Dramático e amedrontador, o Cabo Horn é o fim do mundo
“A vista destas costas é suficiente para fazer um homem de terra ter pesadelos durante uma semana com naufrágios, perigos e morte”, escreveu o naturalista Charles Darwin em 1834 quando passou pelo Cabo Horn. Localizado na ponta de nosso continente, a quase 56º de latitude Sul, o Cabo Horn é um dos maiores desafios náuticos. Marinheiros, piratas, caçadores de baleias, missioneiros ou exploradores sempre sentiram um buraco no estômago ao passar de um oceano a outro. De 1616 até 1914 (quando da abertura do Canal de Panamá), esta era a rota obrigatória entre a Europa e a Costa Oeste dos Estados Unidos. Durante estes três séculos, calcula-se que mais de 800 embarcações perderam-se nas tormentas do Cabo Horn, levando a vida de cerca de 10 mil pessoas.
Não foi uma expedição científica que descobriu a passagem de um oceano a outro, mas mercadores em busca de novas oportunidades. O francês Isaac Le Maire, um dos fundadores e acionista da famigerada Companhia Holandesa das Índias Ocidentais – e depois um forte inimigo da mesma instituição – organizou a expedição de dois barcos (Eendracht e Hoorn) que zarpou da Holanda, sob o comando de seu filho Jacob.Foi a intenção de boicotar a Companhia das Índias e quebrar seu monopólio nos caminhos interoceânicos que realmente motivou a descoberta da nova passagem.
Em janeiro de 1616, o feito foi realizado, a contragosto dos holandeses. Jacob Le Maire continuou rumo oeste e cruzou todo o Pacífico, até chegar na Indonésia. Lá, a poderosa Companhia das Índias o esperava não com salvas, mas com um mandato de prisão e de apreensão do barco. Jacob morreu na viagem de volta à Holanda, mas seu pai Isaac persistiu a luta contra a primeira megaempresa e corporação multinacional do planeta, que tinha poderes tão amplos como os de um governo.
O cabo foi batizado com o nome de um dos barcos de Le Maire, Hoorn, incendiado durante a viagem, o mesmo de uma cidade holandesa. A tradução em espanhol, Hornos, que significa “fornos”, é incorreta.
No mapa do GPS do navio Via Australis, a rota que circunda o Cabo Horn, encontro entre o Atlântico e o Pacífico.
Quase quatro séculos depois de seu descobrimento, a natureza é a mesma. O clima continua inclemente, assustando qualquer indivíduo que ouse chegar a este fim do mundo. Afinal, o Cabo Horn é o mais austral de todos os cabos que tentam se aproximar da Antártica.
Mas hoje os instrumentos de navegação mudaram muito o cenário e as previsões meteorológicas avisam se a parada no Cabo Horn é possível ou não. Hoje, por sorte, as ondas na baía onde os botes infláveis atracam não estão violentas. Podemos baixar. Isso não significa que seja um passeio prazeroso: o céu está encoberto, o vento gelado sopra sem trégua e uma garoa molha da cabeça aos pés. Mas o orgulho de viajólogo – conhecer um ponto do planeta tão importante – fala mais alto.
O desembarque tem sua dose de perigo. O bote deve aproveitar o movimento da onda para chegar até a rampa. Os passageiros devem sair sem hesitação e sem perder o equilíbrio. Os marinheiros estão atentos, principalmente aos casais mais idosos.
Subo as escadas que serpenteiam a falésia. A garoa transforma-se em chuva. Protejo ainda mais meu equipamento fotográfico. Chego no topo da ilha, uma espécie de platô ondulado. Por estar em lugar tão inóspito, espanto-me com os campos verdes. A constante umidade ajuda a manter a natureza viva, mesmo se em um lugar tão frio.
O solo molhado é delicado e sigo um caminho feito de tábuas, construído para preservar o ecossistema frágil. A algumas centenas de metros, vejo a pequena base naval chilena, junto com o farol. Aqui vive um oficial da marinha com sua família durante um ano.
O farol, a 57 metros acima do mar, serve como referência para os barcos que cruzam o Cabo Horn. É o farol mais austral do mundo.
Se existe uma razão para estar neste rincão tão afastado do planeta é conhecer o monumento criado pela seção chilena da Confraria dos Capitães do Cabo Horn, os chamados Cap Horniers. As 10 placas de aço que formam a figura de um albatroz-gigante, ave do oceano austral, homenageiam todos os marinheiros, de todas as nacionalidades, que perderam suas vidas na região.
Inaugurado em 1992, o monumento demandou uma logística particular: as 120 toneladas de material foram transportadas por dois navios da marinha chilena e a estrutura de aço foi desenhada para aguentar rajadas de vento de até 200km/h.
O monumento da Confraria dos Capitães do Cabo Horn celebra todos que circunavegaram o ponto mais austral do continente americano.
O espaço vazio entre as duas esculturas cria a figura de um albatroz-gigante, ave cujas asas pode ter mais de 3 m de envergadura.
Na escadaria que leva ao monumento criado pelo artista chileno José Balcells Eyquem, encontro uma placa de mármore com um poema da escritora Sara Vial. Em poucas palavras, a poetisa de Valparaíso revela o simbolismo do albatroz do Cabo Horn:
Sou o albatroz que te espera no fim do mundo.
Sou a alma esquecida dos marinheiros mortos que cruzaram o Cabo Horn desde todos os mares da terra.
Mas eles não morreram nas furiosas ondas,
Hoje voam em minhas asas até a eternidade,
Na última fenda dos ventos antárticos.
Sou a alma esquecida dos marinheiros mortos que cruzaram o Cabo Horn desde todos os mares da terra.
Mas eles não morreram nas furiosas ondas,
Hoje voam em minhas asas até a eternidade,
Na última fenda dos ventos antárticos.
Poema de Sara Vial sobre o albatroz do fim do mundo.
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