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quarta-feira, 7 de novembro de 2012

"Até muito pouco tempo não tinha coragem de escrever -escritora - em ficha de hotel"...


Crônicas

Sempre que preencho a ficha de um hotel e escrevo, no espaço destinado à profissão, a palavra “escritora”, sinto um estremecimento. Até muito
Por Por Heloisa Seixas
Sempre que preencho a ficha de um hotel e escrevo, no espaço destinado à profissão, a palavra “escritora”, sinto um estremecimento. Até muito pouco tempo, não tinha coragem de fazer isso. 
Botava “jornalista”. Até que um dia, tomando coragem, escrevi. 
A palavra ficou ecoando dentro de mim: ES-CRI-TO-RA. É algo que até hoje me surpreende. 
E por quê? Primeiro, porque comecei a escrever tardiamente (com quase 40 anos) e no início achei que estava tendo uma espécie de surto, coisa passageira. Demorei algum tempo até me acostumar à ideia. Lembro de um dia em que caminhava ao lado de minha filha, Julia, pelo calçadão da Praia de Ipanema, e encontrei o escritor Carlos Heitor Cony, que havia lido e gostado muito de meu primeiro livro: Pente de Vênus. Ele ia ao lado da mulher, Bia, e levava a passear uma linda cadela de pelo lustroso, cor de mel, chamada Mila. Na época, ninguém poderia supor que dali a algum tempo a cachorrinha cairia doente e Cony escreveria um livro dedicado a ela: "Quase memória". Ao me ver, Cony sorriu e, sem mais nem menos, virou-se para minha filha e disse: “Sabe de uma coisa? Sua mãe é uma escritora.”
Ouvi aquilo e fiquei muda, tomada por uma emoção fortíssima. Até então, nem me passava pela cabeça uma definição assim tão crua, afiada como uma sentença. E se Cony dizia é porque era verdade. Foi a partir desse dia que comecei, aos poucos, a acreditar. Mas daí a me definir como escritora nas fichas dos hotéis ainda foi uma longa estrada.
A outra razão para meu estremecimento é que não sou apenas uma escritora – mas uma escritora brasileira. Isso não é fácil. Lê-se muito pouco no Brasil. O que talvez explique nossa tradição tão forte de cronistas. O acesso mais fácil a jornais e revistas por parte dos leitores, inclusive nas mais remotas localidades do país – onde não há livrarias –, pode ter sido determinante para criar tal tradição. Um de nossos grandes cronistas atuais, Luiz Fernando Verissimo, já comentou que um caso como o de Rubem Braga, que tem reputação literária sólida sem jamais ter escrito outra coisa que não crônica, é talvez único no mundo. 
Desde Machado de Assis, João do Rio, Lima Barreto, Ribeiro Couto, Luiz Edmundo e Olavo Bilac, a crônica brasileira tem mostrado sua força. Mas, a partir dos anos 1950, nomes como Antonio Maria, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Nelson Rodrigues, Sergio Porto, Elsie Lessa e Clarice Lispector, além do próprio Cony, ajudaram a modernizar a imprensa brasileira, mudando o estilo antes tão formal dos nossos jornais.    
A força dos cronistas brasileiros é algo que pude sentir na pele. Tenho mais de dez livros editados, mas foi por meio da crônica, publicada em revistas ou jornais, que tive acesso maior e mais imediato aos leitores, muitas vezes em contatos comoventes. Lembro bem de uma dessas ocasiões, quando, durante uma palestra minha, uma senhora se levantou no fundo da sala e perguntou se podia fazer uma pergunta. E fez: “Queria saber se os escritores têm ideia do quanto podem transformar a vida de uma pessoa e de como isso é uma grande responsabilidade.” E acrescentou: “É que um texto que você escreveu me tirou de uma depressão.” Fiquei espantada. E antes que eu pudesse tartamudear alguma coisa, ela começou a recitar a crônica que lhe tocara tão fundo, palavra por palavra, linha por linha. Sabia tudo de cor. De coração. 
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