O Estado de S.Paulo
02 Setembro 2018 | 06h30
Mauricio Rojas, nomeado ministro da Cultura, Artes e Patrimônio do Chile pelo presidente chileno, Sebastián Piñera, em 9 de agosto, teve de renunciar no dia 13, ou seja, menos de 90 horas depois. Sua rapidíssima passagem pelo governo deveu-se a uma impecável operação para desacreditá-lo e às calúnias de uma esquerda que eu acreditava, ingenuamente, renovada e democrática.
Equívoco da minha parte: ela continua a mesma que contribuiu, com seu sectarismo extremista e a retórica incendiária e irreal dos tempos de Salvador Allende, para destruir a democracia chilena e levar ao poder o sanguinário regime de Augusto Pinochet, que, obviamente, depois a castigou duramente.
É isso que Mauricio Rojas critica, pois conhece muito bem essa esquerda intolerante dentro da qual ele viveu, e é por isso que ela não o perdoa. Direi, em primeiro lugar, que desde que conheci Rojas nutro por ele uma grande admiração. Considero-o uma das pessoas mais limpas e decentes com quem tive o privilégio de tratar, e admiro seu trabalho intelectual, mais de 20 livros que são um modelo de rigor, conhecimento e inteligência.
Nascido em 1950, educado por uma mãe socialista, Juana Mullor, presa e torturada pela ditadura de Pinochet na Villa Grimaldi, antes de partir em exílio para a Suécia, Mauricio militou no MIR em sua juventude e acreditava na revolução armada, como muitos jovens chilenos de sua geração que rechaçavam a democracia burguesa - máscara da reação - e estavam convencidos de que somente o comunismo criaria uma sociedade justa e solidária. Teve a sorte de ir para o exterior antes que o prendessem e ele passasse muitos anos na prisão ou morresse fuzilado ou torturado como muitos camaradas seus.
Na Suécia, uniu-se aos exilados chilenos mais radicais e tentou ir para Cuba para buscar instrução militar - guerrilheira e terrorista -, mas complicações burocráticas frustraram seu objetivo.
A grande mudança, a sua conversão, ocorreu na universidade de Lund, onde ingressou para estudar economia. Inicialmente, foi uma mudança intelectual e ética. Depois, política. Antes mesmo de se doutorar, suas ideias evoluíram do marxismo para a democracia e o liberalismo, como ele próprio relatou em seus diversos ensaios sobre a economia latino-americana, a Suécia, Marx, Lenin, Argentina. Ler seus trabalhos é sempre fascinante, porque, embora trate de assuntos especializados e muito técnicos, ele nunca se afasta da realidade viva que nos envolve, da problemática atual. O que dá à sua obra, além da qualidade intelectual, um sentido prático, como os artigos e livros de George Orwell.
Mauricio Rojas é um intelectual e um homem de ação, uma combinação nada frequente. Na Suécia, não só aprendeu a língua - na qual escreveu alguns dos seus livros, mas militou no Partido Popular Liberal e foi deputado no Parlamento sueco durante seis anos. Trabalhou depois na Espanha, dedicando-se a um tema que é sua especialidade, a imigração. Aqueles que leram seu memorial sobre a Escola de Profissionais de Imigração e Cooperação conseguem avaliar o tamanho das calúnias propagadas contra ele, acusando-o, entre outras idiotices infames, de ter se mostrado desrespeitoso e insensível com os milhares de africanos que fogem de seus países e arriscam suas vidas tentando chegar à Europa. Poucas pessoas trabalharam com tanta solidariedade e compreensão nesse assunto tão terrível como Mauricio Rojas.
O Diálogo de Convertidos, que publicou com Roberto Ampuero, em dois volumes - cuja resenha fiz nesta coluna - é um depoimento muito interessante de dois chilenos que, na sua juventude, acreditaram na revolução, nos revólveres e bombas como armas políticas para acabar com as injustiças sociais, mas que depois entenderam que esse era um caminho insano que traria para a sociedade remédios piores do que a própria enfermidade, e optaram por posições democráticas, pacíficas e liberais. Deste livro foi tirada, desligando-a do seu contexto, a frase que provocou a grande mobilização da esquerda chilena contra Rojas, uma frase em que ele critica o Museu da Memória, afirmando que se trata de uma “montagem” dramática mais do que um museu.
Deduzir dessa frase que ele nega os horrores cometidos pelo regime de Pinochet é um disparate sem pé nem cabeça. Há dezenas de citações em seus artigos, livros e intervenções públicas nas quais reconhece e condena duramente os crimes da ditadura durante o regime militar. Mas ele nunca faz essas críticas sem indagar as origens daquele golpe de Estado que destruiu uma das mais sólidas democracias da América Latina.
A responsabilidade da extrema esquerda na queda de Allende foi muito grande. Ele havia sido eleito por um terço do eleitorado para manter e aperfeiçoar as instituições democráticas, não para fazer uma revolução socialista semelhante à cubana. As desordens, o confisco de terras e de fábricas, a violência desencadeada por aquelas massas que queriam “dar um salto qualitativo” para o estatismo e converter o Chile em uma segunda Cuba, criou um Estado propício para o golpe militar e o terrível período da história chilena.
Em vez de se enfurecer montando distorções grotescas como esta da qual foi vítima, Rojas foi capaz de se emancipar da cegueira ideológica e do fanatismo político. A esquerda que ainda representa um segmento importante da sociedade chilena deveria examinar com olho crítico seus erros e excessos durante aquele período inflamado da história chilena e ajudar a aperfeiçoar essa democracia recuperada pelo Chile que o transformou no país latino-americano que mais rápido avançou em todos os sentidos: político, social e econômico. É uma pena que esta vitória do revanchismo prive o Chile de um ministro da Cultura que também teria deixado uma marca de progresso na realidade chilena.
Sinto pelo Chile, não por ele ou seus leitores. Porque deduzo que agora, depois dessa experiência frustrante, Rojas decidirá se afastar de qualquer cargo político para voltar ao seu trabalho intelectual.
É verdade que a vida não foi muito generosa com Mauricio Rojas, pois ele viveu experiências muito dolorosas e sempre soube superá-las com um otimismo invejável, transformando-as em experiências intelectuais com o beneplácito do número crescente de seus leitores.
Os que conseguiram tirá-lo do ministério que ele mal chegou a ocupar não devem cantar vitória tão rápido. A batalha apenas começou e será longa. Cedo ou tarde, Mauricio Rojas será vitorioso. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
É PRÊMIO NOBEL de Literatura
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