Há alguns anos me pergunto se o “direito à felicidade”, que se tornou uma crença partilhada tanto por religiosos quanto por ateus na nossa época, tem sido causa de considerável sofrimento. Se você acredita que tem direito à felicidade, de preferência todo o tempo, ao sentir frustração, tristeza, angústia, decepção, medo e ansiedade, só pode olhar para esses sentimentos como se fossem uma anomalia. Ou seja: eles não lhe pertencem, estão onde não deveriam estar, precisam ser combatidos e eliminados. O que sempre pertenceu à condição humana passa a ser uma doença – e como doença deve ser tratado, em geral com medicamentos. Deixamos de interrogar os porquês e passamos a calar algo que, ao ser visto como patologia, deve ser “curado”, porque não faz parte de nós. É um tanto fascinante os caminhos pelos quais a felicidade vai deixando o plano das aspirações abstratas, da letra dos poetas, para ser tratada em consultório médico. E, ainda mais recentemente, como objeto do Direito e da Lei, inclusive com proposta de emenda constitucional.
Quem acompanha esta coluna sabe que a felicidade tem sido um tema assíduo. Acredito que poucos fenômenos são tão reveladores sobre a forma como olhamos para a condição humana em nosso tempo como o “direito à felicidade”. Sem esquecer que este tema está relacionado a outros dois fenômenos atuais: a medicalização da vida e a judicialização dos sentimentos. Ou, dito de outro modo: tratar o que é do humano como patologia e dar aos juízes a arbitragem dos afetos.
É importante – sempre é – ressaltar que obviamente existem doenças mentais e situações nas quais o uso de medicamentos é necessário e benéfico, desde que com acompanhamento rigoroso. O que se questiona aqui são os casos – infelizmente frequentes – de leviandade nos diagnósticos psiquiátricos e o consequente abuso no uso de medicamentos, que tem criado uma multidão de dependentes de drogas legais, cujas consequências só serão conhecidas nas próximas décadas. É íntima a relação deste fenômeno com a crença da felicidade que assinala nosso tempo.
Desta vez, convidei a psicóloga e psicanalista Rita de Cássia de Araújo Almeida para falar sobre um recorte muito significativo: a crescente demanda por felicidade no SUS. No texto de final de ano em seu blog, ela abordava a “ditadura da felicidade” do ponto de vista de sua experiência como trabalhadora da rede pública de saúde mental. Rita, 43 anos, é formada em psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora, com mestrado em educação. Há 10 anos ela atua como psicóloga em CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), serviços estratégicos na área da saúde mental. Atualmente, Rita trabalha no CAPS Leste, de Juiz de Fora, e coordena o CAPS Casa Aberta, no município de Lima Duarte, ambos no interior de Minas Gerais.
Nesta entrevista, ela toca em pontos importantes: o aumento do sofrimento causado pelo imperativo da felicidade; a crescente demanda por um diagnóstico de transtorno mental, com a consequente receita de medicamentos; a transformação de momentos como luto, desilusão amorosa e rebeldia juvenil em doença; a dificuldade cada vez maior de compreender que sentimentos como tristeza, angústia, frustração, ansiedade e medo dizem algo importante sobre a vida, que deve ser escutado e não calado. Assim como a insônia e a falta de apetite nem sempre significam doença, mas um aviso de que é preciso reformular algo no cotidiano.
Nos últimos anos, Rita e seus colegas perceberam que tinham uma nova função ao acolher as pessoas que os procuravam na rede pública: autorizá-las a serem infelizes. Isso deve dizer algo sobre todos nós – e sobre nosso mundo.
Você atua na rede pública de saúde, escutando pessoas que relatam dores psíquicas. Em seu texto de despedida de 2012, no seu blog, você escreveu sobre a “ditadura da felicidade”, apontando a diferença de queixa das pessoas nos serviços de saúde mental nesta última década. Afirmou que hoje o pedido é por “felicidade” – ou, dito de outro modo, teria se tornado impossível para as pessoas sentirem-se “infelizes” ou conviver com alguém “infeliz”. Como é isso?
Rita de Cássia de Araújo Almeida – Atuo na saúde pública, em serviços do tipo CAPS (saúde mental) há 15 anos, sendo 10 deles como psicóloga. E, sim, tenho percebido uma mudança na maneira como as pessoas entendem a felicidade. Num passado não muito distante a felicidade era um bem a ser conquistado, quase uma utopia. Hoje, as pessoas se sentem na obrigação de serem felizes. A psicanálise entende a nossa época como a “era do direito ao gozo”. Ou seja: hoje, todos têm o direito de gozar plenamente, sem restrições. Nesse caso, a felicidade deixou de ser uma contingência, um evento, e passou a ser um direito que supostamente deveria ser garantido. Vivemos sob a ditadura da felicidade, e, por isso, grande parte das pessoas tem dificuldade de passar por momentos de infelicidade, de frustração e de perdas com naturalidade, entendendo isso como parte da existência.
O que você está dizendo é que o imperativo da felicidade, a obrigação de ser feliz, está provocando sofrimento?
Rita – Percebo que as pessoas, além de sofrer pelo motivo que as levou a procurar ajuda, sofrem ainda mais pela angústia de ter que se livrar daquele sofrimento rapidamente, a qualquer custo. Não compreendem que aquilo que sentem pode ter um significado e um motivo que precisam ser escutados, pela própria pessoa. Também sentem muita necessidade de dar um nome para o que sentem. Querem logo receber um diagnóstico.
Tenho alguns exemplos que, imagino, não fogem muito à realidade de outros colegas trabalhadores da área. Um deles é quando alguém perde um ente querido e a própria pessoa – ou alguém da família, ou até mesmo outro profissional de saúde – solicita atendimento especializado pelo fato de ele ou ela estar sofrendo ou chorando muito. Enterram o pai num dia e querem estar prontos para ir ao cinema no fim de semana seguinte. Temos também adolescentes encaminhadas à psiquiatria por estarem em conflito com o namorado, assim como crianças indicadas por apresentarem problemas de comportamento e dificuldades de aprendizagem.
Para os que não estão familiarizados com o fluxo de funcionamento da atenção à saúde do SUS, precisamos abrir um parêntese para que entendam o exemplo que vou dar a seguir. O sistema funciona, ou pelo menos deveria funcionar, em rede. A atenção primária – o posto de saúde, unidade de saúde ou estratégia de saúde da família – é a extremidade da rede mais próxima do usuário. Portanto, é a primeira que ele procura quando apresenta qualquer problema. O desafio da atenção primária é não trabalhar em cima das especialidades médicas, mas intervir na pessoa como um todo, tendo como diretriz a promoção e a prevenção da saúde. Entretanto, a atenção primária pode, em casos mais específicos, nos quais a intervenção do chamado especialista seja imprescindível, acionar outros parceiros da rede que possam oferecer suporte. Os CAPS, modalidade de serviço que trabalho, oferecem uma escuta especializada no campo da saúde mental.
Certa vez, recebemos em acolhimento uma mulher, encaminhada por um profissional da atenção primária do nosso território de atuação. Segundo ele, esta mulher apresentava um quadro de insônia e delírio persecutório. Numa escuta mais cuidadosa, soubemos que ela, na verdade, estava insone por medo do marido, que ameaçava jogar água fervente em seu ouvido enquanto ela dormia. Portanto, uma ameaça real – e não um delírio de perseguição. Quando ela me disse que precisava de uma consulta com um psiquiatra para que ele lhe desse um remédio pra dormir, tive de perguntar a ela: “Um remédio? Para quê? Para a senhora acordar com o ouvido queimado?”. Parece óbvio, mas ela não se dava conta de que não dormir, no seu caso, era um sinal de saúde, era uma forma de se proteger (do marido violento) – e não uma doença. Tivemos de autorizá-la a estar com insônia e, obviamente, auxiliá-la a tomar outras providências mais adequadas à situação.
“Estamos nos tornando uma geração de humanos que teme sua própria humanidade”
O que essa queixa de “infelicidade” diz da nossa época? O que ela oculta? O que revela?
Rita – Na verdade, o que causa infelicidade às pessoas não mudou muito. Sofremos, em geral, pelo mesmo motivo apontado por Freud há quase 100 anos. Sofremos, na imensa maioria das vezes, do mal-estar resultante das nossas relações com os outros. Entretanto, percebo que mudou muito a forma como as pessoas lidam com esse mal-estar, com sua infelicidade cotidiana. Num passado não muito distante o profissional da saúde mental era, em geral, procurado para ajudar a pessoa a compreender seus mal-estares, decifrá-los. Hoje, um número cada vez mais crescente de pessoas nos procura com um único objetivo: se livrar dos mal-estares. Não querem saber nada sobre seus sofrimentos ou sobre sua infelicidade, não desejam decifrá-los ou interrogá-los. Querem apenas que o sofrimento e a infelicidade silenciem, e ainda demandam de nós uma resposta rápida, eficaz e, especialmente, que não lhe exija muito esforço. Estamos nos tornando uma geração de humanos que temem sua própria humanidade. Vivemos numa sociedade que pretende negar e rejeitar toda espécie de tragicidade que a condição humana carrega consigo.
O que perdemos quando paramos de nos interrogar sobre nosso mal-estar com o mundo? Ou sobre nossos conflitos, nossas angústias e ansiedades?
Rita – Para a psicanálise, nossos mal-estares são oportunidades que temos para reconduzir e aperfeiçoar nosso processo de subjetivação, de construção de nós mesmos, processo este que nunca cessa. São esses mal-estares que nos fazem repensar nossos valores, objetivos, nosso modo de ser e nossas relações. As lagartas, para se transformarem em borboletas, precisam antes passar pela fase do casulo. Se quisermos aproveitar esta metáfora para entender o processo de subjetivação humano, diríamos que somos capazes de viver esse processo de transformação um sem número de vezes. De lagarta para borboleta, de borboleta para lagarta, e assim sucessivamente. Estas transformações, por sua vez, só acontecem quando questionamos nosso modo de ser e de estar no mundo. Quando paramos de nos interrogar, perdemos a oportunidade de passar por essas transformações, ficando paralisados, fixados em uma só condição: ou lagarta, ou borboleta. E é muito melhor quando podemos aproveitar todas as possibilidades de estar nesse mundo.
Por que você acredita que paramos de nos interrogar? O que aconteceu? O que mudou?
Rita – A pressa talvez seja o sintoma mais evidente da nossa sociedade atual. Zygmunt Bauman (sociólogo polonês, autor de Modernidade Líquida, O Mal-Estar da Pós-Modernidade eVida para Consumo, entre outros) descreve muito bem nosso tempo. Ele diz que vivemos sob a pressão de constantes mudanças, o que favorece uma cultura do esquecimento, em vez de uma cultura do aprendizado e da lembrança.
Como eu disse, as queixas são as mesmas de 10 anos atrás, mas hoje é cada vez mais comum que as pessoas procurem soluções fáceis e rápidas. As pessoas não têm paciência e disposição para passar por tratamentos longos, que exijam esforço e tempo. Outro dia, eu ouvi algo mais ou menos assim, num atendimento: “Olha aqui, minha filha, eu não vim aqui pra ficar de conversinha com você. Eu tenho depressão e preciso de um remédio, porque esse que eu estou tomando não está valendo nada”.
O que você diz para uma pessoa que acabou de perder alguém que amava, mas não quer viver esse luto? Ou acredita que não deveria estar sentindo essa dor, ou até que é injusto sentir essa dor?