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quarta-feira, 30 de abril de 2014

Todas as criaturas são humanas.... // Roberto Damatta

Roberto Damatta
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Um surto etnológico

30 de abril de 2014 | 2h 07

Roberto Damatta - O Estado de S.Paulo

Um escritor advertia que o personagem central de um texto é o leitor. Sigo o conselho e explico o meu título: surto significa arrebatamento, transporte, rapto. Etnológico diz respeito ao estudo de sociedades tidas como "selvagens" ou "primitivas" porque não tinham escrita, desconheciam uma tecnologia onipotentemente destrutiva, sua sabedoria estava na cabeça de um punhado de idosos e, eis um escândalo: não cobriam seus corpos.
Discutiu-se se tinham alma e imaginou-se que habitavam uma variante do Éden, mas a convivência - essa rotina que transforma presidentes em donos de quitanda e deputados em canalhas logo mostrou que os "primitivos" eram humanos como nós e, como dizia Mark Twain, não pode haver nada pior do que ser um homem.
Surtado, perambulei pelas minhas notas de campo, escritas entre 1961 e a primeira quadra de 1970, quando vivi intermitentemente nas aldeias dos povos gaviões e apinaiés, falantes da língua jê. Na estação atual da minha vida, senti saudade de mim mesmo e fui em busca dos meus 20 e poucos anos, quando tinha uma letra bonita; e não havia experimentado sofrimento, morte e perigo. Sabia de sua existência, mas essas coisas não tocavam meu coração (que era maior do que o mundo) nem os planos de marcar a profissão que abracei com entusiasmo inocente e alucinado.
Queria descobrir se eu havia deixado passar em branco aquilo que meus colegas mais jovens haviam elaborado debaixo da liderança intelectual de Eduardo Viveiros de Castro, a quem eu dedico essa pequena memória.
Viveiros de Castro é um raro mestre pensador. Num ensaio de grande alcance intelectual, ele formulou uma relação que havia passado despercebida, a saber: no universo dos indígenas americanos, o denominador comum entre os seres vivos não era a natureza, mas a cultura.
Para nós, a humanidade é o centro definitivo e absoluto de consciência e vontade, mas não é assim entre os índios. Para eles, ser humano é um modo de ser entre outros. Talvez seja o mais visível, mas não é o mais central ou definitivo como dizem as cosmologias mais conhecidas e mais influentes, as quais asseveram que o ato final da criação são os humanos. Entre os ameríndios não há sete dias que culminam no Homem. Há uma multidão de narrativas reveladoras que as diferenças entre homens, bichos e plantas não é de substância.
Vejam o contraste. Do nosso ponto de vista, a sociedade humana é a herdeira de toda a criação. Homens, animais e plantas se unem pela sua "natureza" física. No mais, são radicalmente diferenciados, pois foi apenas a humanidade que recebeu o sopro divino.
Entre os "índios", porém, a humanidade é um modo de ser, estar e perceber, entre outros. Eduardo Viveiros de Castro cunhou o conceito de "perspectivismo" para designar esses outros modos de enxergar a vida. Os mortos, os animais, as plantas e os fenômenos naturais seriam outras formas ou possibilidades de vivenciar a subjetividade que não seria algo exclusivo do humano.
Neste sentido, os mitos não são criações destinadas a explicar o inexplicável. São testemunhos de que somos parte de um imenso todo capaz de se comunicar o qual, em momentos memoráveis, se dividiu em entidades com uma aparência diferenciada, mas todas dotadas da capacidade de comunicação. Como pode adivinhar o leitor, tal reencontro se faz por meio de rituais ou em situações especiais - acima de tudo quando o ser (seja humano ou bicho) passa por um estado de extremada individualidade e solidão.
Consultando e lendo minhas notas de décadas passadas, colhidas na obstinação dos meus verdes anos, encontro muitas informações sobre animais. Esses atores fundamentais dos mitos que logram ou são logrados por algum humano e que, os meus professores nativos, repetiam para ouvidos moucos que eles eram iguais a nós e nos doaram o que sabemos.
Hoje, graças ao trabalho de Tania S. Lima, Aparecida Vilaça e Carlos Fausto - revejo meus dados e descubro como sol e lua, as estrelas, o sapo, os morcegos, o beija-flor e outros bichos são como nós e nós como eles. Eis um universo absolutamente relacional. Nele, ninguém tem o direito de ultrapassar um certo limite porque não há limites, mas modos de ser. Quanto a nós, que inventamos e legitimamos a "civilização" através da tecnologia (do uso dos talheres à bomba atômica), há muito vazamos todas as fronteiras.
Afinal, somos inventores e compradores de automóveis e, pior que isso, de refinarias.
(Se o surto continuar, eu continuo na próxima semana.)

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O poder dos livros traz surpresas... / Roberto Damatta

Home » Artigos » Imprevistos

Imprevistos 

Eu disse e repito: livros são tão vivos quanto as pessoas. Gritam, soluçam, silenciam, pregam, ensinam, sugerem, inspiram e podem ser usados, descartados e esquecidos.
Uma vez, quando tomei parte numa homenagem ao professor Richard Moneygrand, em New Caledonia, Estados Unidos, depois das formalidades fui à sua casa para fechar a noite. Moneygrand estava muito feliz. Havia bebido bem, mas não perdera a compostura, pois nele o mero álcool apenas acentuava o seu desprendido amor pelos outros, inclusive pelos seus mais ferozes inimigos: o grupo contrário ao estudo do Brasil como algo distinto da “américa-latina” na sua universidade. Na ocasião desse último trago, ele comentou comigo que havia tido uma conversa extraordinária com uma mulher e como essa criatura lhe fora simpática, amável e até mesmo atraente, apesar da idade. “Tive com ela — disse-me com um ar que transpirava a felicidade da ocasião — um encontro notável. Ela sabia muito da minha obra, conhecia alguns detalhes das minhas viagens ao Brasil e, mais que tudo, tinha simpatia pela minhas opiniões. Mas veja como são as coisas… Eu não me lembro do seu nome — como a memória é imprevista.”
“Dick — repliquei — aquele senhora simpática era Lana, sua terceira esposa, lembra?”
Meu velho mentor arregalou os olhos, soltou uma das suas vastas gargalhadas e após dar um beijinho na sua quarta ou quinta mulher (agora eu é que não lembro), a Susan Smith, já substituída por outras, repetiu o seu velho refrão: “A cada nova pesquisa e livro — uma esposa nova ou uma nova esposa!”, disse ele piscando um olho muito azul em direção à minha cara de pateta sempre paralisado pela culpa.
Voltemos, porém, aos livros. Eles são esquecidos, mas podem ser sempre lembrados, pois mudam as nossas vidas.
Não me esqueço da minha primeira leitura de “Dom Casmurro”, realizada numa aldeia apinajé pelos idos dos anos 60. Peguei o livro certo de que ele ia me conduzir ao sono que dribla a solidão, mas ocorreu o justo oposto. Fui enredado pelo texto até o amanhecer porque um lado meu queria ver Capitu castigada; enquanto um outro, recordava um beijo enviesado, exatamente igual ao de Bentinho, e isso me fazia duvidar da infâmia da heroína, obrigando-me a desconfiar de uma exposição feita por um sujeito tão ciumento quanto eu.
"Valores não são encontrados, mas fabricados"
Os leitores de Isaiah Berlin sabem como ele criticou modelos e verdades absolutas desde que, ainda criança, passou pelo trauma de testemunhar em fevereiro de 1917, um grupo arrastando um policial czarista numa rua de Petrogrado. Sua trajetória intelectual, contada num memorável ensaio autobiográfico na “The New York Review of Books” (de maio de 1998), é uma confissão de como os livros dos grandes pensadores iluministas, produtores de certezas sobre as famosas leis da história e da sociedade — parte de uma philosophia perennis —, foram substituídos pelo encontro com o “Ciência nova”, de Giambattista Vico, e com os ensaios sobre a linguagem e a história de Johann Gottfried von Herder. Vico tornou Berlin consciente dos valores que fazem com que as ações tenham sentido para quem as faz. Para ele, o verdadeiro conhecimento não é saber como as coisas são, mas como as coisas são o que são. Um lugar somente alcançado quando se penetra nos motivos, temores, esperanças e ambições dos outros. Podemos fazer isso porque, como eles, somos humanos e também movidos por contradições, dúvidas e limites. Nossos imprevistos ajudam a compreender imprevistos.
Com Herder, Berlin percebeu que culturas diferentes davam respostas diferentes a problemas igualmente diferentes. Ele assim aprendeu a duvidar de verdades eternas e inquestionáveis, supostamente corretas para todos os homens em todo tempo e lugar.
Esses fundadores da antropologia cultural, fizeram com que Isaiah Berlin duvidasse das ideias que se apresentavam como verdades objetivas escritas no céu e prontas para serem copiadas. A leitura de Vico e Herder revelou como as verdades eram criadas pelos homens. Valores não são encontrados, mas fabricados. Quando um poeta faz uma poesia em português, ele não apenas usa a língua: ele a reinventa. Um membro de uma sociedade é uma expressão e, ao mesmo tempo, um fazedor da sua sociedade. A singularidade conta tanto ou mais do que o geral e o universal.
Lamento não não ter espaço para elaborar essas desassossegadas ideias. Mas elas mostram como os livros, como as pessoas, falam, ensinam, influenciam e dizem coisas de modo tão concreto quanto um amigo ou um inimigo.
Na casa de Miriam e Eduardo Raposo, onde fui celebrar os elos de simpatia que cimentam o departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, ouvi do filho do casal, o Ian, a seguinte história:
— Professor Roberto, olhe o que me aconteceu. Estava na praia e dela brotou um hippie que vendia artesanato. Ele havia abandonado sua casa e família para viver na rua.
Curioso, perguntei o que o havia feito tomar esse caminho. A resposta lhe interessa, professor. Ele me disse o seguinte: “Eu decidi largar tudo depois de ter lido um dos livros do Roberto DaMatta.”
— Qual? — perguntei, entre o aflito e o curioso.
— Não me lembro. Talvez “A casa e a rua” ou “Carnavais, malandros e heróis”…
— É, pode ser… — concluí, assustado, com o poder dos livros.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

"O Brasil é um vasto programa de auditório com pitadas de missa solene e jogo de futebol..." / Roberto Damatta

Roberto Damatta
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Achados e perdidos

23 de outubro de 2013 | 2h 23

Roberto Damatta - O Estado de S.Paulo
Às vezes, eu sinto a angústia de um menino perdido numa multidão. Vivemos hoje no Brasil um período inusitado de estabilidade política permeada pelas superimposições promovidas pelo casamento entre hierarquias aristocráticas - que em todas as sociedades (e sobretudo na escravidão, como percebeu o seu teórico mais sensível, Joaquim Nabuco) têm como base a amizade e a simpatia pessoal; e o individualismo moderno relativamente igualitário que demanda burocracia e, com ela, uma impecável, abrangente e inatingível impessoalidade.
O hibridismo resultante pode ser negativo ou positivo. Pelo que capturo, o hibridismo - ou o mulatismo ético - é sempre mal visto porque ele não cabe no modo ocidental de pensar. Provam isso as Cruzadas, a Inquisição, o Puritanismo, as Guerras Mundiais, o Holocausto e a exagerada ênfase na purificação e na eugenia - na coerência absoluta entre gente, terra, língua e costumes, típicas do eurocentrismo. A mistura corre do lado errado e tende a derrapar como um carro dirigido por jovens bêbados quando saem da balada; ou da esquerda carismática-populista, burocrática e patrimonialista no poder.
Desconfio que continuamos divididos entre tipos de dominação weberiana e suas instituições. Fazer a lei e, sobretudo, preparar a sociedade para a lei, ou simplesmente prender? Chamar a polícia (que é, salvo as honrosas exceções, intensamente ligada aos bandidos e chefes do crime paradoxalmente presos) ou resolver pela "política"? Mas como fazê-lo se os "políticos" (com as exceções de praxe) estão interessados no desequilíbrio porque a estabilidade impede e dificulta a chegada ao "poder"? Poder que significa, além da sacralização pessoal, um imoral enriquecimento pelo povo e com o povo. Ademais, somente uma minoria acredita na política representada por instituições igualitárias e niveladoras.
Para ser mais preciso ou confuso, amamos a dominação racional-legal estilo germano-romana, mas não deixamos de lado nosso apreço infinito pela dominação carismática em todas as esferas sociais, inclusive na "cultura", como revela esse disparate de censurar biografias. Temos irrestrita admiração por todos os que usaram e abusaram da liberdade individualista nesse nosso mundinho relacional quando os perdoamos e não os criticamos, o que conduz a uma confusão trágica entre o uso da liberdade e o seu abuso irresponsável. Esses mimados pela vida e exaltados pelos amigos - os nossos maluquinhos - legitimam a ambiguidade que se consolida pelo pessoalismo do herói a ser lido pelo lado do direito ou do avesso. Esse avesso que, no Brasil, é confundido com a causa dos oprimidos num esquerdismo que tem tudo a ver com uma "ética da caridade" do catolicismo balizador e historicamente oficial. Com isso, ficamos sempre - como dizia aquele general-ditador - a um passo do abismo. Andar para trás é condescendência, para a frente, suicídio.
Como gostamos de brincar com fogo, estamos sempre a um passo da legitimação da violência justificada como a voz dos oprimidos que ainda não aprenderam a se manifestar corretamente. E como fazê-lo se jamais tivemos um ensino efetivamente igualitário ou instrumental para o igualitarismo numa sociedade cunhada pelo escravismo e por uma ética de condescendência pelos amigos e conhecidos?
Pressinto uma enorme violência no nosso sistema de vida. Temo que ela venha a ocupar um território ainda mais denso e seja usada para legitimar outras violências tanto ou mais brutais do que o "quebra-quebra" hoje redefinido como "manifestações". Protestos que começam como demandas legitimas e, infiltrados, tornam-se "quebra-quebras". Qual é o lado a ser tomado se ambos são legítimos e, como é óbvio, dizem alguma coisa como tudo o que é humano?
Estou, pois, um tanto perdido e um tanto achado nessa encruzilhada entre demandas legais e prestígios pessoais. Entre patrimonialismo carismático e burocracia, os quais sustentam o "Você sabe com quem está falando?" - esse padrinho do "comigo é diferente", "cada caso é um caso", "ele é meu amigo", "você está errado mas eu continuo te amando"... E por aí vai numa sequência que o leitor pode inferir, deferir ou embargar.
Embargar, aliás, é o verbo e a figura jurídica do momento em que vivemos e dos sistemas que se constroem pela lei, mas confundindo a regra com o curso torto, podre e vaidoso da humanidade, tem as suas cláusulas de desconstrução. Com isso, condenamos com a mão direita e embargamos com a esquerda; ou criamos os heróis com a esquerda e os embargamos com a direita. Construímos pela metade. O ponto que já foi ressaltado por mim algumas vezes é o simples: se conseguirmos assumir e controlar abertamente a ambiguidade, há a esperança de controlá-la. E isso pode ser uma enorme vantagem num planeta cujo futuro é um inevitável "abrasileiramento".
Assim, entre o ser obrigado a calvinisticamente condenar, como fazem os nossos brothers americanos que todo dia atiram nos próprios pés, podemos assumir em definitivo que todos têm razão. Afinal de contas, o Brasil é um vasto programa de auditório com pitadas de missa solene e jogo de futebol
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quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Um recheio de Filosofia nas manifestações e passeatas ...

Manifestações e passeatas

15 de agosto de 2013 
Autor: Roberto DaMatta
pequeno normal grande
Roberto DaMatta
O repórter fuzilou: professor, como explicar essas manifestações?
Não é fácil ser professor e cronista. O papel de cronista leva para uma querida reclusão, para uma ampla liberdade interior. O de professor tem uma face inevitavelmente resignada, coercitiva e pública. O resultado é que o meu pobre eu, que melhor do que ninguém entende a sua imensa ignorância, brigava com o meu senso de responsabilidade pública. Esta, queria colaborar; aquele, conhecedor dos seus limites, só queria dizer o que ninguém disse: que eu não sei, que ninguém sabe ou sabia…
Que falar do mundo é um palpitar de ignorâncias e aproximações. Que o futuro a Deus pertence e que o futuro, como ensinava Santo Agostinho, é o presente prolongado. A Certeza, essa deusa em cujo altar depositamos flores (e grana), é tão difícil quanto a Verdade. A “notícia” é justamente o imprevisto que desmancha planos e, supomos, aponta caminhos. A vida é cheia de surpresas. Projetos perfeitos para melhorar o Brasil produziram efeitos contraditórios. A esquerda, como disse o próprio Lula, não estava velha? E a popularidade de Dilma não subiu? E os fatos envolvendo o PSDB? Afinal é tudo farinha do mesmo saco?
Nossas ações têm consequências imprevistas. O bem pode gerar o mal e até mesmo a má-fé pode engendrar o bem. Aliás, o ditado — há males que vêm para o bem — diz muito quando é lido pelo avesso: há bens que vêm para o mal. Tudo o que fazemos, leitores, deixa rastro por mais calculistas, delicados ou cautelosos que possamos ser.
Então, professor, como explicar o atual momento? Pensei imediatamente na dificuldade que tem o pensamento moderno (que privilegia o indivíduo) para entender algum movimento coletivo (no qual o ator é uma coletividade). A soma não nos intriga, mas a interligação nos deixa apalermados. Curioso como a tecnologia traz de volta o mundo como um todo. Agora mesmo, Obama discute um modo de disciplinar a espionagem global que, do ponto de vista dos Estados Unidos, faz parte de sua patriótica defesa. Uma tecnologia específica nos obriga a tomar consciência de suas implicações abusivas e relembra a totalidade da qual somos parte.
Lembrei-me do Lévi-Strauss de “Tristes Trópicos” (de 1955), quando, com aquela sua excepcional visão distanciada que transforma tudo o que é atual e presente em algo minúsculo e relativo, afirma que todo avanço tecnológico implica num óbvio ganho, mas igualmente numa perda. Freud adverte em 1930, em “O mal-estar na civilização”, como é um engano pensar que o poder sobre natureza — esse apanágio de nossa “civilização” — seja visto como o centro da felicidade. Falamos com um filho que está em outra cidade pelo telefone, ou lemos a mensagem de um amigo querido que fez uma longa viajem. Curamos igualmente muitas doenças e prolongamos a vida. Mas isso não prova um estado permanente de felicidade. Muito pelo contrário, tais exemplos não seriam a prova de um “prazer barato”? Como numa noite fria pôr a perna de fora do cobertor e depois cobri-la novamente? Porque, acrescenta Freud, se jamais tivéssemos saído da aldeia, nossos filhos e amigos estariam ao nosso lado e toda essa tecnologia seria inútil. Ademais, complementa, “de que nos vale uma vida mais longa, se ela for penosa, pobre em alegrias e tão plena de dores que só poderemos saudar a morte como uma redenção?”
Uma tecnologia específica nos obriga a tomar consciência de suas implicações abusivas e relembra a totalidade da qual somos parte
Em seguida a essas observações realistas (e proféticas), mais do que pessimistas como o próprio Freud as classifica, ele chega a um ponto essencial: não temos o direito de considerar que um estado subjetivo, como a nossa felicidade, seja imposto a outras pessoas, épocas e coletividades. Mudar de ponto de vista e relativizar é uma sabedoria e uma cambalhota.
O controle da natureza não justifica o controle sobre outras formas de vida.
Sou visitado por minhas netas, jovens, animadas, lindas como uma praia de janeiro e cada qual abastecida de um celular. Amorosas, elas conversam com o avô, mas nenhuma deixa de teclar o seu aparelho, que é mais uma prótese a provar a nossa sempre carente humanidade. Contador inveterado de histórias, lembro de um evento ocorrido quando era menino e vi meu pai feliz tirando de sua pasta maços de dinheiro cheiroso — uma bolada! — a qual correspondia a um aumento de salário pago retroativamente. Somos reativos: só agimos depois das tragédias e dos escândalos; mas somos também retroativos porque, dependendo da categoria e da pessoa, o “governo” paga direitos passados. O “legal” é tão generoso como um beijo na boca…
Logo percebi que as netas ouviam pela metade. Claro: cada uma delas estava enredada, falando ao mesmo tempo com outras pessoas as quais eram muito mais (ou tão reais) quanto eu com meu corpo e minhas fábulas infelizmente permanentes.
Entendi que minhas netas não estavam sós. Cada qual era uma multidão. Uma delas, inclusive, manifestou que contava o que eu contava para mais dez amigas — na hora e no ato. Eu pensei estar num encontro de família e estava, sem sair de casa, numa passeata.
Fonte: O Globo, 14/08/2013

quinta-feira, 18 de abril de 2013

"Sou do século do rádio, da revista semanal, do bonde e de uma praia onde o banho de mar era obrigatório..." / Roberto daMatta

Roberto Damatta
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Como descobri o rádio

17 de abril de 2013 | 2h 11


Roberto Damatta - O Estado de S.Paulo
Pertenço ao século do rádio, da revista semanal, do bonde e de uma praia onde o banho de mar era obrigatório. Íamos só de "calção de banho" e não comíamos nada. As "meninas" levavam as "barracas" que os mais bem apanhados "armavam" vendo de perto o espetáculo gracioso e "casual" de observar como elas despiam as suas "saídas de praia", revelando corpos impecáveis. A praia parava para ver a chegada de certas moças, como a irmã do Nilton. Ou a mãe do Manuão, especialista - diziam - em freudianamente desvirginar os amigos do filho.
A ponte entre a fantasia do sexo real e a irrealidade do romance ideal, que invariavelmente terminava na confissão arrependida, era preenchida pelo rádio no canto de um Tony Bennett quando ele entoava Stranger in Paradise (Estranho no Paraíso). O paraíso representado pelo corpo desejado, mas ainda desconhecido de uma mulher - esse outro do qual saímos e ao qual, numa hora encantada, voltamos inventando a nossa masculinidade. Lembro que a belíssima canção era uma versão americanizada das Danças Polovitisianas, da ópera Príncipe Igor, de Alexander Bodorin, popularizada num musical da Broadway chamado Kismet, que os mais grosseiros chamavam de "quis meter", numa falta de gosto que feria a sensibilidade dos mais cultos e puros de coração.
Tudo era construído pelo rádio e foi pelo rádio lá de casa que testemunhei o poder do drama no choro aberto de mamãe e nas lágrimas contidas de meu pai ao ouvirem religiosamente a novela O Direito de Nascer. Desse mesmo rádio, ouvi o fim da 2.ª Guerra Mundial, o suicídio de Vargas e aprendi a imaginar campos de futebol e seus jogos maravilhosos pela voz de Oduvaldo Cozzi. Ao lado de suas pilhas chorei quando vencemos a Copa em 1958 e ouvi o programa humorístico Balança mas não Cai, que os mais velhos censuravam com o eterno "este mundo está perdido", no que eu, hoje mais velho que eles, reitero que sempre esteve e vai estar. O rádio era o meio e o mundo brasileiro (falado, ouvido e cantado), a mensagem.
Naquele Brasil de "80% de analfabetos de pai e mãe", conforme era banal dizer com um certo gosto e, às vezes, superioridade, quem não tinha rádio não estava no mundo.
Jaz aqui na minha frente a caixinha retangular de um velho rádio Sharp de duas bandas e dez transistores que comprei em Marabá no dia 3 de outubro de 1961, quando - em meio ao meu trabalho de campo com os índios Gaviões - me alienei dos acontecimentos políticos nacionais deflagrados pela renúncia de Jânio Quadros. O comerciante sírio-brasileiro que me vendeu o aparelho disse que o "bichinho pegava tudo". As estruturas eletrônicas do rádio iam me tirar das tais "estruturas sociais" tocadas a Lévi-Strauss que eu perseguia com tanto ardor.
Voltamos para a aldeia com o rádio. Queríamos notícias, mas os nossos constrangidos anfitriões - pois fomos nós que nos intrometemos autoritariamente em suas vidas - queriam música. E música sertaneja, naquela época representada pelo baião.
Uma noite, quando ouvíamos o noticiário político, o nosso mais dedicado instrutor, Aproronenum - conhecido entre os sertanejos pelo nobre apelido de Zarolho -, pediu música. Girei o indicador para satisfazê-lo e em torno do rádio formou-se uma alegre plateia.
Logo descobri que a novidade não era bem a música, mas o fato de ouvir e ver uma caixa cheia falante. Quando a música terminou, um índio que eu mal conhecia, um sujeito mal encarado, demandou exprimindo o desejo do grupo:
- Manda ele cantar de novo!
- Não posso - respondi atônito, diante do radiozinho falante, mas surdo diante do meu problema.
- Mas como não pode? Se ele fala, ele ouve!, disse o Gavião que havia chegado à aldeia durante os dias que estive em Marabá.
Recordando muito mal o que sabia de transmissores, tentei explicar o rádio. Esse rádio que havia permeado a minha vida e que eu descobria não saber sobre como ele funcionava. Vi, então, que sabia pouco do meu próprio mundo. Eu simplesmente, como Weber denunciou faz tempo no seu A Ciência como Vocação, era moderno. Nada sabia das entranhas dessas entidades mágicas que constituíam o meu mundo.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Dúvida com vida própria... // Roberto daMatta

Roberto Damatta
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Antropólogo ou espião?

10 de abril de 2013 | 2h 14



Roberto Damatta - O Estado de S.Paulo
Eu fui dragado pela então chamada Etnologia Indígena muito cedo. Tinha uns 20 anos quando pelas mãos de Luiz de Castro Faria fui levado ao Museu Nacional e iniciado por um entusiasmado jovem Roberto Cardoso de Oliveira nos mistérios luminosos das sociedades sem escrita, grupos tribais com uma tecnologia modesta e um assombroso simbolismo, mas sempre tidos como "primitivos", "atrasados" e "selvagens".
Nos anos 60, quando isso acontecia comigo, a vida política brasileira girava em torno do binômio desenvolvido/subdesenvolvido. Era urgente, dizia-se, "mudar as estruturas!".
Logo fui apresentado ao pensamento de Claude Lévi-Strauss. Um primeiro momento de reflexão foi sobre o ensaio Estrutura Social (publicado no livro Antropologia Estrutural, em 1958), mas apresentado e discutido numa reunião internacional em 1952 nos Estados Unidos. Antes, eu havia trabalhado com o livro Social Structure, de George Peter Murdock, professor em Yale. Fui casado com a senhora "estrutura" por algumas décadas e, pensando bem, jamais pedi um divórcio. Cada geração tem uma palavra mágica - e a dos meus contemporâneos foi "estrutura".
A "estrutura" no singular era vista como um instrumento para o entendimento da sociedade. Já "as estruturas" definiam uma substância histórica claríssima feita de instituições e práticas sociais atrasadas - como o feudalismo rural brasileiro - a serem radical e facilmente transformadas pelo Estado. Na medida em que me tornei um pesquisador de povos indígenas e fui me civilizando, meu destino foi marcado mais pelo primeiro significado do que pelo segundo.
Minha primeira viagem de campo foi realizada entre agosto e novembro de 1961. Nesse período, vivi com os índios Gaviões do Sul do Pará, como provam as 600 páginas escritas em cadernos de capa verde musgo, de acordo com instruções do meu professor. O "diário de campo" era para os antropólogos o mesmo que a leitura do Breviário para os padres. Coisa sagrada esse registro de tudo o que podíamos observar. Meu diário foi aberto no dia 8 de agosto, em Marabá, e fechado em 30 de outubro de 1961, na aldeia do Cocal.
No dia 15 de agosto, eu estou em Itupiranga, Pará, e me preparo para cruzar o Tocantins e seguir para Leste, na direção do que hoje é Nova Ipixuna, com o objetivo de chegar à Aldeia do Cocal com meu companheiro de aventura Júlio Cezar Melatti, um grande e generoso antropólogo, hoje professor emérito da Universidade de Brasília. Em 18 de agosto - depois de um dia e uma noite na mata - chegamos à aldeia. Por onde começar? Eis a pergunta que todo etnólogo faz a si mesmo, tal como um menino num parque de diversões, um prisioneiro na cela, ou um noivo em lua de mel.
Todas as entradas do meu diário revelam uma recorrente dificuldade em lidar com o mundo aborígine. Muito angustiado, escrevo: "Eles falam e eu não entendo, eu falo, eles não entendem". A marca desses primeiros dias foi uma aproximação física um tanto exagerada - eles nos tocam para ver se somos reais. Tudo o que faço é visto e comentado: não há privacidade. Comemos com eles e descobri que o estudo da "estrutura" promovia fome. Estava enrascado. A aldeia ficava a um dia de viagem de Itupiranga (que, na época, tinha umas seis ruas) e Itupiranga ficava a um dia de Marabá. Na aldeia, 15 homens, 6 mulheres e apenas 2 meninos exprimiam, debaixo do nome de "Gaviões", uma forma de humanidade.
Estava antenado na teoria das estruturas, mas não tinha rádio. Os índios, por sua vez, não queriam saber de suas tradições e só falavam dos seus mortos pelo contato conosco - os estrangeiros-inimigos. Naquele tempo eu não sabia nada das perdas e da morte. Estava protegido por minha alucinação antropológica.
Mais para dentro do mato havia um posto de extração de castanha com uns seis ou sete trabalhadores comandados por um chefe chamado Lourival. No dia 29 de agosto de 1961, ele falou da renúncia de Jânio Quadros (ocorrida no dia 25) e da crise institucional que reinava no que chamava de "Sul" (o Brasil) que, como disse, estava "vivendo uma cagada". Uma das muitas que infelizmente tenho testemunhado em minha vida.
Estava emparedado entre duas estruturas. A "social" dos índios, que eu tinha a obrigação de desvendar e não sabia como; e a do Brasil, que, pelo que tudo indicava, começava a mudar para pior.
Mesmo em meio a essa maluquice iniciatória, porém, eu havia estabelecido um plano para enviar e receber cartas. Um certo João da Mata, logo identificado como um possível parente, prestou-se a receber nossa correspondência e enviá-la às nossas mãos. Recebemos as primeiras cartas no dia 31 de agosto, entregues por um jovem caçador que passou rápido pela aldeia.
No final do trabalho, de volta a Itupiranga depois de passar fome e ter sido vítima de malária, encontramos o prestativo senhor de nossas cartas.
Houve um confronto: por que, perguntamos, toda a nossa correspondência fora violada? Ora - respondeu João da Mata -, porque eu não acreditei que vocês fossem cientistas. Esse interesse pelos "cabocos Gaviões" não podia ser verdade. Vocês seriam garimpeiros em busca de ouro ou, quem sabe, espiões americanos procurando urânio. As cartas mostravam que eram cientistas e eu me orgulho de os ter conhecido.
Ao pegar o "motor" que ia nos levar de volta a Marabá e, dali, ao Brasil que eu tanto queria mudar, eu ainda ouvia essas palavras. Elas jamais saíram da minha cabeça...

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Quantas vezes o mundo vai acabar ? // Roberto Damatta


|   Brasília, 30 de janeiro de 2013

Artigos

Enviado por Ricardo Noblat - 
30.1.2013
 | 17h03m
GERAL

Quantas vezes o mundo vai acabar ?

Roberto Da Matta, O Globo
Penso que só nós, humanos, podemos contar uma história que começa assim: “Foi logo depois que o mundo acabou. As águas baixaram, a enorme arca encalhou no flanco de uma planície e a vida rotineira recomeçou com suas esperanças de sempre, inclusive a de poder, um dia, terminar...”
A arca de Noé não era um Titanic, embora o Titanic tivesse uma inconfundível inspiração mitológica. Mas o Titanic, aquele navio inafundável, fabricado com a certeza da ciência, submergiu. Enquanto a Arca — construída na base da fé — não soçobrou.
Por outro lado, o Titanic levava milionários num passeio luxuoso e imigrantes pobres que iam “fazer a América” naqueles velhos tempos que ela ainda podia ser feita.
É claro que ambos os navios tinham um povo escolhido que sobreviveria. No caso do Titanic, testemunhamos a sobrevivência habitual dos milionários e dos espertos. Os de terceira classe morreram tão escandalosamente que as regras foram drasticamente modificadas. O Titanic e a Arca de Noé representam, cada qual a seu modo, um fim de mundo.
A Arca, porém, como um instrumento de salvação, não podia afundar. Ela corrigia erros. Foi uma advertência e um recall do Criador para a humanidade. Os filhos de Adão e Eva, híbridos de barro, carne, osso, sopro divino e bestialidade não iam dar certo.
Para quem vive querendo começar a vida; para quem tem arrependimentos intransponíveis e gostaria de zerar sua existência, a passagem bíblica oferece um conforto: até mesmo o Criador — onisciente, onipotente e onipresente — teve seus momentos de dúvida. Valeu a pena criar um intermediário, um ser entre os animais e os anjos?
Não sabemos. O que se conhece, entretanto, é que sempre há um grupo que se imagina escolhido e, volta e meia, diz que o mundo vai acabar. Os eleitos são salvos por alguma Arca de Noé ou foguete intergaláctico como nos velhos e esquecidos contos de Isaac Asimov e de Ray Bradbury.
São os escolhidos que dão testemunho de como o mundo acabou e — graças a um profeta — foi refeito na esperança de um aperfeiçoamento moral que custa e, às vezes, chega.
No fundo, como diz a Dra. Camélia, uma psicanalista admiradora de antropologia, esses mitos não falam apenas do fim do mundo, falam — isso sim — da imortalidade dos eleitos. Daqueles que estão além do mundo porque seguiram regras morais mais fortes que o próprio mundo — esse planeta que, no fundo, é frágil e terminal se não segue algum mandamento.
Vi o mundo acabar muitas vezes, disse o professor. Primeiro pela água, depois pelo fogo, depois pelas bombas atômicas do Dr. Strangelove. De 1000 passarás, mas a 2000 não chegarás! Estávamos em 1948 e faltava tanto para o 2000 que eu me perdi. Afinal, havia muitas coisas mais importantes para pensar e fazer do que me preparar para o fim do mundo.
E, no entanto, essa década de 2000 foi clara na demonstração de que eu era mais um náufrago, a ser salvo pela paciência e pela generosa ternura humana.
Por que será que, mesmo nestes tempos de utilitarismo racional e de realismo capitalista, tanta gente ainda acredita no fim do mundo?
Porque eles vão realizar uma façanha e tanto: vão sobreviver ao planeta e sentir aquela onipotência apocalítica típica dos milenaristas.
Mas, tirando as fantasias, o mito do fim do mundo revela também uma insatisfação permanente com a vida, tal como a experimentamos: com suas imperfeições, traições, picuinhas, faltas e covardias: com a impossibilidade de seguir os ideais.
Quem sabe, diz esse mito de fim de mundo, um dia tudo isso vai mudar e a vida neste mundo será justa e perfeita promovendo, enfim, o encontro da teoria com a prática?
No fundo, o ocidente progressista e capitalista que acumula cada vez mais dinheiro sempre foi tributário soluções finais para a vida.
Outros povos se satisfazem em aceitar o que reconhecem como parte e parcela de contradições impossíveis de escapar quando se vive em coletividade. Mas nós, crentes no desenvolvimento da espécie e nos estágios evolutivos, tendemos a confundir progresso técnico com avanço moral e pensamos que nossas bombas atômicas são superiores aos arcos e flechas dos nossos irmãos selvagens.
Neste sentido, o mito do fim do mundo seria também uma advertência ao nosso estilo de vida fundado num consumo e numa sofreguidão inesgotáveis. Um modo de dispor do planeta e dos seus recursos que impedem o seu reconhecimento humano.
Essa, penso, seria o centro dessa última onda de fim de mundo que acaba de passar. Um retorno apocalítico da totalidade num universo marcado por uma cosmologia brutalmente individualista.
Mal o professor pronunciou essas palavras e logo um aluno levantou a mão e perguntou: mas isso é mito ou realidade? Afinal, não estamos mesmo chegando ao final de um estilo de vida egoísta no qual pensamos cada qual em nós mesmos e todos apenas no nosso país?

Roberto Da Matta é antropólogo

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

"Mas, quem inventa os fatos?" Os fatos são realidades ou fantasias? Os fatos são alegorias e os ideais são ilusões ?


Esse eu conheço!

20 de dezembro de 2012 
Autor: Roberto DaMatta
pequeno normal grande
Roberto DaMatta
A reta, como diria o Oscar Niemeyer, é o real. Mas o ideal é a curva, o arredondado sedutor da montanha onde morre o Sol; ou o suave declive da fonte que jorra por entre as suas frestas e mata a nossa infindável sede como viram, cada qual a seu tempo e à sua maneira, Ary Barroso e Schopenhauer.
Platão, inventor da oposição entre real e ideal, afirma que como tudo neste mundo está sempre se fazendo, as coisas reais não conferem nenhum conhecimento definitivo, pois são relativas e variáveis. Sujeitas, como revela sem cessar o nosso frustrante dia a dia, a redefinições. O ideal é único porque as ideias não morrem. O resto, como disseram Shakespeare e Erico Verissimo, é silêncio…
Estou, como o mundo inteiro, chocado com esse novo massacre ocorrido em Newtown, Estados Unidos. Penso nos pais forçados por um louco a entrar nesse triste clube ao qual eu, infelizmente, pertenço: a sociedade dos que perderam filhos. Empresto a todos eles a minha humilde solidariedade. Aprendi como as palavras, que deixam ver, por um instante, o todo no qual vivemos como inocentes, são importantes nesses momentos.
Estive no Estado de Connecticut umas duas ou três vezes e fiz palestras na sua universidade, no famoso Connecticut College (fundado em 1911 quando o Brasil fazia, como as máquinas, múltiplas revoluções) e na sua admirável Universidade Yale (fundada em 1701 quando, para muitos, o Brasil ainda não era Brasil), onde jaz um pedaço da alma do querido e saudoso Richard Morse, o americano mais brasileiro que conheci em toda a minha vida. Como explicar o massacre de crianças num lugar tão “adiantado” e “rico” sem uma lógica bíblica ou messiânica – sem um sistema de espoliação dos miseráveis e sem um Herodes agora armado, ele próprio, de pistolas automáticas, perguntou-me um jovem jornalista?
Inocente, pois não tenho a menor ideia do meu futuro nem da minha vida, a qual eu tento cuidar e honrar com o devido egoísmo por ela determinado, só posso falar de uma importante contradição. Nós odiamos a violência, mas a admitimos em certas circunstâncias. Na guerra, por exemplo. Sobretudo, nas guerras santas que jamais saíram de moda. Ou na luta ideológica contra a famosa “direita”, hoje propositalmente confundida no Brasil com o “direito”: o ético, o meritório e o correto.
No caso dessa tragédia americana, há uma contradição trivial. O real manda, no mínimo, discutir, como disse o presidente Obama, a venda de armas. Mas o ideal que tende a virar tabu trata a aquisição de armas como um direito.
Uma ética de condescendência – esse pouco discutido valor brasileiro de muitos quilates – nos leva a relativizar o ideal
No Brasil, criminalizamos o jogo, mas a Caixa Econômica Federal banca pelos menos sete ou oito jogos de azar. Ademais, condenamos o jogo e todo tipo de patifaria, mas compreendemos o canalha. Sobretudo quando ele é amigo. “Esse não! Esse eu conheço! Com ele eu não admito, ouviu? Não admito que sua reputação e sua figura à qual o país tanto deve sejam postas em questão!!!”
Somos todos contra a jogatina, mas entendemos quando o primo faz uma “fezinha na borboleta” ou no “burro” – esse totem de um Brasil que tenta sem sucesso livrar-se das asnices de uma visão de mundo na qual a lei teria a virtude de corrigir o mundo por reação e não por prevenção. “Mas isso é crime capitulado no artigo tal da lei X! Não há mais o que discutir.” Exceto, é claro, se o capitulado for meu amigo!
O problema é o que fazer com os criminosos depois de devidamente classificados como culpados. No nosso caso, a penalidade não é apenas uma decorrência do crime, é uma ciência e eu até diria, com todo o respeito, uma nobre arte. Afinal, como ouvi muitas vezes nesses meses afora, “são vidas humanas em jogo”.
Condenamos também a droga, mas tomamos o nosso vinhozinho, a nossa cervejinha e a nossa cachacinha com os amigos sem problema. Aceitamos até que um conhecido goste de uma “fileirinha”, no seu caso, inocente, porque: “Esse eu conheço e sei que é boa pessoa! Não é um indivíduo qualquer a ser espancado pela polícia e depois exposto e escrachado na mídia!!!”
Batemos de frente com as contradições entre o real e o ideal, a menos que ela comprometa o patrão, o amigo e o correligionário a quem devemos carreiras, favores e cargos. “Esse não! De modo algum! Esse eu conheço!” Gritamos com obrigatória veemência.
Uma ética de condescendência – esse pouco discutido valor brasileiro de muitos quilates – nos leva a relativizar o ideal. Como não é fácil equilibrá-los, pois o concreto sempre desafia o ideal, personalizamos e, com isso, impedir que X, Y ou Z sejam apreciados em suas faltas e velhacarias. E como “roupa suja só se lava em casa”, ferimos o ideal (e a ética) dando um golpe personalista. “Esse não pode!”, falamos, tirando do âmbito do crime ou da patifaria o amigo dileto ou o personagem poderoso.
Mas quem inventa os fatos?
Como esse bárbaro massacre ocorrido nos Estados Unidos; como esse inacreditável mensalão; como os vínculos de terna intimidade entre o ex-presidente e uma alta funcionária que representava a Presidência em São Paulo e lá montou uma quadrilha? Quem inventou um partido como o PT, que iria exterminar os ratos da corrupção nacional – como bolou o publicitário do grupo, o sr. Duda Mendonça – e acabaram metidos no maior escândalo da República? É o jornal que forma a quadrilha ou é a quadrilha que faz o jornal?
Fonte o Estado de São Paulo    19/12/2013

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Rezar? -Roberto Damatta - O verbo acreditar é muito poderoso

Rezar? - cultura - versaoimpressa - Estadão

Roberto DaMatta
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Rezar?

26 de setembro de 2012 | 3h 40
Roberto DaMatta - O Estado de S.Paulo
Rezamos todos ou a reza, como reza o hábito, é um atributo (ou um privilégio) dos que acreditam em alguma coisa? Acreditar é um verbo poderoso. Talvez o mais poderoso de todos, porque ele afirma algo que é ou não é, dependendo do ponto de vista. Eu acredito em Deus!, diz Francisco; Eu não!, responde José. Acredito que o mundo vai acabar em dezembro deste ano e que o mensalão é obra das elites reacionárias, de uma imprensa corrompida e de um Supremo Tribunal Federal golpista, dizem os defensores de Lula.
O pragmatismo inocente afirma que "gosto não se discute", mas se aplicarmos isso ao verbo crer, o mundo se abre a uma torrente de loucuras. De fato, aprendemos que o verbo acreditar também tem limites. Não há como acreditar em Papai Noel ou que a morte não exista fora dos simbolismos culturais e religiosos. Crer é um direito e um ato de fé.
Há quem acredite em X, Y e Z - e há quem não acredite em X, Y e Z. Então X, Y e Z têm um lado oculto (ou tenebroso) que a suposta luminosidade do crer não alcança. O não crer obriga o crente a ver o todo. O crer, por seu turno, leva o cético a ver o lado que lhe falta e que ele imaginava não existir.
* * * *
Esta pobre meditação é o resultado de um fato concreto e do meu mal-estar relativo ao mundo político brasileiro.
Primeiro, o fato.
Morre uma professora dedicada. Eu não a conheci, mas pelas mensagens que recebo, relembro como é dura a reconciliação com a presença concreta da morte para seus entes queridos. Eis que, no meio das mensagens, um padre solidário com a perda espera não constranger os seus colegas ateus com suas preces. Poucas vezes me deparei com um exemplo de tamanha delicadeza e sensibilidade. Que os ateus me desculpem, eu não rezo para ofendê-los, diz o padre.
Como um conforto ao sacerdote, eu desejo sugerir que todos rezam. Uns acreditando, outros sem acreditar. Mas, perguntaria um crente: como rezar sem um Deus? Ora, responderia o ateu, e como rezar para divindade se o rezar é um ato pelo qual se aceita o mundo tal como ele é? Na sua bondade e maldade, nas suas trevas e luzes? Mais do que reconhecer, suplicar ou tentar estabelecer um contrato com as divindades, a prece é, já dizia Mauss, o ato religioso mínimo para entrar em contato com o sobrenatural que nos cerca e aterroriza, sejamos crentes ou ateus.
Rezar é reconhecer nossa finitude, fraqueza, carência, angústia e solidão. É admitir que vivemos numa totalidade que não podemos conhecer completamente. É um ato que pertence ao que Gregory Bateson chamou de "uma ecologia da mente". Pois, quando rezamos, suspendemos o aqui e agora dominados pelo eu para irmos de encontro ao todo. Rezar é admitir que há no mundo seres e situações estranhas, acima (ou abaixo) dos elos entre meios e fins. Há quem use um canhão para matar um passarinho e quem tente enfrentar gorilas com poesia. O mundo não é claro como querem os materialistas, mas também não é absolutamente escuro como desejam os crentes.
* * * *
Eu ando rezando às claras e às escuras. Vejo no Brasil que julga o mensalão um dado novo e alarmante para os poderosos de todos os matizes e de todas as estirpes.
Este é um julgamento que pela primeira vez na nossa História vai traçar limites não apenas para quem cometeu ilegalidades no poder, mas nos contextos ou situações engendradas por quem o ocupou e, sobretudo, por quem se deixou ocupar pelo poder.
Meu mal-estar com relação ao Brasil tem a ver com a força de quem tem certas crenças. E para quem tem certas crenças, os fins justificam os meios. Ser poderoso é, no Brasil, bradar pela ausência de limites. Será mesmo possível punir um poderoso no Brasil? É possível aceitar o erro de um petista, mesmo sendo petista? Pode-se admitir que os petistas, como a maioria dos seres humanos, são também ambiciosos e podem errar, como foi o caso do mensalão e, pior que isso, o aliar-se em São Paulo ao sr. Maluf?
Pode-se ser de esquerda deixando de lado o chamamento milenarista que promete um mundo perfeito quando perpetuamente governado por um messias? Seria possível ter no Brasil uma administração pública na qual oposição e situação aceitem os seus erros e tenham consciência dos seus limites?
Será que hoje não estamos num tempo em que a ética tem sido comida pelo político e pela "política da coalizão", que foi a alma do fato em causa? Politizar negativamente é impedir a visão do todo como sendo feito de parcelas diferenciadas. Se você, leitor, concorda comigo, reze. Se não concorda, reze por mim.