Livros & Filmes
24/06/2012
Sexo, sexo, sexo, do começo ao fim, no livro mais falado do momento — e o mais vendido no mundo
(Publicado em VEJA de 6 de junho de 2012, por Mario Mendes)
CINQUENTA TONS DE CINZA: ATA-ME
O estrondoso sucesso mundial do livro ”Cinquenta Tons de Cinza” sugere que, a despeito de décadas de feminismo, ser subjugada e dominada por um macho alfa ainda seria a suprema fantasia feminina
Anastasia Steele é uma radiante garota na flor de seus 21 anos, prestes a se formar em literatura. Ingênua e bem-comportada, ela nunca teve sequer um namorado. Na verdade, ainda é virgem. Perto dos 30 anos, Christian Grey tem cabelos acobreados, é alto, forte, de corpo muito bem definido, porém não musculoso demais, e bi – isto é, bilionário.
Os dois se encontram por acaso quando ela vai, no lugar de uma amiga, entrevistá-lo para o jornal da faculdade. A atração mútua é fulminante e avassaladora. Se Grey é a imagem perfeita do príncipe encantado dos sonhos de Anastasia, ele não suporta mais ficar um instante longe dela. Parece se tratar de uma união simplesmente divina, não fosse o fato de o magnata possuir um traço terrível e obscuro em sua personalidade.
Na luxuosa cobertura envidraçada onde vive, na cidade americana de Seattle, entre valiosas obras de arte e um piano de cauda branco – que ele toca com o talento de um virtuose -, existe “o quarto da dor”. Decorado com veludo vermelho e couro negro, o cômodo é equipado com cama gigante, almofadas confortáveis, chicotes, coleiras, correntes, algemas e todo o aparato necessário para intensas sessões de sexo sadomasoquista.
Em vez de propor casamento, Grey espera que Anastasia se torne sua escrava sexual e principal objeto de prazer. “Não sou do tipo romântico”, diz, em tom autoritário, para a aterrorizada porém perdidamente apaixonada donzela. Mesmo hesitante, ela aceita o desafio, que inclui total submissão, açoitamento, palmadas, olhos vendados, punhos atados e nenhum carinho.
Tudo descrito nos detalhes mais gráficos, epidérmicos e voluptuosos. Conseguirá a inocente heroína conquistar o amor verdadeiro mergulhando nessa relação no mínimo doloridíssima?
Esse é o enredo de Cinquenta Tons de Cinza, o livro que todo mundo está lendo, comprando, baixando na internet, comentando, recomendando, discutindo e, acima de tudo, a-do-ran-do no mundo inteiro. Devido ao caráter extremamente explícito das cenas de sexo, que vêm misturadas à linguagem simples dos romances baratos e ao enfoque descaradamente água com açúcar da história de amor, a obra já foi qualificada como “pornô para mamães” e “Cinderela tarada”.
Desde seu lançamento nos Estados Unidos, em março, vendeu mais de 10 milhões de exemplares em apenas seis semanas, tornando-se o maior fenômeno editorial dos últimos tempos e deixando para trás pesos-pesados como o mega-best-seller O Código Da Vinci e a saga Crepúsculo.
Aliás, essa última é a verdadeira culpada pela existência de Cinquenta Tons de Cinza. Foram os romances vampirescos de Stephenie Meyer que levaram a até então desconhecida inglesa E.L. James – ex-gerente de produção de TV, casada, mãe de dois garotos adolescentes e idade “lá pelos 40″ – a escrever sua própria trilogia (as duas continuações, Cinquenta Tons Mais Escuros e Cinquenta Tons de Liberdade, estão vendendo tão bem quanto o original).
“Um exemplarzinho só já estaria bom”
Em 2008, depois de ler e se apaixonar pelas aventuras do vampiro Edward e sua amada Bella, Erika Leonard (só o sobrenome James não é o seu verdadeiro) passou a escrever variações da trama no popular site Fanfiction.net, no qual fãs podem postar histórias criadas a partir de livros de sucesso favoritos como, por exemplo, a série Harry Potter.
Um dia ela decidiu ir além e começou a escrever o que viria a ser Cinquenta Tons de Cinza. O conteúdo on-line não demorou muito a atrair a atenção de uma pequena editora australiana, que propôs à autora cobrar pelo download da história e também fazer cópias impressas por encomenda. O sucesso da empreitada foi tão instantâneo e avassalador quanto a atração entre Anastasia e Grey.
Quando Cinquenta Tons se tornou o número 1 na lista de e-books do The New York Times e a versão impressa se esgotou nas livrarias, as grandes editoras americanas começaram a disputar os direitos de publicação. A vitoriosa foi a Vintage Books, uma subsidiária da gigante Random House.
No começo de junho, o serviço de verificação de venda de livros nos Estados Unidos, o BookScan, informou que a trilogia acabara de abocanhar 25% do mercado americano de ficção adulta, além de ter ganhado tradução para 37 idiomas. Também os direitos de adaptação cinematográfica já foram adquiridos, pela Universal e pela Focus Features, por alegados 5 milhões de dólares – um recorde que pertencia a O Código Da Vinci, comprado por 3 milhões.
Detalhe: a escolha do elenco está sujeita à aprovação da autora. “Nunca, nem nos meus devaneios mais delirantes, imaginei que o livro se tornaria o que se tornou”, declarou E.L. James, uma morena de humor transbordante, à editora executiva Isabela Boscov durante uma conversa num café de Londres pontuada por suas risadas e tiradas espirituosas. “A extensão da minha ambição era um dia ver o livro – um exemplarzinho só já estaria bom – na vitrine de uma livraria.”
“Estamos diante de um daqueles livros de suspense impossíveis de largar, espetacular e totalmente original”, acredita Jorge Oakim, da Intrínseca, a editora que desembolsou 780 000 dólares para publicar a trilogia no Brasil (o lançamento está previsto para agosto) e deter os direitos da tradução em português para e-books em todo o mundo.
Mas um momento: quem quer saber de suspense diante de um material quente como Cinquenta Tons de Cinza? É o sexo que interessa. Principalmente como são descritas as práticas S&M: “De maneira totalmente saudável, segura e consentida por ambas as partes”, como observou um crítico americano.
Metódico e cauteloso, Grey coloca em um contrato todas as suas exigências e expectativas sexuais para Anastasia. Em uma piscadela para a literatura de autoajuda, a trilogia funciona como um manual erótico para quem deseja sair da rotina sexual de um relacionamento, sem no entanto resvalar na perversão canalha ou na promiscuidade pura e simples. Além de estritamente monógamo, Grey só avança nos jogos violentos (“mas bem menos violentos que o S&M do mundo real”, frisa a autora) com a absoluta aquiescência de Anastasia. Que, não obstante seus momentos de dúvida, topa tudo por amor.
O universo da literatura erótica feminina
O tema também está longe de ser original. Submissão sadomasô é o mote de História de O, clássico erótico publicado nos anos 50 e filmado nos 70. Vale lembrar que, nos últimos setenta anos, várias escritoras – muitas delas de talento superior ao de E.L. James – se dedicaram a escrever histórias encharcadas de sexo ou livros inteiros sobre o assunto. Além disso, uma gorda fatia do mercado literário internacional se dedica aos chamados romances femininos.
São livros de bolso impressos em papel barato que contam histórias de amor despudoradamente melosas, arrematadas com o esperado e inevitável final feliz e salpicadas aqui e ali com cenas mais palpitantes.
A fórmula – subtraídas dela as cenas palpitantes – fez a fama da inglesa Barbara Cartland, a rainha da literatura cor-de-rosa (ela só se vestia nesse tom), cujas heroínas somente se entregavam ao amado no último parágrafo. Autora de mais de 700 títulos do gênero, Barbara vendeu mais de 1 bilhão de exemplares no mundo inteiro.
Esse é também o nicho dominado pela editora canadense Harlequin – que em 1971 adquiriu outro gigante do gênero, a inglesa Mills & Boon, mantida até hoje como marca independente e milionária. Só a Harlequin lança cerca de 110 títulos por mês e, claro, também possui coleções eróticas, a exemplo da série sugestivamente intitulada Homens de Uniforme.
E.L. James não esconde de onde vem a inspiração para a sua trilogia: Anastasia, a protagonista, é leitora devota do Orgulho e Preconceito de Jane Austen, do Jane Eyre de Charlotte Brontë e do Tess dos D’Ubervilles de Thomas Hardy, entre outros clássicos da literatura inglesa do século XIX. Os personagens dessas obras, aliás, emprestam traços marcantes aos seus próprios personagens: Christian Grey tem o cavalheirismo, a arrogância e a absoluta, ainda que adorável, falta de de autoconhecimento do James Darcy de Orgulho e Preconceito (“ele é homem, afinal”, brinca E.L.), enquanto Anastasia é tão excitável, rápida no troco e desaforada quanto a mulher pela qual Darcy reluta em se admitir apaixonado, Elizabeth Bennet.
Da mesma forma, Christian e Ana espelham o irascível Mr. Rochester e a ingênua, mas inquebrantável, Jane Eyre do romance homônimo. E, como Tess, Ana treme de medo diante da sedução do cafajeste D’Uberville e palpita de amor por Angel Clare – a diferença é que, neste caso, esses dois personagens são fundidos em Christian Grey como facetas polares de sua personalidade.
“Quando me apontam essas semelhanças, porém, respondo que todas essas histórias têm a mesma matriz: A Bela e a Fera, que pode ser lida como um símbolo do poder transformador e revelador que as mulheres às vezes exercem sobre os homens – sem os quais, por sua vez, elas não podem atingir uma feminilidade plena”, diz E.L.
As feministas – sempre elas – não gostaram e acusam a autora de glorificar a submissão ao macho alfa. “Além disso, é um livro muito mal escrito”, esbravejou a americana Erica Jong, autora de Medo de Voar, um dos marcos do erotismo feminista (e que não é ele próprio tão bem escrito assim, diga-se). E.L. James não se abala. “O que Cinquenta Tons fez foi encorajar as mulheres a voltar a falar sobre sexo. Isso é avanço, e não retrocesso”, devolve.
Treze tons de rosa
Mulheres que conquistaram leitores falando de sexo sem censura e sem vergonha
Anaïs Nin (1940)
Escreveu contos sob encomenda (1 dólar a página) para um cliente rico interessado em pornografia. O resultado foram as coletâneas Delta de Vênuse Pequenos Pássaros, cuja publicação só foi autorizada pela autora francesa nos anos 70
Tereska Torres (1950)
Sacudiu o mercado editorial popular com Women’s Barracks, sobre as relações entre mulheres no Exército francês durante a II Guerra. Em dois anos, vendeu mais de 2 milhões de exemplares só nos Estados Unidos
Adelaide Carraro (1963)
Com o explosivo romance Eu e o Governador – sobre um suposto e apimentado affair com o político Jânio Quadros -, a escritora paulista virou sinônimo de pornografia. Especializou-se no gênero e foi um fenômeno de vendas em sua época
Jacqueline Susann (1966)
Com sexo, drogas e mexericos, a escritora americana vendeu 30 milhões de exemplares do seu O Vale das Bonecas. Em A Máquina do Amor, criou um herói sexy, frio e violento, como o Christian Grey de Cinquenta Tons de Cinza
Xaviera Hollander (1971)
Na autobiografia A Aliciadora Feliz, contou em detalhes escandalosos sua trajetória de secretária executiva a bem-sucedida dona de bordel em Nova York. Aos que a acusavam de indecente, respondia que se tratava de um “guia sexual para a mulher do século XX”
Erica Jong (1973)
Medo de Voar foi um dos estrondos editoriais da década de 70, com altas doses de erotismo, feminismo, papo-cabeça e palavrões. O escândalo maior, entretanto, ficou por conta da protagonista, que admitia praticar o adultério sem culpa nem remorso
Emmanuelle (1974)
Graças ao sucesso do filme com Sylvia Kristel no papel-título, o livro de Emmanuelle Arsan, de 1959, chegou à lista dos mais vendidos. É a história da mulher de um diplomata que se entrega a fantasias sexuais na exótica Bangcoc
História de O (1975)
Outro caso de filme que fez a fama do livro – este escrito em 1954, por Pauline Réage (pseudônimo de Anne Desclos). A jovem O é entregue a vários homens pelo próprio amante, numa trama que dilui Marquês de Sade em pseudointelectualismo e alta-costura
Shere Hite (1976)
Muito mais comentado do que lido, O Relatório Hite – uma investigação sobre a sexualidade feminina – pôs em discussão assuntos até então tabus, como orgasmos múltiplos e masturbação. Considerada “a primeira feminista bonita”, Shere atualizou e republicou o livro em 2006
Jackie Collins (1979)
Atriz obscura, a inglesa passou a escrever romances tórridos em que o sexo é o prato principal. Já vendeu cerca de 400 milhões de exemplares com títulos nada sutis como A Vadia, O Garanhão e O Mundo Está Cheio de Homens Casados
Ariella (1980)
A enorme bilheteria do filme – baseado no romance A Paranoica – foi proporcional ao sucesso da autora do livro, Cassandra Rios, no Brasil dos anos 60 e 70. Entre suas obras lésbico-eróticas estão também Tessa, a Gatae A Santa Vaca.
Judith Krantz (1982)
Ex-jornalista de moda, a escritora americana gosta de personagens ricos e ambientes glamourosos. Mas explora con gusto as cenas de sexo altamente gráficas em romances como Luxúria, Princesa Margarida e A Filha de Mistral
Catherine Millet (2002)
A Vida Sexual de Catherine M. revelou um lado desconhecido da editora da prestigiosa revista francesa ArtPress. Nesse diário, ela confessa em detalhes sua preferência pelo sexo grupal – mas sempre na companhia do marido
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