ECONOMIA
Uma terra de extrema desigualdade
O Brasil já era dos países mais desiguais do mundo antes da crise – e os efeitos desse período ainda vão aparecer. Enfrentaremos o problema?
LUÍS LIMA, COM MARCOS CORONATO
13/11/2017 - 08h00 - Atualizado 13/11/2017 11h35
Mimetizada na Vila Mariana, bairro nobre da cidade de São Paulo, a comunidade Mário Cardim é invisível a olhos desatentos. Com cerca de 400 famílias reunidas num espaço de 7.000 metros quadrados, menor que uma quadra, o lugar onde funcionava uma fábrica de velas e que hoje pertence ao INSS agrupa casas simples. Mas faz fronteira com prédios residenciais suntuosos, a metros de distância. “Aqui temos acesso aos serviços básicos – água, esgoto, energia, além de internet e televisão”, diz Cícera Vieira, que vive na comunidade e preside a associação de moradores Mãos Unidas. O comerciante Júlio César, dono de um restaurante onde se pode almoçar por R$ 13, com café, vê muita vantagem em usufruir da infraestrutura da Vila Mariana, incluindo hospitais e transporte público. Além dos serviços, vizinhos pobres e ricos desfrutam também de relativa segurança na área. Mas a igualdade termina por aí. “Temos noção de que vivemos colados a pessoas muito mais ricas”, diz Cícera.
O preço dos apartamentos na Vila Mariana chega facilmente à casa dos milhões. No edifício Costa do Marfim, na Rua Rio Grande, quase esquina com a rua principal da favela, um apartamento de 50 metros quadrados custa R$ 450 mil. Na comunidade, um imóvel de área similar pode sair por menos de R$ 70 mil. A área foi ocupada irregularmente a partir de 1972. Júlio César, morador da área há 30 anos, após perder o emprego em um supermercado, abriu seu próprio comércio. Vários de seus vizinhos seguem esse caminho.
Eles sentem o impacto direto da crise econômica que eliminou empregos a partir de 2014. Embora atenuado nos últimos meses, esse ciclo uniu queda de renda e alta da inflação. Ainda não se conhece plenamente o estrago que causou. Mas estima-se que, até o fim deste ano, o número de pessoas vivendo na miséria no Brasil crescerá de 2,5 milhões a 3,6 milhões, segundo o Banco Mundial. O número de brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza passou dos 16 milhões, em 2014, para cerca de 22 milhões neste ano, de acordo com o Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV Social). Em momentos assim, o Brasil depara com outra chaga, diferente da pobreza: a desigualdade. Os mais ricos se protegem melhor da crise, que empurra para baixo a parcela da população já empobrecida. Por isso o FGV Social alerta sobre um aumento relevante da desigualdade no país. Ela já subiu no ano passado, na medição que usa um índice chamado Gini. Foi a primeira vez que isso ocorreu em 22 anos. Trata-se de um fenômeno especialmente ruim num país em que a desigualdade supera a normalmente encontrada em democracias capitalistas [leia o mapa abaixo]. Para piorar, descobrimos recentemente que subestimávamos o problema.
- ade era organizada só com o Índice de Gini, baseado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) – o que os cidadãos dizem aos pesquisadores do IBGE, quando os recebem em suas casas. Por esse método, ficavam fora do quadro os rendimentos que principalmente os mais ricos conseguem de outras fontes, que não o salário – a renda do capital, oriunda de ativos como aplicações financeiras, participação em empresas e propriedade de imóveis. Isso mudou quando a Receita Federal publicou números do Imposto de Renda (IR) de pessoa física de 2007 em diante. Os números mais recentes, referentes a 2015, foram abertos em julho deste ano. Eles evidenciam que a concentração de renda no topo da pirâmide social brasileira é muito maior do que se pensava. A análise restrita às entrevistas domiciliares indicava que o 1% mais rico de brasileiros concentrava 11% da renda. Com os dados do IR e do Produto Interno Bruto (PIB), essa fatia saltou para 28%. “A desigualdade na renda do trabalho caiu mesmo quando usamos os dados do Imposto de Renda. Foram os ganhos de capital [como lucros e dividendos] que limitaram a queda da desigualdade geral”, explica Marcelo Medeiros, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Desigualdade não é, em si, um problema. Ela se confunde com a própria essência do capitalismo, da livre-iniciativa econômica e do triunfo do mérito pessoal. Thomas Piketty, economista francês que se tornou o nome mais célebre a alertar sobre o tema nos últimos anos, afirmou a ÉPOCA, em 2014, que “algum nível de desigualdade é desejável”. Complicando o problema, medir desigualdade é uma tarefa difícil. Recentemente, porém, surgiu uma linhagem sólida de estudos apontando que a desigualdade excessiva prejudica sociedades. O grupo de autores que passaram a abordar o tema inclui os economistas Tony Atkinson (um pioneiro na área, que lecionou nas universidades de Cambridge e Oxford e trabalhou no Banco Mundial), Joseph Stiglitz (ganhador do Prêmio Nobel em 2001), o próprio Piketty (que publicou seu livro mais influente em 2013) e Angus Deaton (ganhador do Prêmio Nobel em 2015). Uniram-se a essas vozes de advertência instituições com credenciais capitalistas inquestionáveis. O Fundo Monetário Internacional (FMI) alertou em outubro que desigualdade alta prejudica a coesão social, conduz à polarização política e pode reduzir o crescimento econômico. A desigualdade foi também adotada neste ano como principal tema do Fórum Econômico Mundial. Efeitos da concentração de renda vêm sendo estudados em diversas áreas.
Sociedades muito desiguais tendem a ser mais violentas e menos saudáveis. Costumam indicar educação mal difundida e de baixa qualidade. “Há também um risco à democracia. Uma elite econômica muito concentrada tem maior acesso aos mecanismos para se perpetuar no poder, por meio do financiamento de campanha e lobby”, diz Pedro Herculano Guimarães Ferreira de Souza, pesquisador do Ipea e autor da premiada tese A desigualdade vista do topo, de 2016.
É difícil determinar um ponto ideal ou aceitável para a desigualdade. No Brasil, porém, basta ver que figuramos entre os mais desiguais do mundo, ao lado de países de baixa competitividade e sem tradição democrática. No outro extremo, agrupam-se democracias capitalistas desenvolvidas – não só países nórdicos, famosos pela distribuição de renda, mas potências como Alemanha e França. “O ideal seria o Brasil se aproximar da maioria do restante dos países desenvolvidos, que tem, à exceção dos Estados Unidos, uma aberração [entre os desenvolvidos], concentração de renda entre 5% e 15% no centésimo mais rico”, diz Souza. Como fazer isso?
Vem de longe o desafio de estreitar a distância entre os muito ricos e os muito pobres. A desigualdade foi tema de debate nos anos 1970. Dois artigos que usaram como base dados do Censo daquele ano mostraram um salto da desigualdade nos primeiros anos da ditadura, contestando a eficácia da receita do ex-ministro da Fazenda Delfim Netto de que era preciso, na metáfora dele, fazer o bolo crescer para depois dividi-lo. Eram eles Albert Fishlow, pesquisador americano ligado ao Ipea, e Rodolfo Hoffmann, professor da USP.
Nos anos 1990, o Plano Real, coordenado por Fernando Henrique Cardoso, estabilizou a moeda e desacelerou a concentração de renda da era da hiperinflação. Nos anos 2000, a ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência, um ciclo de aquecimento econômico combinado à ampliação de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, deu ao país boas notícias nessa área. No futuro próximo, porém, não contaremos com a repetição desses fatores. Como agravante, o ajuste das contas públicas em curso – absolutamente indispensável – afetará os mais pobres, mais dependentes dos serviços públicos. O que só torna mais urgente que se confronte a desigualdade.
Uma forma de fazer isso é disparar a reforma da Previdência, com seu potencial para eliminar privilégios e nivelar direitos. Enfraquecido, o governo deve propor ainda neste mês uma versão superenxuta restrita a dois pilares: a idade mínima e a equiparação entre funcionários públicos e do setor privado. Outra forma de atacar a desigualdade é reformar o modo como se cobram impostos no país. “A reforma tributária é uma escolha óbvia entre as opções para buscar uma sociedade mais equitativa. É preciso resolver o fato de os muito ricos terem carga tributária menor que os pobres”, diz o economista irlandês Marc Morgan Milá, ex-orientando de Piketty e estudioso do tema. Ele se refere ao fato de o sistema tributário brasileiro ser regressivo – cobra menos de quem tem renda maior.
Para atenuar a distorção, uma proposta em jogo, do deputado federal Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), sugere tributar mais a renda que o consumo, de forma progressiva. “Ao desburocratizar e tirar a carga grande sobre o consumo, reduzem-se os custos adicionais, hoje enormes. Ao aliviar os preços [de produtos e serviços], o poder de compra de milhões de trabalhadores aumenta”, diz. Hauly defende um sistema mais enxuto, com a eliminação de tributos e a redução para perto de zero da carga sobre alimentos, medicamentos, máquinas e exportações. “Com isso, calculamos que pessoas com renda até dois salários mínimos, ou cerca de R$ 2 mil, economizarão até 15% em seus gastos”, afirma. Ele vem simulando os impactos de sua proposta com ajuda da FGV.
Outra proposta de reforma tributária é da ONG Centro de Cidadania Fiscal (CCiF). Também visa enxugar o sistema, suprimindo impostos. “As distorções do sistema tributário atual atrapalham a competição entre as empresas, prejudicam a produtividade e agravam a concentração de renda”, diz Bernard Appy, diretor do CCiF e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. Appy alerta que o sistema tributário tem efeito limitado sobre a redução da desigualdade e que o gasto público tem maior poder transformador nessa frente. As duas propostas pretendem manter a carga tributária atual, em cerca de 35% do PIB. “O princípio da neutralidade é positivo. Mas devemos pensar em meios concretos para alcançá-la. Uma alternativa seria o estabelecimento de um teto”, sugere a advogada tributarista Glaucia Lauletta Frascino, sócia do escritório Mattos Filho.
Os defeitos do sistema tributário reacenderam a discussão sobre como tributar os mais ricos. Sobre heranças, o Brasil aplica alíquota máxima de 8%, bem inferior à média de 15% nos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que inclui os países mais desenvolvidos. A tributação chega a 40% nos Estados Unidos, 45% na França e 55% no Japão. Outra possibilidade que desperta paixões é a taxação de lucros e dividendos. Rodrigo Orair e Sérgio Gobetti, do Ipea, estimam que tributar dividendos pode gerar receita adicional de até R$ 59 bilhões para o governo e reduzir a desigualdade em 4%. Appy e o ex-ministro da Fazenda Nelson Barbosa, ambos economistas de esquerda, chamam a atenção para alguns cuidados nesse tópico – não seria adequado simplesmente manter o sistema como está e adicionar a ele mais esse tributo. Taxar lucros e dividendos precisa ser parte de uma reforma mais ampla do sistema, para que o mesmo ganho não seja tributado duas vezes.
Independentemente de sua vontade, os atuais governantes e legisladores, os candidatos em 2018 e aqueles que assumirão cargos no início de 2019 serão envolvidos pelo assunto. Chegaremos ao período eleitoral com desemprego ainda alto, e os dados do Imposto de Renda de 2016, a ser divulgados no fim do ano que vem, deverão mostrar novo avanço da concentração de renda no país. No mês que vem, o World Inequality Lab (Laboratório Mundial de Desigualdade), ligado à Escola de Economia de Paris, lançará o World inequality report 2018, um relatório sobre diversos países, incluindo o Brasil, com novas descobertas sobre a dinâmica nacional de renda e riqueza. Que o debate a respeito ocorra da melhor forma possível: sem os extremos do refúgio na defesa de um capitalismo idealizado – que ignora os dados da realidade – nem do ressentimento demagógico – que nos levaria a propostas levianas para enfrentar o problema.
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