto.
Somente no Brasil se pode imaginar que o trânsito de uma reciprocidade maussiana do dar para receber para os labirintos contratuais hobbesianos seria como tomar um sorvete ou ir ao cinema. Não é de graça que se substitui a mão visível do amigo preocupado em providenciar a propina, pela mão invisível de Mr. Adam Smith. Tal transformação é profunda e a ausência dessa percepção engendra todo tipo de mal-entendidos. Um deles é fantasiar que o Estado deve “corrigir” ou “curar” a sociedade.
Não se pode negar o papel de impulsionador do Estado, mas isso não é igual a ele atribuir uma onipotência que em todo lugar resultou em totalitarismo e, no Brasil hodierno, nessa vasta roubalheira.
Estou dizendo que a república foi um erro ou que ela é historicamente impossível no Brasil? De modo alguém. Só os imbecis negam o que foi feito. Mas como não apontar que a crise brasileira é sistêmica e que ela tem um elo profundo com a tentativa largamente inconsciente de operar com valores opostos sem discuti-los.
O que espanta na construção da democracia à brasileira é a inocência cultural relativa ao seu funcionamento. Inocência da qual os malandros se aproveitam.
A “corrupção” é o resultado na intrusão do passado no presente. Um anacronismo que reproduz no novo regime as práticas recorrentes dos tempos do rei e dos déspotas porque sua força simbólica sempre foi subestimada. E o poder da política como uma engenharia sem consequências sociais sempre foi superestimado.
A negação como narrativa – ninguém cometeu nenhum crime, tudo foi inventado, MAS... ninguém é de ferro – nada mais é do que a consequência da descoberta da democracia. Hoje sabemos que ela não é uma utopia; que ela é alérgica a privilégios e tem como ideal a igualdade, essa igualdade que é, de longe, o maior problema brasileiro.
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