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segunda-feira, 15 de janeiro de 2018
"Como é viver na cidade mais violenta do Rio Grande do Sul..." A cidade se chama Alvorada...
INDICADORES DA VIOLÊNCIA
Como é viver na cidade mais violenta do Rio Grande do Sul
Município da Região Metropolitana chegou à marca de 187 assassinatos em 2017.
Enquanto moradores tentam escapar da guerra aberta entre traficantes, nem policiais querem trabalhar lá
— Morreu porque disse que era de outra facção e alguém ouviu.
Quem conta é um dos moradores da Rua Campos Verdes, que marca o limite entre os bairros Salomé e Maria Regina, em Alvorada, ao lembrar a execução de Lucas de Oliveira Rolim, 27 anos, no começo de setembro. O homem foi executado por três homens armados quase na frente de casa. E não seria de estranhar se o morador listasse outros homicídios recentes na mesma região e com o mesmo pano de fundo. Em Alvorada, raro é quem não conhece, ou pelo menos não ouviu falar, de alguém assassinado recentemente.
Em 2017, conforme dados da Secretaria da Segurança Pública, a cidade disparou no indesejado posto de cidade mais violenta do Rio Grande do Sul. Chegou à inédita marca em sete anos de levantamento, de pelo menos 187 assassinatos, com taxa de 90 homicídios/100 mil habitantes. São 84 mortos a mais do que em 2016 — alta de 81%.
— As disputas do tráfico são, quase na totalidade, os motivos dos crimes. Não há um grupo hegemônico, e as relações entre quadrilhas são muito dinâmicas, porque são pequenos grupos, que muitas vezes têm uma boca em um determinado beco e criam relações com determinada facção. A realidade é que muito poucos criminosos de Alvorada têm, de fato, influência no comando dessas facções. Eles simplesmente identificam-se e se agrupam nas cadeias, mas nas ruas, estão bem longe do poder — analisa o delegado Edimar Machado.
O limite entre os bairros Maria Regina e Salomé é um dos exemplos das relações instáveis da criminalidade. Em um beco ao lado de um valão, atuariam traficantes de uma facção. Na viela vizinha, a menos de 50 metros de caminhada em chão batido, ficam os rivais. Mas todos se conhecem.
— Todo mundo sabe quem mata e quem morre, mas quem é que vai botar a cara para falar, correndo o risco de levar um tiro logo ali? — desabafa o morador que, como todos os vizinhos, prefere nem falar sobre a realidade cotidiana.
Só na Rua Campos Verdes, foram pelo menos três homicídios em 2017.
— Fora os tiros, o pessoal que foi baleado e os que escaparam — conta uma moradora.
Ela e outras pequenas comerciantes da região até arriscam um chimarrão em frente a algum dos estabelecimentos, mas é sempre com um olho na cuia e outro na rua. Qualquer movimento estranho as deixa em alerta.
Foi assim na manhã do sábado anterior ao Natal.
— Estava atendendo na loja e de repente começaram aqueles estouros que não paravam mais. Cheguei a pensar que já eram foguetes, mas aquela hora. De repente, todos estavam atirados no chão na rua e nas casas. Eles estavam tiroteando às 21h aqui na frente — lembra a comerciante de 45 anos.
Assustou, mas ali os moradores parecem estar anestesiados pela violência.
— Outro dia foi às 14h, aqui no meio da rua. Um de bicicleta morreu e o outro escapou. Fico preocupada porque os meus filhos pequenos, de nove e quatro anos, já nem dão bola. Será que já ficou comum? — lamenta outra moradora de 45 anos.
Uma bala perdida custou o emprego
O perfil da criminalidade em Alvorada está diretamente ligado às condições sociais da população. Segundo o levantamento de 2015, Alvorada tem o pior PIB per capita do Estado. Três vezes inferior ao de Gravataí, por exemplo. E apenas 10,8% da população tinha ocupação naquele ano _ menos da metade de Gravataí.
— O tráfico de drogas, com a venda de pequenas quantidades de crack, aparece como chance de lucro rápido. A violência maior está justamente neste nível do tráfico, que prevalece em praticamente todas as regiões da cidade — explica o delegado Edimar Machado.
Para quem consegue um emprego, proteger-se da violência virou novo critério necessário no dia a dia.
— Quem está morrendo tem envolvimento, mas sempre sobra para quem não tem nada a ver — lamenta um jovem de 20 anos.
Até o final do ano passado, vivia a perspectiva do primeiro emprego com carteira assinada. Quando completou o primeiro mês na condição, foi atingido por uma bala perdida em meio a um tiroteio no bairro Onze de Abril.
— Estava caminhando na rua e começou aquela correria. Nem deu tempo de me esconder, já senti o meu pé — conta.
Foram sete meses entre a internação hospitalar e a impossibilidade de caminhar. O rapaz perdeu o emprego. Agora, tenta se reerguer trabalhando informalmente em uma lavagem de carros no bairro Maria Regina.
Faltam policiais, sobram crimes
O jovem baleado no pé estava disposto a falar à polícia o que sabia do crime. Depois, desistiu. Ele relata só ter sido ouvido uma vez, ainda no hospital. Nunca mais foi chamado à Delegacia de Homicídios de Alvorada, que investigaria o caso. O crime não teve mortos e aí, diante da limitação da delegacia, foi para o fim da fila das prioridades investigativas.
É uma dificuldade real. As pessoas (policiais aprovados), geralmente do Interior, têm visão muito ruim de Alvorada, aí resistem à nomeação. Estamos estudando formas de impedir debandadas.
VOLNEI FAGUNDES
Delegado regional metropolitano
A delegacia especializada conta com 12 agentes, somente nove dedicados à investigação, e dois deles sempre em regime de plantão. Com média de um assassinato a quase dois dias, não houve plantão em 2017 sem um homicídio a ser investigado.
— Naturalmente, uma investigação acaba atropelando a outra — admite o delegado Edimar Machado.
Em Porto Alegre, por exemplo, onde o Departamento de Homicídios conta com seis delegacias, cada uma delas tem, em média, 14 agentes na investigação. A 5ª DHPP, que tradicionalmente tem o maior volume de homicídios na Capital, atendeu pelo menos 140 homicídios consumados em 2017.
Se não bastasse a alta demanda e a dificuldade em encontrar testemunhas dispostas a falar com a polícia, difícil é encontrar policiais que queiram trabalhar em Alvorada. No chamamento de concursados no começo do ano, restavam dois aprovados e havia duas vagas para a cidade. Eles preferiram não assumir seus lugares. Desde a criação da especializada, no final de 2012, duas vezes houve debandadas de agentes com as saídas dos delegados para departamentos em Porto Alegre.
Na última turma de novos agentes, que foram nomeados em dezembro, a Homicídios de Alvorada recebeu cinco novos agentes, mas já precisou repor perdas, porque dois haviam saído da delegacia.
— É uma dificuldade real. As pessoas, geralmente do Interior, têm visão muito ruim de Alvorada, aí resistem à nomeação. Estamos estudando formas de impedir debandadas. O plano é de que pelo menos até o final de 2018 ninguém seja removido de Alvorada. Pelo menos até que tenhamos novas nomeações, e aí as delegacias de homicídios da região serão priorizadas — afirma o delegado regional metropolitano, Volnei Fagundes.
Quando se trata da investigação de homicídios, a rotatividade de agentes é ainda mais prejudicial.
— A solução mais rápida dos crimes deste tipo é diretamente relacionada ao conhecimento adquirido e acumulado pelas equipes de investigação. Quando acontece um crime, se o agente já tem o mapeamento das relações criminosas naquela área, a busca por elementos de prova fica facilitada — explica Fagundes.
De acordo com diretor de polícia Metropolitano, delegado Fábio Motta Lopes, não significa que o conhecimento adquirido se perde com a saída de agentes.
— Isso fica na delegacia, mas é claro que um agente novo precisa se ambientar às situações. E isso pode levar um tempo maior — afirma.
"Os intangíveis" / Samuel Pessoa
domingo, janeiro 14, 2018
Os intangíveis
SAMUEL PESSÔA
FOLHA DE SP - 14/01
O jovem físico (isto é, eu) achava, como é comum entre os físicos, que o desenvolvimento de uma sociedade resultava do domínio das técnicas mais avançadas e da produção de bens mais complexos. Achava que o orçamento da Nasa e do Pentágono e a política de compras do governo americano eram responsáveis pelo desenvolvimento daquela sociedade.
Era entusiasta da reserva de mercado de informática. Essa política pública era muito popular entre os físicos à época. Lembro-me de meu professor da disciplina de "fenômenos aleatórios em física" entusiasmado com os computadores que produzíamos. O que o desanimava era o custo: "Samuel, temos um problema de custos...".
Perguntei a José Roberto sobre a reserva de mercado. Sorrindo para o jovem físico e sabendo que iria desapontar, falou: "Nessa área, o maior valor adicionado não está nas máquinas, no hardware, mas sim nos programas, no software. É aí que o ganho se encontra. A reserva de mercado obrigará nossos programadores a trabalhar com as piores máquinas. Não vai funcionar".
A esquerda (mas não somente a esquerda) tem particular dificuldade de entender que o crescimento não é produzir coisas tangíveis. Talvez a leitura, por gerações e gerações, de "O Capital", obra escrita no início da segunda Revolução Industrial, e a referência obrigatória a diversos escritos de Lênin –autor do auge da segunda Revolução Industrial, aquela do aço, das grandes siderúrgicas e seus gigantescos altos-fornos, das usinas hidroelétricas e do motor a combustão interna–, tenham moldado essa visão de mundo.
Desenvolvimento econômico ficou associado a produzir navios, locomotivas, carros e armas –tanques, canhões, grandes encouraçados etc.
Foram necessárias muito reflexão, aula de microeconomia e introspecção para que o jovem físico se convencesse de que um litro de leite na prateleira de um supermercado é produto muito distinto do que um litro de leite na porteira da fazenda. E que, de fato, há muito trabalho para retirar o leite da fazenda e colocá-lo certificado, com prazo de validade, na prateleira de um mercado a 50 metros da casa do consumidor.
Infelizmente boa parcela das políticas de desenvolvimento econômico adotadas nos últimos anos é informada pela visão pobre descrita neste artigo. Repetimos erros e desperdícios
Meu primeiro curso de economia foi de "economia brasileira", como aluno ouvinte. Matéria da graduação da FEA-USP ministrada por José Roberto Mendonça de Barros no segundo semestre de 1986.
José Roberto, profissional com carreira muito exitosa, tanto na academia –estudos sobre história econômica e economia agrícola– quanto no setor privado –lidera há anos sólida empresa de consultoria–, ficava a cargo da disciplina mais interessante e complexa da grade da graduação. Éramos apresentados à história econômica brasileira do período do café, a partir de 1860, aproximadamente, até a época atual, no caso, os conturbados anos 1980.
O jovem físico (isto é, eu) achava, como é comum entre os físicos, que o desenvolvimento de uma sociedade resultava do domínio das técnicas mais avançadas e da produção de bens mais complexos. Achava que o orçamento da Nasa e do Pentágono e a política de compras do governo americano eram responsáveis pelo desenvolvimento daquela sociedade.
Era entusiasta da reserva de mercado de informática. Essa política pública era muito popular entre os físicos à época. Lembro-me de meu professor da disciplina de "fenômenos aleatórios em física" entusiasmado com os computadores que produzíamos. O que o desanimava era o custo: "Samuel, temos um problema de custos...".
Perguntei a José Roberto sobre a reserva de mercado. Sorrindo para o jovem físico e sabendo que iria desapontar, falou: "Nessa área, o maior valor adicionado não está nas máquinas, no hardware, mas sim nos programas, no software. É aí que o ganho se encontra. A reserva de mercado obrigará nossos programadores a trabalhar com as piores máquinas. Não vai funcionar".
José Roberto, em 1986, sabia o que muito economista não consegue entender até hoje.
A esquerda (mas não somente a esquerda) tem particular dificuldade de entender que o crescimento não é produzir coisas tangíveis. Talvez a leitura, por gerações e gerações, de "O Capital", obra escrita no início da segunda Revolução Industrial, e a referência obrigatória a diversos escritos de Lênin –autor do auge da segunda Revolução Industrial, aquela do aço, das grandes siderúrgicas e seus gigantescos altos-fornos, das usinas hidroelétricas e do motor a combustão interna–, tenham moldado essa visão de mundo.
Desenvolvimento econômico ficou associado a produzir navios, locomotivas, carros e armas –tanques, canhões, grandes encouraçados etc.
Lembro-me de minha infância e de minha avó horrorizada com o fato de os atravessadores ficarem com toda a margem de comercialização de um litro de leite. De fato, rápida consulta à internet indica que um litro de leite na porteira da fazenda custa por volta de R$ 1, enquanto na prateleira do supermercado sai por uns R$ 2,5. Naquela época, com pior infraestrutura e sem os ganhos da tecnologia de informação, essa diferença deveria ser ainda maior.
Foram necessárias muito reflexão, aula de microeconomia e introspecção para que o jovem físico se convencesse de que um litro de leite na prateleira de um supermercado é produto muito distinto do que um litro de leite na porteira da fazenda. E que, de fato, há muito trabalho para retirar o leite da fazenda e colocá-lo certificado, com prazo de validade, na prateleira de um mercado a 50 metros da casa do consumidor.
Infelizmente boa parcela das políticas de desenvolvimento econômico adotadas nos últimos anos é informada pela visão pobre descrita neste artigo. Repetimos erros e desperdícios
domingo, 14 de janeiro de 2018
Josias de Souza tira férias e vai fazer exercício sabático: irá visitar o Passado !
Blog tira férias para planejar extermínio do futuro
Josias de Souza
Nas próximas duas semanas, o blog desfrutará de férias. Para transformar o ócio em algo produtivo, o repórter fará uma viagem ao passado. Chegando lá, tentará eliminar o futuro. A ideia é utilizar a mesma fórmula do filme O Exterminador do Futuro. O enredo é conhecido. Nele, o ciborgue Schwarzenegger é enviado ao passado para assassinar a mãe de um líder inconveniente, que se dedica a atazanar o governo. Se o problema não nascer, não existirá.
A primeira providência será definir que mães devem ser apagadas do passado, para matar pela raiz, por assim dizer, os inimigos que ameaçam fazer da sucessão de 2018 um Apocalipse brasileiro. O mais óbvio seria atrasar o relógio até encontrar as genitoras dos presidenciáveis e de seus aliados. Mas isso produziria algo muito parecido com um genocídio de mães. E talvez não resolvesse o problema.
Outra hipótese seria recuar até momento imediatamente anterior à concepção de Cabral. O risco neste caso seria o de escolher o útero errado —o de Sergio em vez do de Pedro Álvares. E o problema que envenena o futuro do Brasil continuaria vivo. Melhor que o novo Schwarzenegger seja enviado a um passado bem mais remoto. O repórter planeja postar-se ao pé da rampa da famosa Arca. Ao pressentir a aproximação do casal de ratos, gritará a plenos pulmões para o velho Noé: “Não! Não! A ratazana não!” Se o signatário do blog não retornar da viagem, é porque algo deu errado.
Um jardineiro que ama o Jardim...! / Fernando Leite Fernandes
O JARDINEIRO
O escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez disse, certa vez, que se alguém almeja ser universal, comece por modificar as coisas erradas da sua aldeia. "Gabo" como era conhecido por seus amigos mais próximos, ganhou o Nobel de Literatura. Faz parte de um seleto grupo de escritores latino americanos a conseguir este feito.
Digo isso para reafirmar minha posição política. Não dou conta de modificar o establishment do Brasil, minha Pátria amada, violada por biltres e pulhas, mercenários, bandidos acumpliciados com autoridades que deveriam enfrenta-los, julga-los, condena-los e prendê-los. A libertação do nosso país exige a luta coletiva, massiva, corajosa e, à despeito de exemplos históricos de resistência e patriotismo, a sociedade do tempo presente é refém do seu maior inimigo, o medo visceral, o medo conformado, antipatriótico. A instauração da anomia.
O Brasil soberano continuará a ser minha profissão de fé. Mas, começo cultivando o meu quintal.
Diante desta constatação, primeiro, mudei a mim. Só as estátuas não mudam e não mudam para não mudarem o que está ao seu redor. Não há convicção no imobilismo. Acredito na insistência do jardineiro, que espalha sementes no deserto. Creio na metáfora da raiz que luta, incansavelmente, para colher a água do subsolo e ver o sol. Ainda que para tanto tenha que mudar de rota muitas vezes.
Retomei a militância cívica, acima das jaulas dos partidos. A luta causal, honesta, franca, humanitária, libertária e não, a contenda suja, covarde, à sorrelfa, que defende o cenário de terra arrasada para arranjar culpados.
Espero, um dia, utopia ou não, olhar para trás e perceber que uma, pelo menos, uma flor, brotou da minha tarefa de jardineiro.
(FLF)
Leia com ajuda do link e depois vomite, chore, rogue praga... !
País insiste em maus exemplos de autoridades públicas
O que 120 pontos na carteira, uma tornozeleira e um delegado indignado dizem sobre o Brasil
sábado, 13 de janeiro de 2018
Ensaio... A Democracia e suas cinco mortes... / Bolívar Lamounier
A quinta morte da democracia
BOLÍVAR LAMOUNIER
ESTADÃO - 13/01
O fator preponderante nos retrocessos e rupturas é a falta de convicção das elites
Examinando as condições de atraso econômico e assustadora pobreza na virada do século 19 para o 20, Euclides da Cunha escreveu que o Brasil era um país “condenado à civilização”. Não tínhamos como ficar parados, nem como andar devagar. Precisávamos andar rápido e a direção só poderia ser a do progresso e da paciente edificação de instituições.
Adepto da filosofia positivista, à qual não faltava certo viés autoritário, Euclides não percebeu que uma parte do problema já estava encaminhada desde 1824. É mais que óbvio: insistir no absolutismo herdado do período colonial ou resvalar para o caudilhismo hispânico seria o caminho mais curto para recairmos na fragmentação e na desordem. O Estado constitucional e seu corolário, o sistema representativo de governo, amenizavam as tensões e delineavam um futuro – esse a que hoje denominamos democracia. Na última década daquele século, não fora o gênio de Rui Barbosa, é muito possível que tivéssemos sucumbido a um cenário extremamente destrutivo.
Num breve apanhado retrospectivo, podemos dizer que a morte da democracia representativa foi anunciada pelo menos cinco vezes desde o início da República, e apresso-me a esclarecer que os respectivos argumentos ocorreram em muitos países, inclusive no sul da Europa, e que não os subestimo: não é minha intenção caricaturá-los.
A primeira morte foi concebida como um caso de mortalidade infantil. Os mecanismos institucionais da democracia – eleições, partidos, parlamentos – não se conseguiriam “desprender” do poder privado dos fazendeiros, chefes e mestres da política de campanário. A proveniência desse argumento era basicamente protofascista, mas o próprio Sérgio Buarque de Holanda o situou entre as principais “raízes do Brasil”. Para os povos latinos, ele escreveu, é difícil imaginar normas gerais pairando sobre nossa cabeça. A hidra do passado colonial deglutiria as nascentes democracias tão facilmente como uma sucuri deglute um cachorrinho poodle.
O segundo atestado de óbito veio nos anos 30, agora com uma nítida declaração de origem fascista. A democracia liberal, dizia-se, era plausível enquanto se restringia a rusgas entre partidos – que, afinal, não passavam de pequenos grupos de notáveis provincianos – para decidir quem nomeava o agente local dos correios. Naquela quadra, escreveu Francisco Campos, o solitário autor da Constituição ditatorial de 1937, o liberalismo concebeu o mundo político segundo a imagem da esgrima forense. Mas o advento do capitalismo industrial elevou dramaticamente o nível dos conflitos, transformando-os em enfrentamentos mortais entre o capital e o trabalho. Nessa nova sociedade, sentenciou, só haveria lugar para “governos fortes”.
Depois da 2.ª Guerra Mundial, em todo o mundo a palavra-chave passou a ser “desenvolvimento”. O problema com a democracia seria sua incapacidade de cumprir certos “pré-requisitos”. Ela só seria possível em sociedades que previamente se houvessem adiantado economicamente, que contassem com uma população homogênea e altamente escolarizada, e assentadas sobre um robusto consenso nacional. Pior ainda, a democracia seria incompatível com o “planejamento”, a nova panaceia econômica. Hoje é fácil perceber que essa nova elucubração se esquecia de um pequeno detalhe. A democracia não foi inventada para as sociedades desfrutarem condições ideais após haverem superado cabalmente os seus conflitos, mas para que pudessem (e possam) equacioná-los com o mínimo possível de violência, dentro de um marco institucional justo e acessível a todos os grupos relevantes.
A quarta morte da democracia foi atestada no contexto do conflito Leste-Oeste, principalmente pela voz dos ideólogos marxistas. Sua sentença de morte estaria embutida na rápida ascensão e na superioridade tecnológica da economia planificada de tipo soviético. Até Isaac Deutscher, um homem culto, chegou a escrever isso. Antonio Gramsci fez um arranjo dessa peça para soprano ligeiro: o socialismo triunfará no campo da cultura, sem necessidade de recorrer a uma revolução sangrenta.
Mais complicada, até porque ainda se apresenta de uma forma nebulosa, é a quinta morte. O que se diz atualmente é que a democracia representativa é incompatível com a sociedade de hoje, na qual já não se discernem classes sociais, mas sim uma infinidade ameboide de grupos, movimentos, conselhos, etc. O caos passou a ser a norma. Nesse quadro, o representante não sabe a quem representa e a própria noção de representação perde o sentido.
Ou seja, o mundo atual é um caos permanente, indefinível, cujos contornos ninguém se atreve a tentar descrever. Que tipo de governo conseguirá mantê-lo sob controle? O chinês, no qual o Partido Comunista controla com mão de ferro um capitalismo selvagem? A democracia dita direta, reminiscente do anarquismo, em que a bondade humana substitui a “mão invisível” de Adam Smith? Uma Venezuela em escala cósmica? Ou, quem sabe, uma regressão ao pretorianismo romano, como no reinado de Cômodo, no qual mercenários leiloavam seu apoio ao imperador? Claro, com uma pequena diferença: os mercenários de hoje não portariam precárias adagas como as daquele tempo, e sim vistosos AK-47.
Não subestimo nenhuma dessas hipóteses, mas penso que o problema é bem outro. Na história das democracias, o fator preponderante nos retrocessos e rupturas sempre foi a falta de convicção das elites, sua falta do mais elementar bom senso e sua covardia quando o exercício da autoridade governamental se fez necessário. A República de Weimar e o Brasil de 1961-64 são bons exemplos. Por tudo isso, dói constatar que o Brasil ainda não se livrou em definitivo do populismo e de uma classe política virtualmente desprovida de responsabilidade pública.
*Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de ‘Liberais e Antiliberais’ (Companhia das Letras, 2016)
Por favor, um microfone para cada um...
sábado, janeiro 13, 2018
O Muro de Oprah
GUILHERME FIUZA
O Globo - 13/01
Catherine e suas colegas disseram, com jeitinho, que suposto despertar feminista hollywoodiano é show autopromocional
Desta vez Meryl Streep não chorou. Na edição anterior do Globo de Ouro, suas lágrimas roubaram a cena para anunciar o fim do mundo com a derrota eleitoral da companheira Hillary. Os Estados Unidos tinham acabado de cair nas mãos da elite branca egoísta, e a atriz estava inconsolável diante do destino hediondo que colhera a maior democracia do planeta. Um ano depois, o emprego entre negros e hispânicos no país alcançou nível recorde. E o tema deixou de comover Meryl.Ela e seus colegas preocupadíssimos em defender alguma vítima de alguma coisa mudaram de assunto no Globo de Ouro deste ano. Com a desoladora notícia de que os fracos e oprimidos tinham melhorado de vida no primeiro ano do governo assassino, a brigada salvacionista concentrou-se nos casos de assédio sexual. A convocação da estilista que organizou o protesto dos trajes pretos era uma fofura, tipo “não é uma boa hora para você bancar a pessoa errada e ficar fora dessa”.
Se uma intimação assim viesse do inimigo era assédio moral na certa.
Mas o show tem que continuar, e a butique ideológica foi um arraso. O stand up apocalíptico de Meryl Streep em 2017 deu lugar ao palanque apoteótico de Oprah Winfrey — aclamada, eleita e já empossada como a nova presidente dos Estados Unidos da América. Faltam apenas uns detalhes burocráticos, bobagens da vida real — que só existem para atrapalhar, como mostram os números do emprego. O ideal seria se Oprah pudesse culpar o agente laranja da Casa Branca pela marginalização dos negros, mas a realidade atrapalhou mais uma vez.
Aí ela gritou pela mulher. Coisa linda. Todo mundo chorando de novo, que nem no apocalipse da Meryl. Se Obama ganhou o Nobel da Paz antes de começar a governar, Oprah era capaz de levar o prêmio ainda no tapete vermelho. Aí vieram os estraga-prazeres lembrar a bonita sintonia da apresentadora com o dublê de produtor e predador Harvey Weinstein — sem uma única palavra dela sobre os notórios métodos do selvagem de Hollywood. Ainda veio o cantor Seal, que também é negro, dizer que Oprah é “hipócrita” e “parte do problema”. Impressionante como essa gente não sabe assistir a um happy end em paz.
O governo Oprah deveria começar construindo um muro para os invejosos não secarem mais o Globo de Ouro. Quem viesse com comentários desagradáveis sobre esse impecável espetáculo demagógico seria sumariamente deportado. Não faz o menor sentido você ter um trabalhão montando a coleção outono-inverno do luto sexual para vir um bando de forasteiros rasgar a fantasia e deixar o heroísmo de ocasião inteiramente nu.
Como se não bastasse, aparece Catherine Deneuve para jogar a pá de cal no picadeiro. Mais uma invejosa. Sobe logo esse muro, presidenta Oprah. Catherine e suas colegas disseram, com jeitinho, que o suposto despertar feminista hollywoodiano é basicamente um show autopromocional e não ataca o problema real. Estaremos sonhando? Será que finalmente alguém relevante teve a bondade de dizer isso?
Não, não é sonho. E La Deneuve disse mais: essas estrelas falsamente engajadas trazem, na verdade, uma ameaça de retorno à “moral vitoriana”, escondida nessa “febre por enviar os porcos ao matadouro”, nas palavras do manifesto publicado no “Le Monde”. Ou seja: não há nada mais moralista e reacionário que o politicamente correto. Até que enfim.
Claro que a patrulha já caiu em cima, acusando as francesas de complacência com o machismo tirânico. Retocar os fatos, como se sabe, é a especialidade da casa. Abuso de poder para chantagem sexual precisa ser denunciado sempre — não só quando se acendem as luzes do teatrinho, companheira presidenta Oprah Winfrey e grande elenco enlutado. Mas montar uma caça às bruxas fingindo que sedução é agressão — e colecionando banimentos de grandes artistas como troféu — é igualmente abominável. Tão feio quanto abandonar o tema da opressão aos negros quando o script do tapete vermelho é contrariado pela realidade.
Danuza Leão disse que o desfile dos vestidos pretos no Globo de Ouro parecia um velório. Já está sendo devidamente patrulhada, porque não se desmascara os retrógrados moderninhos impunemente (a patrulha não sabe com quem está se metendo). Aguinaldo Silva também anda sendo patrulhado por ser gay e não fazer proselitismo gay — veja a que ponto chegamos. É o ponto em que uns procuradores iluminados resolvem obrigar (repetindo: obrigar) o Santander a remontar a exposição da criança viada para fazer a selfie “heróis da diversidade”. Perguntem a Catherine Deneuve se arbitrariedade promocional faz bem à liberdade sexual.
Chega de dar plateia a esses reacionários trans. Melhor deixá-los a sós discutindo se Anitta na laje é cachorra ou empoderada.
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