Publicado na edição impressa de VEJA
J.R. GUZZO
O que a presidente reeleita Dilma Rousseff, o PT e o ex-presidente Lula, condutor de uma e do outro, pretendem fazer em relação aos 51 milhões de brasileiros que votaram em seu adversário Aécio Neves na eleição presidencial de outubro?
É uma pergunta que deixa impaciente o alto-comando do governo; e torna especialmente irado seu sistema de propaganda. Gostariam de que essa gente toda não existisse; não podendo fazer com que ela evapore no ar, acreditam que a saída é não reconhecer sua existência. A indagação, que continua sem resposta clara, é perfeitamente razoável, levando-se em conta que os 51 milhões de pessoas em questão estarão aí pelos próximos quatro anos – não só eles, na verdade, já que outros 37 milhões de cidadãos nem apareceram para votar, votaram em branco ou anularam seu voto.
Ao todo, no fim da conta, resulta que perto de 90 milhões não votaram na presidente que ficará no Palácio do Planalto até janeiro de 2019. Além disso, a diferença em seu favor foi a menor desde que PT e PSDB começaram a bater chapa, doze anos atrás. (A vantagem vem diminuindo a cada eleição: passou de mais de 61% dos votos, em 2002, para menos de 52%, em 2014.) É apenas matemática, ciência indiferente aos desejos do PT ou de qualquer outro partido. Mas o governo fica de mau humor quando alguém fala no assunto, e o resultado é essa situação esquisita em que os vencedores ficam reclamando o tempo todo dos vencidos.
Não ajudou em nada, é claro, a derrota que o governo sofreu no Congresso na primeira votação depois das eleições, quando deputados e senadores puseram a pique o decreto presidencial que criava “conselhos populares”─- uma pescaria em água mais do que turva cujo único mérito foi ter morrido antes de nascer. Mas isso é coisa que vem de políticos, espécie humana altamente eficaz na prática de trocar uma posição por outra, dependendo dos benefícios que recebe; sempre é possível fazer amanhã o que não deu para ser feito hoje. O problema, mesmo, é com a massa que ficou do lado de fora ─ e aí está o motivo mais visível da neurastenia do PT e seus subúrbios em relação ao povo que votou contra a candidata oficial ou não votou nela.
Como comprar 51 milhões de pessoas, ou mais ainda? Não dá. Por mais ministérios, estatais e empregos gordos que criem, por mais ONGs que sustentem e por mais contratos de “prestação de serviços” que assinem, nem Dilma nem Lula conseguiriam fechar negócio com tanta gente assim. O que poderia lhes render apoio entre a metade dos eleitores que votou na oposição não é dinheiro, nem emprego com carro oficial e “cartão corporativo”; é uma meia dúzia de mudanças, não mais, na conduta moral dos governantes e no abandono da estratégia de governar o Brasil por meio da empulhação. Mas isso Lula, Dilma e o PT não vão fazer. Não querem, e provavelmente não podem.
Fica travada, assim, a resposta para a pergunta feita na primeira frase deste artigo, o que não parece anunciar um futuro sereno. Os números finais da eleição recomendariam que os ganhadores fizessem alguma tentativa honesta de estender a mão aos perdedores, mesmo porque têm a responsabilidade legal de governar todos os brasileiros. Os 51 milhões de eleitores que votaram em Aécio não perderam a cidadania em 26 de outubro; perderam apenas uma eleição. Mas esse tipo de raciocínio não faz parte do mundo mental do PT. Na verdade, pelo que comprovam os fatos mais recentes, o governo se mostra ansioso em seguir pelo caminho contrário. Dilma, por exemplo, continua sendo Dilma em estado puro.
Solicitada numa entrevista a comentar sua derrota em São Paulo, onde recebeu 35% dos votos contra os 65% de Aécio, a presidente tinha pelo menos uma boa dúzia de respostas a dar; preferiu a pior. “Por que você não pergunta sobre meus votos no Nordeste?”, devolveu ela. Por que o assunto, no caso, era São Paulo, e não o Nordeste ─ mas esse tipo de consideração não entra na cabeça de Dilma nem com britadeira hidráulica. Diante da oportunidade de fazer um gesto conciliatório e dizer umas poucas palavras simpáticas aos paulistas, seu piloto automático levou-a direto para a aposta agressiva na divisão do Brasil e dos brasileiros, hoje tão em moda no governo e no seu partido. A presidente, depois da eleição, parece mais irritada do que estava durante a campanha; chegou até a mencionar por alto a palavra “diálogo”, mas na vida real seu diálogo é isso que se vê.
Dilma, aí, vai rigorosamente atrás de Lula, homem que tem pouco interesse por atos de generosidade e acredita que as armas políticas mais eficazes são a pregação do ódio, o insulto ao adversário e o esforço permanente para convencer os brasileiros a ser inimigos uns dos outros. São os fatos, e apenas os fatos, que sustentam esse julgamento; podem ser verificados a qualquer momento pelas gravações e vídeos que registram o que o ex-presidente diz regularmente em público. Que tal, quanto a isso, uma seleta daquilo que andou falando na última campanha eleitoral? A favor de sua conduta, Lula tem os resultados, pelo menos até agora; ela serve para ganhar eleições, e no ambiente de derretimento moral da política no Brasil de hoje a única preocupação é fazer o que dá certo. É assim nas campanhas – e é assim nos acertos que vêm logo depois.
Diálogo, para Lula, significa negociação de compra e venda; se não dá para comprar o apoio do outro lado, não há conversa possível. Trata-se de linguagem muito bem entendida por quem sabe o preço de tudo e não conhece o valor de nada. Em cima dela, Lula, Dilma e o PT formaram essa “base aliada” que está aí há doze anos – um belo desfecho para a história dos “300 picaretas” do Congresso que Lula denunciou num passado já distante. Na época, o ex-presidente parecia indignado: é vigarista demais para um Congresso só, dizia ele. Depois que chegou ao governo, não voltou ao assunto. Passou a achar que os 300 picaretas eram uma bênção.
O governo pode ignorar suas obrigações com a metade de um eleitorado que rachou ao meio. Mas não pode fazer de conta, como fez durante a campanha eleitoral, que os problemas da vida real não existem. João Santana, seu chefe de propaganda, não fará a balança comercial dar saldo. Lula até que pode chamar a inflação de “Herodes”, mas ela não vai ligar para isso. Não existe a opção de “desconstruir” a dívida pública, que já passou dos 2 trilhões de reais, como fizeram com Marina Silva. Não adianta nada ficar fazendo discursos irados contra os “banqueiros” e “rentistas” quando o dinheiro que ganham (e nunca ganharam tanto como nos governos petistas) vem justamente dessa dívida. Quem a construiu foi o governo, só ele, por gastar mais do que pode; hoje o montante é quase três vezes maior do que era no começo do governo Dilma, e por sua conta o Erário tem de pagar aos credores juros que no ano passado consumiram mais de 40% do Orçamento da União, ou 900 bilhões de reais.
É inútil, também, a presidente ficar dizendo que vai “combater a corrupção” ao mesmo tempo em que o seu entorno faz tudo para sabotar o processo judiciário em que se apura a ladroagem em massa na Petrobras – sua última ofensiva pretende derrubar o juiz Sergio Moro, que conduz as investigações. A economia brasileira praticamente não cresceu durante os quatro anos de Dilma; em 2014 crescerá pouco acima de zero, se tudo der certo. Não há no governo nenhuma ideia coerente para mudar isso em 2015 ou em qualquer outro ano.
A presidente Dilma, considerando-se os resultados concretos que obteve em seu primeiro mandato, revelou um gênio realmente extraordinário para governar mal. Não é confortável, diante dessa qualidade de performance, sair de uma eleição com 54 milhões de votos num total de 142 milhões de eleitores. A dificuldade é que os governos petistas, por tradição, pelos instintos políticos de Lula ou por falta de ideias inteligentes, têm se acostumado nos últimos anos a correr para comportamentos agressivos, extremistas e totalitários quando sentem que o jogo complicou. Os sinais que começaram a dar depois da eleição estão prometendo mais do mesmo.