ENTREVISTA / ROGER-POL DROIT
“Há um imperativo de ser feliz, em todos os lugares, o tempo todo”
O filósofo francês apresenta em sua última obra o que faria se lhe restasse uma hora de vida
Roger-Pol Droit é um filósofo atípico que renega os intelectuais, um pouco de brincadeira, um pouco a sério. Faz tempo que chegou à conclusão de que devemos confiar menos na cabeça e mais no coração. Que refletir é muito bom, mas que o importante é sentir.
É um pensador importante, autor de vasta obra que inclui ambiciosos ensaios; austeros trabalhos de pesquisa sobre as tradições filosóficas chinesas, indianas e tibetanas, além de obras de divulgação que em muitas ocasiões confinam com o literário. Em sua tentativa de romper a distância do pensador em relação à plebe,aposta em experimentos como propor ao leitor uma série de exercícios insólitos que o desconcertem e o conduzam a uma reflexão.
O assombro, defende com afinco, conduz à filosofia.
Correr em um cemitério. Telefonar a nós mesmos. Beber e urinar ao mesmo tempo. Estes são alguns dos experimentos que propõe ao leitor para despertar um questionamento do estabelecido. Foi o que fez em101 Experiências de Filosofia Cotidiana [publicado no Brasil em 2002], livro de fitness filosófico –coisas do marketing editorial– que vendeu 100.000 exemplares na França e que está sendo reeditado agora na Espanha (pela Blackie Books). E em sua nova obra, Se só me Restasse uma Hora de Vida,[publicada no Brasil pela Bertrand Brasil], submete-se a um de seus experimentos: imaginar o que faria se tivesse apenas uma hora de vida para descobrir, assim, o que é o essencial. A vocação experimental não o abandonou e ele realizou uma obra com inclinação poética a meio caminho entre o ensaio, a filosofia e uma literatura que denomina jazzy, ou seja, na qual improvisa e se deixa levar.
“É um jogo sério, uma experiência de pensamento”, afirma em uma sala do Instituto Francês de Madri. É terça-feira à tarde e no céu se desenham nuvens que anunciam chuva. Faltam poucas horas para que Droit (nascido em Paris, em 1949), que foi conselheiro de atividades filosóficas na Unesco entre 1993 e 1999, apresente uma de suas performances de filosofia, mais uma tentativa de aproximar o pensamento do público.
Pergunta. O senhor é um filósofo que recorre ao humor e ao insólito. Não é preciso ser sério para construir argumentos de peso?
Incorremos no engano de confundir o sério com o aborrecido. Podemos dizer coisas importantes com um tom leve”
Resposta. Um dos enganos em que incorremos é confundir o sério com o aborrecido. Podemos dizer coisas importantes com um tom leve, inclusive divertido. Na história do pensamento há exemplos estranhos, mas facilmente traçáveis: Demócrito, entre os gregos, por suas histórias engraçadas; Luciano de Samósata, Voltaire, Diderot, Rabelais, inclusive Wittgenstein, que muitas vezes é muito divertido. Acredito que no insólito há um valor filosófico ao deslocar o olhar. O assombro é o ponto de partida da filosofia; Platão, Aristóteles, muitos filósofos o disseram. Se nos assombrarmos, começamos a ver as coisas de outro modo. Falta-nos assombro.
P. Em Se só me Restasse uma Hora de Vida o senhor escolhe o momento final para falar sobre o que é importante na vida.
R. Escolhi essa aproximação para tentar chegar a um momento de verdade. Imaginemos que temos 3.600 segundos pela frente. É uma ficção que nos coloca diante do que não queremos ver: o caráter finito da nossa existência. Se nos resta uma hora, o que decidimos fazer de essencial? Uso esse dispositivo para expor o que me parece mais importante do que compreendi da vida.
P. E o que compreendeu da vida?
R. Em primeiro lugar, que temos de escolhê-la. Não podemos vê-la de fora, estamos imersos nela. Não sabemos exatamente do que se trata, mas o que podemos dizer é o que nos ensinam nossas sensações. O que me ensinou a vida? A dúvida, a ignorância e a confiança nas sensações físicas.
P. Parece que as pessoas procuram cada vez mais respostas nos filósofos em uma espécie de busca da felicidade ou de um sentido da existência.
R. Há uma espécie de imperativo de ser feliz, em todos os lugares, o tempo todo. Aconselham-nos isso da manhã à noite. É algo suspeito: quando lhe repetem isso tantas vezes é que algo não funciona. Sempre me surpreendeu essa maneira dos norte-americanos de dizer enjoy. Por que, se eu já faço isso sozinho? Não necessito que me digam que aproveite minha comida, está tudo bem! Na obsessão atual pela felicidade há um sintoma do desejo de eliminar o negativo. Mas não há vida sem aspectos negativos e positivos. A ideia de uma felicidade sustentada, perfeita, sem estresse, sem preocupações, sem angústias, não me parece muito humana, nem interessante. É algo com o que se sonha em uma época que é, efetivamente, angustiada, fragmentada. É preciso ser feliz em casa, com a companheira, no trabalho, na cama, nas férias... Esse imperativo permanente me parece um imperativo de controle social.
Roger-Pol Droit apoia o braço na mesa; segura o rosto com três dedos. Manifesta que a tecnologia não é a salvação, como preconizam alguns, mas tampouco uma antecipação do apocalipse. Considera que o ser humano é ignorante, incrédulo e que tem algo de demente. “O que quero dizer é que a potência técnica cresce enquanto a potência moral não se move. Há muitas guerras e catástrofes que são desencadeadas por formas de injustiça, de loucura”. Sustenta que na França muitas coisas mudaram depois doatentado contra o semanário satírico Charlie Hebdo. “Há uma tomada de consciência de que há uma guerra em andamento que não é entre Estados; não é entre militares e exércitos.” E lança flechas contra seus colegas filósofos, critica a apatia deles. “Quando tinha 20 anos era um grande admirador dos grandes pensadores; ao longo dos anos conheci muitos deles, os vi de perto e não pensei exatamente o mesmo. Penso que há uma espécie de necessidade de admirar; na vida intelectual em geral, mas também na vida social.”
P. Em 101 Experiências de Filosofia Cotidiana o senhor recorre a pontos de partida insólitos para desencadear experiências filosóficas. Isso é uma extravagância?
R. Por que extravagante? Não, não acho. É algo inspirado nos exercícios espirituais da antiguidade na linha de Hellzapoppin' [filme de comédia norte-americano em tom burlesco dos anos quarenta, intitulado Pandemônio no Brasil]. Tento suscitar assombro, provocar um clique.
P. Há uma vontade de provocação?
R. Às vezes sim, às vezes não. Não obrigatoriamente. Teve uma que suscitou muitos comentários, aquela de beber e urinar ao mesmo tempo. Isso é filosofia? É claro que não, não estou louco. Se forem apresentadas perguntas abstratas e teóricas, todo mundo vai abrir a caixa de aspirinas e vai dizer: é uma aula de filosofia, não me interessa. Mas se propusermos coisas assombrosas, insólitas, que fazem com que alguém reflita sobre uma questão, não é filosofia propriamente dita, mas é o início de um caminho rumo à filosofia.
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