quinta-feira, 3 de novembro de 2016

629 mulheres baianas estão diretamente sob os cuidados da Major Denice da PM de Salvador para fugir da violência do marido...É a lei Maria da Penha sem teoria !

A major que protege 629 mulheres ameaçadas por homens na Bahia

  • Há 1 hora
Denice SantiagoImage copyrightLORENA VINTURINI
Image captionDenice Santiago comanda a Ronda Maria da Penha, unidade da Polícia Militar baiana que acompanha mulheres vítimas de violência doméstica
O celular de trabalho de Denice Santiago tocou em plena tarde de domingo em Salvador. Do outro lado da linha, uma mulher dizendo que o ex-marido, proibido pela Justiça de se aproximar dela, estava a caminho de sua casa.
"Nessas horas não posso simplesmente dizer que estou de folga. Tenho que resolver", diz. A necessidade de solução imediata se explica: na Bahia, 629 mulheres vítimas de violência doméstica estão diretamente sob os cuidados de Denice.
Fardada ou não, ela é a major Denice, de 45 anos, comandante da Ronda Maria da Penha (RMP), unidade da Polícia Militar baiana criada em março de 2015 para acompanhar mulheres sob medida protetiva judicial - brasileiras que enfrentam o machismo e a brutalidade de companheiros, pais, irmãos e vizinhos.
Com pouco mais de um ano e meio de funcionamento, essa operação vem chamando a atenção de pesquisadores e de outras corporações policiais pelos bons resultados - que parecem dever algo ao carisma e à obstinação de sua comandante.
"São famílias que estão em jogo. Como mulher, mãe e policial, não posso falhar. Se nosso sistema for violado, podemos perder uma vida", diz Denice.
No foco desse sistema de proteção estão mulheres como Ana*. Ela passou 18 de seus 45 anos com o pai de suas duas filhas adolescentes. Durante o casamento, afirma, suportou o "sentimento de posse" e a "loucura" do marido.
Visita da Ronda Maria da Penha em SalvadorImage copyrightVICTOR UCHÔA
Image captionPoliciais fazem visitas surpresa a mulheres que recorreram à Justiça para manter agressores à distância
"Eu não podia olhar para o lado. Ele puxava meu braço, batia e xingava. Era uma tortura", conta Ana. "Quando ele se aposentou, passava o dia em frente ao meu trabalho, me vigiando. Parecia que ia morrer sufocada."
Acompanhada pela RMP há um ano, ela diz que reencontrou o sossego. "Eu não vivia em paz. Isso é um renascimento."

Modo de operação

A Ronda Maria da Penha na Bahia tem bases em Salvador e nas cidades de Paulo Afonso, Serrinha, Juazeiro e Feira de Santana.
Diariamente, incluindo finais de semana e feriados, 71 policiais se revezam em visitas de surpresa a mulheres que recorreram à Justiça para manter agressores à distância.
A presença policial costuma inibir a aproximação desses homens, mas não em todos os casos. Desde a criação, a ronda já prendeu 59 agressores que ultrapassaram os limites fixados pela Justiça, alguns flagrados em plena visita dos policiais.
Ronda Maria da PenhaImage copyrightARQUIVO PESSOAL
Image captionUnidade promove visitas a mulheres que recorreram à Justiça para manter agressores à distância; 59 deles foram presos desde 2015
De sua sala na sede da ronda, em Periperi, subúrbio da capital baiana, a comandante repassa planilhas, lê relatórios e monitora o movimento das equipes.
Mesmo não participando mais das visitas residenciais, ela conhece a história de cada mulher assistida. Recebe muitas para conversas que podem se estender por horas. "Essas mulheres precisam confiar na gente. Temos que construir uma relação para que elas nos contem suas verdades."

Números da violência

De olho nas planilhas, a major sabe que precisa de mais estrutura: 71 policiais parece pouco diante do quadro da violência contra a mulher no Estado.
Somente no primeiro semestre de 2016, a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) recebeu 26.674 chamadas na Bahia, com notificações que vão de ofensas verbais a graves agressões físicas.
Denice SantiagoImage copyrightLORENA VINTURINI
Image captionBahia é quarto Estado no ranking de denúncias de violência contra mulher; major diz batalhar por mais recursos para atendimento
Nos registros, contabilizados pela Secretaria de Políticas para as Mulheres do governo federal, a Bahia é o quarto Estado em números absolutos de chamadas, atrás de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Salvador é a quinta capital, com 5.927 chamadas de janeiro a junho.
De acordo com o Tribunal de Justiça da Bahia, tramitam no Estado 26.527 processos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Ao final de cada um deles, será determinada ou não uma medida protetiva, que, entre outras ações, podem proibir o homem de se aproximar da mulher ou afastá-lo do lar.
Quando a medida é estabelecida, a própria Justiça indica casos urgentes para acompanhamento da RMP.
"Quero qualquer coisa que a Secretaria de Segurança oferecer. Eu vou atrás, encho o saco, mostro os números. Quanto mais mulheres atendermos, melhor", diz major Denice.
Denice SantiagoImage copyrightLORENA VINTURINI
Image captionDenice ingressou nas primeiras turmas femininas de praças e de oficiais da PM da Bahia; hoje é uma das duas mulheres em postos de comando na corporação

Repercussão do trabalho

A iniciativa na Bahia não é a primeira nem a única no Brasil - a Brigada Militar gaúcha, por exemplo, organiza patrulhas semelhantes desde 2012 -, mas repercute entre acadêmicos e instituições policiais.
Em setembro, Denice foi palestrante na abertura, em Brasília, do encontro anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), ONG que reúne pesquisadores e profissionais do setor.
O tema do encontro foi violência contra a mulher, e a major dividiu a apresentação com Maria da Penha Fernandes, farmacêutica conhecida por batalhar pela condenação do ex-marido agressor e dar nome à lei de 2006 que aumentou o rigor das punições em casos deste tipo.
Denice Santiago em apresentação em encontro sobre segurançaImage copyrightDANILO RAMOS/DIVULGAÇÃO
Image captionMajor Denice em palestra no encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; experiência vem chamando a atenção de pesquisadores e profissionais do setor
"Mesmo com limitações estruturais, a Ronda Maria da Penha da Bahia é um exemplo hoje para outras iniciativas do país. Não conheço outro trabalho policial que esteja tão próximo das pessoas e já com resultados práticos tão expressivos", afirma a socióloga Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP.
Bueno diz que há muita descontinuidade em políticas de segurança no Brasil, e por isso ações na área ainda são muito dependentes de uma liderança pessoal forte para sucesso e continuidade.
"Neste caso, é preciso valorizar que é uma major, uma mulher, à frente de uma ação que vem dando certo."

Trajetória

Filha de família pobre, Denice Santiago estudou toda a vida em escola pública. Em 1990, após terminar o ensino médio, foi incentivada pelo pai ("Para garantir emprego e salário", conta) a tentar uma vaga na primeira turma feminina de praças da PM da Bahia. Entrou como sargento.
Dois anos depois, ingressou na primeira turma aberta para oficiais mulheres. Hoje é uma das duas únicas oficiais a ocupar posto de comando na PM baiana - mulheres são 13% do efetivo da corporação.
Denice Santiago com Maria da Penha e com filhoImage copyrightDIVULGAÇÃO/ARQUIVO PESSOAL
Image captionDenice Santiago com Maria da Penha (na cadeira) em evento em Brasília; com filho adolescente, conversas sobre situação da mulher
A atuação com foco na mulher acompanha o caminho de Denice na Polícia Militar. Em 2006, quando integrava o setor de tecnologia da corporação, ela fundou o Centro Maria Felipa, até hoje o único núcleo direcionado para mulheres em PMs do país.
Batizado com o nome da heroína das batalhas pela independência do Brasil na Bahia, o centro ajudou a criar a norma que determina o deslocamento imediato de policiais gestantes para o trabalho administrativo. Antes, elas ficavam nas ruas até as vésperas do parto.
O CMF também promove cursos e seminários para policiais e oferece auxílio a mulheres da PM vítimas de violência doméstica. O centro motivou até um apelido para a major: até hoje é chamada de Felipa por muitos colegas de farda.

Teoria e prática

Para atuar sob o comando da major Denice na Ronda Maria da Penha, policiais se alistam voluntariamente. Após seleção pelo perfil, passam por uma formação específica, um dos diferenciais do programa na Bahia.
No curso, elaborado pela Secretaria de Políticas para Mulheres do Estado, discutem temas como gênero e patriarcado. E todos entram em contato com os outros órgãos da rede de atendimento: Polícia Civil, Tribunal de Justiça, Ministério Público, Defensoria Pública.
Curso na Ronda Maria da PenhaImage copyrightARQUIVO PESSOAL
Image captionMajor Denice em curso para policiais que atuam na Ronda Maria da Penha; formação é vista como um dos diferenciais da iniciativa
Após a inserção na operação, policiais, homens e mulheres, participam de encontros mensais com atividades lúdicas e de autocuidado. O objetivo é abrir espaço para que possam se expressar artisticamente e aliviar a carga emocional das histórias de crises familiares que acompanham.
Graduada em Psicologia, a própria comandante passa por acompanhamento psicoterapêutico.
"Preciso recorrer ao analista para não levar tudo isso pra casa, mas é impossível", comenta, lembrando o dia do telefonema no domingo de folga. (Naquela ocasião, a major acionou policiais de plantão, mas o agressor desistiu de aparecer quando a mulher disse que já havia ligado para a ronda.)
Outro ponto forte da iniciativa é a interlocução entre os órgãos da rede de atendimento. Representantes do comitê gestor da RMP conversam via WhatsApp para acelerar procedimentos que envolvam a proteção de mulheres assistidas.
Por iniciativa própria, Denice também encabeça uma ação chamada "Mulheres de Coragem" - recebe mulheres assistidas na sede da unidade para palestras, oficinas de arte e teatro, em ações de socialização e empoderamento.
Detalhes de objetos no escritório da major Denice SantiagoImage copyrightLORENA VINTURINI
Image captionMulher Maravilha em destaque na mesa da major e prêmios de reconhecimento: atuação com foco na mulher marca trajetória de PM
Para policiais homens e o público masculino externo, organiza as palestras do "Papo de Homem". "A ideia é fazer com que os homens se percebam no ciclo da violência, porque este (agressão contra a mulher) é um crime cultural", afirma.
A caminho de uma visita da ronda, o soldado Ivan da Silva reconhece que buscou uma vaga na unidade especial apenas para trabalhar no horário administrativo e ter tempo para estudar à noite. "Hoje minha cabeça é outra. Fui aprendendo com as histórias. A realidade das mulheres é muito mais difícil do que se imagina."
Ao seu lado, outro soldado, Arivaldo Souza, afirmou que entendeu que a violência não se manifesta somente em agressões físicas. "Comecei a ver o peso da violência psicológica. Uma mulher me disse uma vez que preferia levar um tapa a ouvir as coisas que o ex-marido dizia."
Minutos depois, os dois PMs, ao lado da soldado Jocinanda Oliveira, chegam à casa de Lúcia*, de 28 anos. Após três anos em um relacionamento violento, ela se afastou do ex-namorado depois de ser agredida com o filho recém-nascido do casal no colo.
"Ele chegou a me ameaçar de morte. Sempre tive muito medo, mas com as visitas dos policiais a gente sente que pode contar com alguém. Eu converso com amigos e falo com orgulho que a ronda veio aqui em casa", afirma.
Ronda Maria da PenhaImage copyrightVICTOR UCHÔA
Image caption'Com as visitas dos policiais a gente sente que pode contar com alguém', diz mulher atendida por unidade
Acompanhada pela unidade há cerca de um ano, ela costumava sair de casa apenas para ir ao trabalho.
"Eu fui à praia outro dia. Nem acredito. E só fui porque me senti confiante. Foi ela quem me incentivou", conta Lúcia, lançando um olhar de cumplicidade para a soldado Oliveira. Ela segura o filho e chora.

Cotidiano

No comando da operação, major Denice se diz orgulhosa por histórias como a de Lúcia, mas afirma que não pode baixar a guarda para romper o ciclo do que chama de "violência cultural".
No papel de mãe de um adolescente de 15 anos, procura dialogar com o filho sobre temas que encara no trabalho, apostando que ele levará as informações adiante.
"Eu insisto mesmo. Às vezes ele brinca quando me pede sugestão de tema de redação, dizendo que violência contra a mulher não vale. Mas ele é bem consciente e eu sei que conversa muito com os amigos."
Mesa de trabalho de Denice SantiagoImage copyrightLORENA VINTURINI
Image captionMesa de trabalho da major baiana; proteção do candomblé, lembrança da maternidade e Mulher Maravilha
Ao falar da vida familiar, Denice deixa escapar que, até fevereiro de 2015, "sentia que era eterna". Foi quando, em um exame de rotina, descobriu um tumor no estômago - após uma cirurgia que extraiu todo o órgão, atravessou meses de tratamento quimioterápico.
Agora, adapta-se dia a dia. Come menos, evita alimentos pesados, prioriza a comida de casa e, para fugir de eventuais toxinas, cortou frutos do mar. "Só não abro mão de pão. Adoro sanduíche, mas estou comendo metade da metade", diz a major de 1,73 metro, entre risos.
Para o bem da digestão, também precisa mastigar tudo lentamente. Diz não ver problema, pois assim consegue mais tempo para pensar na vida e bolar "mais umas maluquices" para a ação da ronda - uma dessas ideias é fazer uma horta em frente à sede da unidade e convidar as mulheres para cuidar do espaço.
Denice SantiagoImage copyrightLORENA VINTURINI
Image captionOficial teve câncer no estômago e teve que extrair órgão: 'Me fortaleci para ajudar essas mulheres a serem felizes'
"Com o câncer, uma amiga disse que não deveria perguntar por que as coisas acontecem e sim para quê. Depois que superei essa doença, me fortaleci para tocar o trabalho, ajudar essas mulheres a serem felizes. Minha mãe sempre disse que nossa missão é ser feliz."
Para o futuro, a major abre portas no ambiente acadêmico. Hoje cursa mestrado na Universidade Federal da Bahia em que estuda a relação entre a questão racial e o enquadramento de suspeitos por policiais militares.
E vislumbra a felicidade em algum cantinho perto de Salvador, onde possa fazer uma horta própria e viver tranquila ao lado da família, assistindo a seus filmes preferidos: os épicos e os da franquia Marvel, com seus heróis onipotentes e falíveis.
Criada em família com raízes no candomblé (religião de matriz africana), Denice Santiago se apresenta como uma mulher de Iansã. É a deusa dos raios e trovões na mitologia iorubá, guerreira que batalha pelo seu povo e carrega a força do feminino.
Iansã pode ter mil facetas, mas a fragilidade nunca será uma delas.
*Para preservar a identidade das mulheres vítimas de violência, os nomes foram trocados.
Denice SantiagoImage copyrightLORENA VINTURINI
Image caption'Nossa missão é ser feliz', afirma major baiana

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quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Charge de Amarildo

Charge de Amarildo

FINADOS Imposto brasileiro trabalho 30 anos cemiterio mae jelho tumulo Meirelles Temer cobrando 2

Será que Eduardo Cunha quer ganhar tempo ? Ou quer que os testemunhos sejam comparados com os da delação ? Ou quer que a Lava Jato ouça, antecipadamente, os relatos que a Odebrecht irá forçar com suas revelações ?



O estranho grupo que Cunha quer como testemunha de defesa

Lá estão Temer, Lula, Cerveró, Delcídio... Que sentido faz? Por enquanto, só ele deve saber

Por: Reinaldo Azevedo  

Eduardo Cunha evocou como testemunhas de sua defesa ninguém menos do que o presidente Michel Temer, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o senador cassado Delcídio do Amaral, o ex-ministro enrolado Henrique Eduardo Alves, o delator premiado Nestor Cerveró e mais 17 pessoas. O que quer Eduardo Cunha?
Pois é… Quando se listam testemunhas de defesa, o que se espera é que façam declarações ou confirmem eventos que ajudem a inocentar o réu. Dá para supor por que Nestor Cerveró está na lista. Afinal, era diretor da área Internacional da Petrobras, e o inquérito em questão apura o recebimento, pelo ex-deputado, de US$ 1,5 milhão em propina num negócio que a estatal fez em Benin, na África. E os outros?
Por tudo o que se sabe até agora, Lula e Temer, por exemplo, não interferiram no caso. Nem mesmo Delcídio. Mais: qual é exatamente a utilidade de testemunhos de criminosos confessos como Cerveró e o ex-senador?
O juiz ainda vai decidir se as testemunhas evocadas têm ou não pertinência com o caso. Há um espaço para a arbitragem do magistrado, ainda que caiba à defesa fazer as suas escolhas. Se, entre os arrolados, houver um especialista na filosofia de Schopenhauer, que esteja lá por isso, a Justiça pode recusar seu testemunho.

"As ilusões das eleições" / José Nêumanne

quarta-feira, novembro 02, 2016

As ilusões das eleições - 

JOSÉ NÊUMANNE

ESTADÃO - 02/11

Na era cibernética, até o castigo ‘avoa’ nos ares para o PT de Lula e o chefão tucano Aécio

O principal derrotado nas eleições municipais de outubro de 2016 foi o Partido dos Trabalhadores (PT). E com ele afundaram nas urnas seus sucedâneos e tradicionais aliados de esquerda: de Rede, PSOL e PCdoB a nanicos revolucionários – os de centro-esquerda e os mais extremados.

Isso quer dizer que a centro-direita venceu a disputa, levando em conta estatísticas avassaladoras do gênero: 80% das prefeituras do País foram conquistadas por legendas, das gigantes às mínimas, todas componentes da base de apoio do governo-tampão de Michel Temer? Ou, ainda, o maior partido da oposição nos desgovernos petistas de Lula e Dilma, o PSDB, ganhou 863, ou seja, 25% dos pleitos, um recorde histórico? Nada disso!

Acreditar em tal lorota – ou na análise oportunista e apressada do advogado, empresário e político Eliseu Padilha, ministro-chefe da Casa Civil do governo federal, de que os eleitores derrotaram nas urnas a hipótese estapafúrdia do “impeachment sem crime é golpe” – é dar alguma razão a quem ainda insiste nessa total tolice.
Quem rotula PSDB e PMDB de centro-direita acredita em contos de fadas e bruxas nos quais Lula, insubstituível líder do PT, é esquerdista. Os tucanos, atarantados sócios da maior legenda que se opôs aos 13 anos, 4 meses e 12 dias sob o ex-sindicalista e a ex-guerrilheira, são farinha do mesmo saco de que se nutriu o partido que foi comandado por Ulysses Guimarães. Foram produzidos na luta gloriosa contra a ditadura militar e civil, esta, sim, de direita, que promoveu o milagre econômico e a repressão brutal dos anos 60 a 80. Mas foram separados na feira em que se puseram à venda nas vicissitudes da democracia que sucedeu ao arbítrio.

Ao contrário do que reza a doutrina esquizofrênica da esquerda, dominante nas escolas e nos palanques, o autoritarismo não ruiu aos pés dos “heróis” da guerra suja, mas da prática democrática da sociedade e dos parlamentos liderados pela oposição civil, mesmo sob dura ameaça permanente.

Frases;;; / Roberto Damatta

Frase de Roberto Damatta


No Brasil, o problema é como acabar de vez com o “Você sabe com quem está falando?”, esse brasileirismo inventado como último recurso hierárquico e escravista contra a igualdade republicana que obriga a entrar na fila, ser parado por um guardinha qualquer, ser compelido a responsabilidade quando se ocupa um cargo público e — eis o escândalo dos escândalos — ser enjaulado por um crime porque a lei vale mesmo para todos, e a igualdade perante e lei acaba com os privilégios.

Dilma quer escrever um livro.../ Celso Arnaldo Araujo comenta o livro que não foi escrito

Celso Arnaldo Araújo: Se até hoje leu alguma coisa, Dilma certamente não absorveu nadica de nada

Por: Augusto Nunes  

O autor de 'Dilmês - O Idioma da Mulher Sapiens' analisa o livro que nunca será 



escrito

A mesma Natuza Nery que noticiou hoje o nascimento de Agatha Rousseff e seu misterioso dilmês ─ a linguagem assassina serial de ideias e raciocínios ─ revelou ao mundo, em maio de 2013, a transformação da presidenta na comandanta Dilma, quando a bordo do AeroLula. Numa matéria apoteótica publicada na Folha em maio de 2013, Natuza revelou que a presidenta comandava o Airbus da Presidência por meio de seus vastos conhecimentos de mapas aeronáuticos. Segundo a jornalista, como Dilma detesta turbulências, ela orientava o comandante da aeronave presidencial, um brigadeiro, a voar em céu de…brigadeiro. Mudava rotas e altitudes para não deslocar um milímetro do seu laquê. “Ela detesta quando o avião presidencial sacode em pleno ar”, escreveu então a repórter, num simulacro do idioma de sua personagem, sem explicar se seria possível o Airbus sacudir em pleno chão.
Pois bem, na matéria de hoje, Natuza resgata a mistificação da mídia que, um dia, fez de Dilma uma leitora voraz, uma scholar compenetrada, uma colecionadora de arte que acondicionava sua pinacoteca virtual num pendrive ─ a primeira “penacoteca” do mundo. Entrevistando a senhora em seu apartamento de Porto Alegre, a jornalista tem acesso à vasta biblioteca da mulher que criou um idioma só para si. A repórter se impressiona com duas estantes, repletas de livros ─ e então ficamos sabendo que, além da mandioca, Dilma continua saudando a literatura que finge conhecer. “Eu queria muito escrever um romance policial. Gosto muito. Li muito” – disse a ex que dizia que, quando criança, hesitava entre o Corpo de Bombeiros e o Corpo de Baile do Theatro Municipal.
A propósito de que Dilma escreveria, se soubesse escrever, um romance policial? Evidentemente, Dilma nunca o escreverá ─ como jamais escreveu nada, além de broncas iletradas em ministras cujo nome ela rebatizou a seu modo. E, se até hoje leu alguma coisa, Dilma certamente não absorveu nadica de nada ─ o que é raro num ser humano alfabetizado. A existência de uma devoradora de livros semi-analfabeta seria um enigma para os detetives Sherlock Holmes, Hercule Poirot e Maigret tentarem desvendar juntos – antes que a elementar Agatha Rousseff se torne concorrente deles.
Ainda do papo de Natuza Nery com Dilma: além da incomensurável, da chocante, da crescente pequenez existencial e mental da ex-presidente acidental, que da conversa resulta numa dona de casa assustadoramente medíocre para quem comandou o Palácio do Planalto, me chamou a atenção o trecho da matéria em que ela diz ter desenvolvido LER nos punhos por andar de bicicleta. Perdoem minha ignorância de não-ciclista (um dos únicos do país, presumo): segurar o guidão imóvel dá lesão de esforço repetitivo? O esforço repetitivo maior de um ciclista não é nas pernas? De qualquer modo, não deixa de ser uma metáfora cruel do impeachment: Dilma caiu pelas pedaladas assinadas com o punho.

"...Mas como lidar com a contradição que transforma um eleito pelo povo com o nosso dinheiro numa superpessoa acima da lei? "

quarta-feira, novembro 02, 2016

A igualdade é difícil 

ROBERTO DAMATTA

O GLOBO - 02/11

Temos uma aguda consciência das diferenças e dos abismos que separam e distinguem indivíduos e coletividades. Não há mais nenhum lugar inocente e sem sofrimento



Uma fábrica é uma máquina de igualdade. Seu objetivo é produzir coisas iguais, e sua reputação tem a ver com a capacidade de produzir perfeitamente o mesmo do mesmo. O problema é que, começando com o seu proprietário, a igualdade da produção em massa promove, em outros níveis, uma brutal desigualdade.

Por outro lado, é impossível não constatar a impossibilidade de produzir objetos idênticos em sociedades não industriais. Quando eu vivi com os índios apinayé, surpreendia-me o fato de todos saberem quem eram os autores dos objetos — cestas, esteiras, arcos, bordunas, flechas ou enfeites — que eu havia adquirido para o museu onde trabalhava.

O igual é o modelo do fabricado. Todos seriam iguais perante a lei e igualmente iguais perante certos bens e serviços oferecidos pelo Estado ou adquiridos por meio do dinheiro, cujo valor é — vale falar no óbvio — igual para todos. Mas não se pode esquecer do “perante”. É a lei que é igual para os diferentes entre si.

Numa sociedade cujo ideal é a igualdade, as desigualdades seriam lidas como anomalias, perversões e hóspedes não convidados. Mas nem nas sociedades tribais fundadas na família, com tecnologia produzida por seus próprios membros, existe uma igualdade concreta. Há desigualdades, mas elas são transformadas em particularidades e pertencimentos. Cada grupo interno — metades, associações, linhagens — diferencia produzindo interdependências sem as quais o sistema ficaria abalado.

Ademais, entre os apinayé os demiurgos Sol e Lua, inventaram a Humanidade atirando cabaças nas águas de um ribeirão. As cabaças afundavam e, quando voltavam à tona, estouravam, e delas saíam pessoas. Sol produziu gente sadia e bonita. Mas Lua interferiu e começou a dizer baixinho: feio, cego, surdo e assim surgiram as diferenças. Quando Sol interpelou Lua, ele replicou que um mundo sem diferenças não ia dar certo.

Eis uma concepção na qual a descontinuidade não é fruto da desobediência da criatura, mas é instituída pelos criadores. Acrescento, contudo, que antes do contato com o “civilizado”, as diferenças materiais entre os membros desta coletividade eram mínimas e que a dinâmica que os une e desune é a da filiação e da afinidade, debaixo de uma ética de reciprocidade.

No nosso caso, a questão é outra. Como diz Lévi-Strauss, nós vivemos num mundo incapaz de fidelidade a si mesmo. O vir-a-ser é o tema dominante da nossa cosmologia fundada no individualismo, no progresso e, consequentemente, num futuro no qual tudo vai (ou deveria) se resolver. Temos uma aguda consciência das diferenças e dos abismos que separam e distinguem indivíduos e coletividades. Não há mais nenhum lugar inocente e sem sofrimento. Vivemos o fim das Shangri-Lás, e ninguém sabe mais quem foi James Hilton.

A novidade de um mundo globalizado é a descoberta de que nenhuma sociedade é perfeita mais adiantada. A globalização obriga a rever utopias. As musas da modernidade — liberdade, fraternidade e igualdade — são complicadas na prática. Muita igualdade liquida a liberdade. Muita liberdade dramatiza os limites das diferenças e racionaliza a exploração humana. Se o planeta é de todos, como aceitar que alguns países tenham o poder de tudo destruir?
As musas da modernidade — liberdade, fraternidade e igualdade — são complicadas na prática. 
No Brasil, o problema é como acabar de vez com o “Você sabe com quem está falando?”, esse brasileirismo inventado como último recurso hierárquico e escravista contra a igualdade republicana que obriga a entrar na fila, ser parado por um guardinha qualquer, ser compelido a responsabilidade quando se ocupa um cargo público e — eis o escândalo dos escândalos — ser enjaulado por um crime porque a lei vale mesmo para todos, e a igualdade perante e lei acaba com os privilégios. Antes de sermos presidentes, ministros, juízes, senadores e donos de grandes empresas, somos todos cidadãos. Mas como lidar com a contradição que transforma um eleito pelo povo com o nosso dinheiro numa superpessoa acima da lei? Ontem ele pedia votos, hoje — eleito por meio de um fundo partidário! — ele acha legítimo assaltar os cofres públicos.

É desprezível essa batalha judicial (mistificada como política) para manter privilégios. Estou convencido de que o discurso quase sempre vazio que enquadra as pessoas no velho dualismo de direita e esquerda dissimula muito mal o cerne da questão: somos uma sociedade dividida entre aristocratas (ancorados no Estado) e babacas — as pessoas comuns. Os que conhecem os limites dos seus papéis sociais e, com o seu trabalho, sustentam um palacianismo kafkiano de direita e de esquerda, duro de eliminar. Somos os últimos escravos...

Roberto DaMatta é antropólogo