A cultura da ocupação -
CARLOS ANDREAZZA
O GLOBO - 28/06
Tomam-se ruas, escolas, repartições e empresas tal e qual elevado exercício da liberdade de expressão — como se assim, num só golpe, não se sustasse igualmente o debate
O professor está em sala de aula. Tenta dar aula. A seu lado, malemolente, um jovem dança, sensualiza. Tem a expressão do descompromisso a serviço. É o invasor. Há música. Alta. Ainda assim, o professor insiste. É firme. Mantém a calma. Escreve no quadro-negro. Tenta trabalhar. Outros dois sujeitos aparecem. Invasores também. Tendo-se decerto na conta de heróis, apagam o que fora escrito, rabiscam palavras de ordem. O professor, porém, continua. Num canto, apresenta uma equação matemática. Que o jovem dançante, na segunda tentativa, afinal apaga. Aula encerrada.
Descrevi acima o vídeo recente em que o professor Serguei Popov, da Unicamp, vê-se impedido de lecionar pela performance de jovens marionetes. (Ao menos um deles, o dançarino indolente, que cursa licenciatura em Geografia, em breve será professor de seus filhos e netos, leitor; e não é exceção.) É preciso, pois, explicar as coisas à luz do que são: a inconsequência dos manipulados não os exime de responsabilidade sobre a violência que praticam. É preciso também, portanto, pesar-prezar valores: não interessa qual seja a reivindicação dos agressores; esta cultura da ocupação — a interdição dos espaços públicos para impor a agenda de grupos de pressão — é das mais nefastas manifestações da doença terminal brasileira, e tudo invalida. Tudo.
Protestar no Brasil, hoje, é ocupar — um eufemismo para invadir, tomar, interditar. O diálogo e o respeito ao próximo são ignorados no ato, mas se travestem de democratas os atores, de guardiões da liberdade. E não importa se — na sala do professor Popov, por exemplo — ao menos um aluno estivesse disposto a estudar. Não importa. Os democratas estão acima dessa coisa ultrapassada de indivíduo. São corajosos também, incensados como novidade, manifestantes românticos e radicais de uma nobre causa — contra a qual, aliás, não há quem esteja. (Ou alguém se opõe a melhores condições para o exercício da docência e da discência?)
O cerceamento aos que querem produzir resultou na barbaridade de que estudantes, os que desejam estudar, tenham de marcar aulas secretas. A manipulação da juventude modelou até um coletivo surrealista, o dos estudantes grevistas. Eles tomam o colégio para si (ninguém entra, salvo se autorizarem), acampam em suas dependências (espécie de colônia de férias politizada), cozinham para si (ocasião em que mostram avançadas técnicas de cooperação) e tocam violão como expressão de que podem. (Os maiores tocadores de violão do país, aliás, estão fechados com eles.) Muito bem assessorados juridicamente, agem com autoritarismo, afrontam a vontade — da maioria, repita-se — de estudar, de trabalhar, desconhecem os deveres inerentes à liberdade, mas são reverenciados como defensores de direitos ameaçados (só têm direitos), bravos representantes de uma geração que finalmente assumirá as rédeas do próprio futuro.
Não gostou de algo, senhor taxista? Ora, tranque a cidade. Obstrua as principais vias. Impeça o cidadão de circular. Intimide a população. Terá o endosso do poder público, o exemplo esclarecido de professores-doutrinadores e estudantes profissionais. Terá também a chancela da intelectualidade neste Brasil dos abaixo-assinados de patota, sempre democráticos, mas de que não se pode querer ficar de fora; país em que a discordância individual — a intenção de não subscrever um manifesto (sempre pela liberdade) — transforma em pária e aproxima o degredo.
Num futuro não distante, todo mundo será manifestante — se quiser prosperar. Será abaixo-assinado — se quiser pertencer. Terá de ser militante — se quiser ter existência reconhecida.
Carlos Andreazza é editor de livros
Tomam-se ruas, escolas, repartições e empresas tal e qual elevado exercício da liberdade de expressão — como se assim, num só golpe, não se sustasse igualmente o debate
O professor está em sala de aula. Tenta dar aula. A seu lado, malemolente, um jovem dança, sensualiza. Tem a expressão do descompromisso a serviço. É o invasor. Há música. Alta. Ainda assim, o professor insiste. É firme. Mantém a calma. Escreve no quadro-negro. Tenta trabalhar. Outros dois sujeitos aparecem. Invasores também. Tendo-se decerto na conta de heróis, apagam o que fora escrito, rabiscam palavras de ordem. O professor, porém, continua. Num canto, apresenta uma equação matemática. Que o jovem dançante, na segunda tentativa, afinal apaga. Aula encerrada.
Descrevi acima o vídeo recente em que o professor Serguei Popov, da Unicamp, vê-se impedido de lecionar pela performance de jovens marionetes. (Ao menos um deles, o dançarino indolente, que cursa licenciatura em Geografia, em breve será professor de seus filhos e netos, leitor; e não é exceção.) É preciso, pois, explicar as coisas à luz do que são: a inconsequência dos manipulados não os exime de responsabilidade sobre a violência que praticam. É preciso também, portanto, pesar-prezar valores: não interessa qual seja a reivindicação dos agressores; esta cultura da ocupação — a interdição dos espaços públicos para impor a agenda de grupos de pressão — é das mais nefastas manifestações da doença terminal brasileira, e tudo invalida. Tudo.
Protestar no Brasil, hoje, é ocupar — um eufemismo para invadir, tomar, interditar. O diálogo e o respeito ao próximo são ignorados no ato, mas se travestem de democratas os atores, de guardiões da liberdade. E não importa se — na sala do professor Popov, por exemplo — ao menos um aluno estivesse disposto a estudar. Não importa. Os democratas estão acima dessa coisa ultrapassada de indivíduo. São corajosos também, incensados como novidade, manifestantes românticos e radicais de uma nobre causa — contra a qual, aliás, não há quem esteja. (Ou alguém se opõe a melhores condições para o exercício da docência e da discência?)
Não é por acaso que a cultura da ocupação encontra sua mais influente aplicação em colégios e universidades. A ideia romântica radicalizada — a do estudante não apenas consciente, mas que lidera (pensa liderar), que bota a cara e interdita a escola (na verdade, somente empresta seu corpo ao projeto do partido, que, por sua vez, não reclamaria de ter um corpo, um jovem morto, para fazer de mártir) — é elemento-chave aqui. Há método, pedagogia, nessa opressão contra os interesses da maioria.
O cerceamento aos que querem produzir resultou na barbaridade de que estudantes, os que desejam estudar, tenham de marcar aulas secretas. A manipulação da juventude modelou até um coletivo surrealista, o dos estudantes grevistas. Eles tomam o colégio para si (ninguém entra, salvo se autorizarem), acampam em suas dependências (espécie de colônia de férias politizada), cozinham para si (ocasião em que mostram avançadas técnicas de cooperação) e tocam violão como expressão de que podem. (Os maiores tocadores de violão do país, aliás, estão fechados com eles.) Muito bem assessorados juridicamente, agem com autoritarismo, afrontam a vontade — da maioria, repita-se — de estudar, de trabalhar, desconhecem os deveres inerentes à liberdade, mas são reverenciados como defensores de direitos ameaçados (só têm direitos), bravos representantes de uma geração que finalmente assumirá as rédeas do próprio futuro.
Esta é a medida da falência política e educacional do país. Perdemos de todo a noção de individualidade — logo, de responsabilidade. Funcionamos sob a lógica do bando. Acomodamo-nos desta forma, tratando por peças respeitáveis no tabuleiro do jogo político aqueles que nos assaltam o direito de ir e vir. Tomam-se ruas, escolas, repartições e empresas tal e qual elevado exercício da liberdade de expressão — como se assim, num só golpe, não se sustasse igualmente o debate público. Lembremo-nos: a ocupação das ideias — o sequestro da palavra, da linguagem — sempre precede. O Brasil, faz tempo, é gerido pelo norte ideológico da guilda, pelos interesses de classe, pelo modelo black bloc de negociação — e esses gestores tomaram e corromperam também o sentido do que seja direito, liberdade, democracia.
Não gostou de algo, senhor taxista? Ora, tranque a cidade. Obstrua as principais vias. Impeça o cidadão de circular. Intimide a população. Terá o endosso do poder público, o exemplo esclarecido de professores-doutrinadores e estudantes profissionais. Terá também a chancela da intelectualidade neste Brasil dos abaixo-assinados de patota, sempre democráticos, mas de que não se pode querer ficar de fora; país em que a discordância individual — a intenção de não subscrever um manifesto (sempre pela liberdade) — transforma em pária e aproxima o degredo.
Num futuro não distante, todo mundo será manifestante — se quiser prosperar. Será abaixo-assinado — se quiser pertencer. Terá de ser militante — se quiser ter existência reconhecida.
Carlos Andreazza é editor de livros
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