Trem fantasma
Um trem sem destino certo com um porto sem acesso devido à ferrovia imaginária sugerem a dimensão do desgoverno instalado. Essa é a essência do debate sobre o impeachment
José Casado, O Globo
São 1.527 quilômetros desde os campos de melancia e soja de Figueirópolis, no Tocantins, até o mar na Ponta do Malhado, porto sonhado na Ilhéus do início do século XX pincelada por Jorge Amado no romance sobre a sertaneja retirante Gabriela, pele da cor de canela, perfume de cravo, rosa na orelha, sorriso nos lábios e desejo sempre boiando no ar.
Lá no cais enferrujam 60 mil toneladas de trilhos comprados à China e à Espanha para a ferrovia “da integração da Bahia com o Centro-Oeste" anunciada por Lula em 2006, e renovada por Dilma em comícios nas duas últimas campanhas presidenciais.
Uma década se passou e menos de um terço dos carris foram cravados no solo. Essa via férrea mal começou a sair do papel, e já consumiu R$ 4 bilhões em dinheiro público.
Seria comum na paisagem político-administrativa onde quase tudo parece construção, mas já é ruína. O extraordinário é que o plano dessa estrada de ferro estabelece, literalmente, a ligação da vila de cinco mil habitantes no sul do Tocantins a lugar nenhum.
Não é trivial, como costuma repetir a presidente. O governo constrói uma ferrovia que “não prevê o exato ponto final de destino" do trem — constataram auditores do Tribunal de Contas da União em relatório concluído há dez dias, depois de analisar a documentação produzida durante mais de uma década pelo Ministério dos Transportes e pela empresa estatal Valec, sob supervisão da Agência Nacional de Transportes Terrestres.
Se já era ruim, ficou muito pior, demonstrou o relator do caso no TCU, André Luis de Carvalho: enquanto Brasília tocava a partitura eleitoral da bilionária construção de um trecho ferroviário que não desembocaria em porto nenhum, em Salvador o governo estadual regia o início de obras de R$ 3 bilhões, para erguer em Ilhéus um complexo portuário “sem o devido acesso ferroviário".
Lula e Dilma entregaram a área de Transportes ao Partido da República (PR), liderado pelo ex-deputado Valdemar Costa Neto, cujo prontuário de carceragem resume a história recente do balcão de negócios instalado no Congresso — do mensalão ao processo de impeachment em andamento, incluídos os inquéritos sobre corrupção na Petrobras e outras estatais.
Numa simbiose com Costa Neto, Lula levou o “querido companheiro Juquinha", José Francisco das Neves, para o comando da Valec. Dilma o manteve por um tempo. Mês passado o “querido companheiro" foi preso, acusado de corrupção pela Camargo Corrêa, uma das empreiteiras que privilegiou em acordos que incluíam o PT e o PMDB do vice Michel Temer, um político sempre inebriado com a própria voz diante do espelho.
Um trem sem destino certo com um porto sem acesso devido à ferrovia imaginária sugerem a dimensão do desgoverno instalado. Essa é a essência do debate sobre o impeachment. De Lula a Temer, não há inocentes, como se vê no julgamento em curso na Câmara.
Os líderes prosseguem na condução do espetáculo de um trem fantasma, sem porto previsto para chegar. Todos sabem que no fim haverá uma plateia de eleitores empobrecidos numa economia devastada. É previsível: o troco das ruas virá nas urnas.
José Casado é jornalista