marcelo gleiser
19/08/2012 - 05h29
Ciência, fé e extrapolação
Será que podemos compreender o mundo sem ter alguma espécie de crença? Essa não só é uma das questões centrais da dicotomia entre a ciência e a fé como também informa de que modo um indivíduo se relaciona com o mundo.
Se contrastarmos explicações míticas e científicas da realidade, podemos dizer que mitos religiosos procuram explicar o desconhecido com o "desconhecível", enquanto que a ciência procura explicar o desconhecido com o "conhecível".
A tensão vem da crença de que duas realidades independentes existem em pé de igualdade; uma que pertence a este mundo (e que é, portanto, conhecível), e outra fora dele (e que é, portanto, desconhecível ou inescrutável).
Tanto o cientista quanto o crente acreditam, se bem que a crença de cada um é bem diferente. A do cientista se manifesta de forma clara quando faz uma extrapolação de uma teoria ou modelo além de seus limites testados.
Por exemplo, ao afirmar que "a gravidade atua da mesma forma em todo o Universo", ou "a teoria da evolução por seleção natural se aplica a todas as formas de vida, inclusive as extraterrestres", não sabemos se essas extrapolações são verdadeiras. Mas, dado o sucesso das teorias em que se baseiam, vale a pena apostar nelas. Testes futuros confirmarão (ou não) a veracidade da extrapolação.
Sem esse tipo de fé no poder da extrapolação, a ciência não avançaria. Eis um exemplo. A teoria da gravitação universal de Newton, explicada no Livro 3 do seu monumental tratado "Princípios Matemáticos da Filosofia Natural", deveria ter sido chamada de "teoria da gravitação do Sistema Solar", já que, no final do século 17, não existia como testá-la.
Porém, Newton foi em frente e supôs que a força da gravidade --proporcional à massa dos corpos e inversamente proporcional ao quadrado de sua distância-- funcionaria em todo o Cosmo: "Se foi estabelecido que todo corpo na vizinhança da Terra gravita em direção à ela em proporção à sua matéria, teremos de concluir que todos os corpos exercem gravitação mútua".
Mais tarde, em carta datada de 10 de dezembro de 1692 e endereçada a Richard Bentley, teólogo de Cambridge, Newton usa a mesma extrapolação para argumentar que o Universo deve ser infinito.
Se a gravidade atuasse sobre um Universo finito, pensou Bentley, não causaria o colapso de toda a matéria no seu centro? Newton concordou que esse seria o destino da matéria num universo finito.
Porém, sugeriu, "se a matéria estiver distribuída de forma homogênea em um Universo infinito, não colapsaria em uma única massa; um pouco de matéria se aglomeraria em um lugar, um pouco mais em outro, constituindo um número infinito de grandes massas, espalhadas pelas distâncias do espaço".
A crença de Newton na natureza universal da gravidade era tão forte que o levou a especular com confiança sobre a extensão espacial do Cosmo. Einstein fez algo semelhante, mas temos de deixar essa história para outra semana.
Para avançar em suas teorias, o cientista precisa ter a coragem de arriscar e de estar errada. Só quando nos atrevemos a arriscar e errar é que podemos, talvez, enxergar um pouco mais longe do que os outros.
Marcelo Gleiser é professor de física e astronomia do Dartmouth College, em Hanover (EUA). É vencedor de dois prêmios Jabuti e autor, mais recentemente, de "Criação Imperfeita". Escreve aos domingos na versão impressa de "Ciência".
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