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quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

"Quando o tempo não passa" / Roberto Damatta




Quando o tempo não passa

Os tempos não passam quando neles ocorrem eventos desafiadores para as estruturas vigentes


Roberto DaMatta
14 Dezembro 2016 | 02h00
Como certas doenças, existem tempos que não passam. São intermináveis como esse nosso 2016 - certamente um clássico dessa categoria, próximo do que foi 1968, celebrizado por Zuenir Ventura num belo livro.
Os tempos não passam quando neles ocorrem eventos desafiadores para as estruturas vigentes. Em 1968 - vivido por mim em Cambridge, Massachusetts -, as revoltas estudantis, o assassinato de Luther King e Robert Kennedy, a luta contra o racismo e a guerra do Vietnã desafiavam a democracia americana. Num Brasil arrolhado pela ditadura, fazia-se o que era possível.
Quando os fatos não cabem nas gavetas da história, eles viram dramas. 

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

"" A crise revela um enredo reprimido. Como conjugar éticas do privilégio de certos papéis e poderes (o Judiciário é o melhor exemplo), mas que atuam num campo onde predomina a tal “ética capitalista”? Esse conflito, hoje ampliado por uma tecnologia de transparência globalizada, traz à tona as contradições, mas impede a sua resolução porque o sistema legal é um emaranhado construído para manter os privilégios de quem está no poder."" / Roberto da Matta

Um enredo para o Brasil? -

 ROBERTO DAMATTA

O GLOBO - 21/10

Na semana passada, falei da possibilidade de ler o Brasil. Pertencer é ser: é uma leitura da “terra” onde nascemos por obra do acaso. Toda autorreflexão coletiva tem seu enredo, seus fracassos, sua cosmologia e muitos investimentos.

Qual seria o enredo do Brasil?

Se a resposta é a de que nada presta mesmo com a “esquerda” no poder, então há algo de podre no reino do pré-sal. Falta boa-fé e honestidade.

Quantas éticas inscrevemos nas leis que governam o nosso país? Um Estado nacional que, conforme disse um esquecido brasilianista, virtualmente experimentou todos os regimes políticos conhecidos?

Fomos abandonados por quase 100 anos e, em seguida, marcados por um sistema ultracentralizado. Em 1808, passamos a ser o centro do reino lusitano. Um rei aliado a contragosto às forças da reação europeia fugiu do seu reino e transformou uma periferia feita de índios e papagaios numa corte com mais papagaios do que índios. A eles se juntaram os mais ou menos 15 mil aristocratas e criados. A cidade marginal passou a ser o centro do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve.

Tais passagens não se fazem impunemente.

O rei dos contos de Trancoso vira gente. O reino, carnavalizado, é num evento único da história das colonizações. O Rio comanda uma Lisboa ressentida e as figuras sagradas pela aristocrática foram humanizadas.

Foi de dentro desse passado que o Brasil libertou gradualmente os seus escravos, fez a sua República e iniciou o seu enredo de país moderno e igualitário. Mas como realizar tal passagem num sistema tocado a escravidão e baronatos que se transformaram em senadores, juízes, governadores e presidentes sem um povo livre capaz de elegê-los? Viramos República no papel, mas continuamos sendo o país do carnaval e das restrições hierárquicas do “Você sabe com quem está falando?” e de um clientelismo cósmico.

Como realizar a igualdade se existem categorias sociais que só podem ser julgadas por seus pares? Se os crimes prescrevem e, pelos menos, os financeiros compensam? Como adotar uma ética de igualdade num país onde os administradores públicos estão literalmente isentos de julgamento de modo que o mentir se tornou parte do ofício de governar?

Escrevemos um sistema político igualitário sem uma ética de igualdade. Como disse um pouco lido Gilberto Freyre, em Ordem e Progresso: “O que se fez com a Marinha desde os primeiros dias da civilização da República de 89 foi o que se fez com o Exército, com o Rio de Janeiro, com os portos, com as indústrias: cuidou-se da modernização das coisas e das técnicas sem se cuidar ao mesmo tempo da adaptação dos homens ou das pessoas a novas situações criadas pela ampliação ou pela modernização tecnológica da vida brasileira”.

Ou seja, mudamos iludidos pela dimensão político-institucional, mas pouco mudamos os costumes e os ritos pessoais das velhas reciprocidades. Não conseguimos passar para a sociedade a ética republicana que revolucionava tudo, menos os revolucionários que continuaram a conceber a dimensão política como um campo separado da sociedade supondo que os costumes iriam se transformar por decreto.

Daí as regalias extraordinárias com as quais traduzimos no nosso republicanismo os poderes que o dinamizam. Entrar no poder no Brasil é se garantir de ser servido pela sociedade. Mais: é estar protegido por uma rede legal que até hoje esquece os crimes, centrando-se muito mais no processo legal. A legislação é mais usada como um complicado código do que como aberto guia de comportamento.
A crise revela um enredo reprimido. Como conjugar éticas do privilégio de certos papéis e poderes (o Judiciário é o melhor exemplo), mas que atuam num campo onde predomina a tal “ética capitalista”? Esse conflito, hoje ampliado por uma tecnologia de transparência globalizada, traz à tona as contradições, mas impede a sua resolução porque o sistema legal é um emaranhado construído para manter os privilégios de quem está no poder.


Aliás, a igualdade republicana acabou por dar mais força aos elos pessoais simbolizada no inextinguível “Você sabe com quem está falando?”. Em vez de domesticar o lado privilegiado do sistema, nós o atrelamos aos recursos coletivos que são sistematicamente roubados pelos governantes em nome do povo e com legitimidade moderna da ideologia e do rito eleitoral.

Penso que o nosso enredo passa por esse sistema movido por múltiplas éticas, mas que é sempre pensado em termos puramente político, ideológico e partidário.

Não por acaso que, nas ruas, exigem-se confiabilidade, empoderamento dos marginalizados, competência administrativa e de muita honestidade.

Enfim, tudo indica que chegou a hora de virar de fato uma democracia igualitária, ou de deformar-se como uma enorme República onde o Estado engana ideologicamente a sociedade, roubando-lhe o autorrespeito e a dignidade.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Sobre comportamento mentiroso, mentiras, meias-verdades... // Roberto Damata


Concurso de mentiras 

- ROBERTO DAMATTA

O GLOBO - 07/10

Competidores eram craques. Jamais hesitavam nas patranhas e
pouco gesticulavam ou ficavam descontrolados


Um concurso foi organizado para descobrir o maior mentiroso do mundo. Como todos mentimos, a questão era a de patentear as diferenças flagrantes, não as filigranas que nos fazem falsos e traidores.

Como atração, os participantes teriam duas semanas em hotel de luxo, além das melhores comida, bebida e companhia. Os mentirosos inscritos combinaram de mentir mentindo para que o mais mentiroso somente surgisse como vencedor no último dia e hora do conclave.

Os organizadores sabiam que a mentira era uma moeda corrente. Sabiam igualmente que havia países onde a verdade se contrapunha cabalmente à mentira, mas conheciam outros onde mentira e verdade eram o tijolo da vida pública e a primeira praticada por profissionais, pois, se a verdade fosse a norma, o conjunto entraria numa grave crise..

Ninguém ignorava que a mentira e a verdade nem sempre correspondiam ao falso e ao verdadeiro porque uma mentira bem contada virava verdade e lei; e grandes e extravagantes mentiras — tais como “eu não tenho preconceito”, “jamais roubei”, “tudo foi feito dentro da lei”, “eu não sabia” — podiam, com o tempo, virar verdades.

Antes dos geniais publicitários, eles bem sabiam que uma mentira tornava-se verdade quando repetida e que uma verdade podia virar mentira caso fosse associada a uma sistemática ausência de sinceridade — esse tremendo confronto de fatos que assola quem busca ser verdadeiro.

Sabia-se que a luta entre verdade e mentira era fundacional do universo humano. A mentira do Oeste podia ser a verdade do Leste, e a lorota do Sul, artigo de fé no Norte. Como saber quem somos, se não acreditarmos em mentiras, reiteravam sérios os 11 membros do Supremo Conselho Transcendental da Mentira? Quando se proferia “eu minto!”, falava-se uma verdade ou uma mentira? Antes de existir sociedade, argumentavam, já existia a mentira que não era uma questão de história ou cultura, mas de ontologia.

O concurso tinha o alto patrocínio de um banco local, que se concebia mentirosamente como pobre para justificar a verdade da roubalheira dos seus diretores ricos e mentirosos. O mito do país pobre escondia a burla dos programas feitos para os pobres. Mas isso, riam entre si, seria uma enorme mentira verdadeira ou uma extraordinária verdade mentirosa?

Para o concurso, foram congregados cem mentiroso qualificados por meio de documentos falsos. Como estamos cansados de saber, a mentira tem requisitos, vestimentas, caras, rituais e gestos adequados.

Os competidores eram craques. Jamais hesitavam nas patranhas e pouco gesticulavam ou ficavam descontrolados, pois sabiam que a sinceridade e a fala nervosa e tremulante eram mais amiga dos pobres do que dos bem postos e estes, por oficio e destino, eram obrigados a mentir naquela terra de mentira. E onde se mentia para todos e muito mais para si mesmo, pois a automentira, que levava à riqueza, à fama e ao poder, era parte permanente dos seus sonhos e projetos.

— Que venha o primeiro mentiroso! —ordenou o presidente da comissão de dentro do seu terno impecável de falsa casimira inglesa.

Os cem mentirosos se entreolharam confirmando o combinado de mentir, mentindo para prolongar o gozo das benesses prometidas. Não deveria ocorrer uma mentira traiçoeira, pois, mentindo, todos ganhavam.

Após as palavras solenes da abertura, um velho mentiroso caminhou até a tribuna. Olhou em volta, deu um trago no seu mata-rato e soltou em alto e bom som a sua mentira:

— Eu nunca toquei punheta!

Um enorme urro de decepção saiu do peito dos mentirosos. Estava acabada a farra programada. Adeus às libações e bródios em companhias agradáveis que todos esperavam. Traição, pensaram alguns. Mentira, gritaram os mentirosos. Anulem a fala, queria um outro grupo. A mentira inaugural acabara com o concurso antes mesmo do seu começo.

Mas quando os juízes se preparavam para conceder o primeiro lugar ao mentiroso indiscutivelmente verdadeiro, eis que se escuta um berro do outro lado da assembleia:

— Eu jamais tive contas bancárias no exterior! — disse um senhor mentiroso, tentado pela verdade que media suas palavras.

PS: Como tudo isso é uma mentira da mentira, deixo para os queridos leitores e leitoras, bem como para todos os que ficam entre eles, a decisão final. Pois os especialistas em mentira não sabiam de verdade quem era o vencedor desse concurso.


Postado por MURILO às 09:21

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

O Brasil é um bonde - Roberto Damatta

O Brasil é um bonde - cultura - versaoimpressa - Estadão

"A prova é a foto estilo bonde do ex-presidente Lula, da presidenta Dilma e do maestro e guerreiro (diria mesmo um São Jorge) do Brasil, Zé Dirceu, emoldurando os dois numa imagem que causa estupefação, mas que diz tudo do momento brasileiro. Ele, de roupa branca; ela com uma blusa vermelha e o mestre de duas vidas e falas vestido do negro dos cisnes excepcionais. Dos seres acima do bem e do mal que são o símbolo mais perfeito do bonde - digo, do governo - que hoje temos no Brasil. ""