Polícia Federal descobre rede de apoiadores do Estado Islâmico em São Paulo
O achado assusta. Ainda mais porque terrorismo, no Brasil, não é crime
FILIPE COUTINHO E DANIEL HAIDAR
04/09/2015 - 23h29 - Atualizado 04/09/2015 23h29
O alarme da casa tocou pouco depois das 6 horas da manhã, numa rua típica do bairro do Pari, em São Paulo. Era a última sexta-feira de agosto. A Polícia Militar logo chegou ao local, na tentativa de evitar o que imaginava ser um assalto. Encontraram policiais federais armados, usando marreta para arrombar os 14 cadeados que trancavam o portão de ferro. Era a única casa da rua com cerca elétrica. Comparada às demais, parecia um bunker, rodeado por uma dezena de câmeras de segurança. A operação fora autorizada pela Justiça Federal com o objetivo de investigar um grupo suspeito de movimentar ilegalmente mais de R$ 50 milhões em cinco anos. ÉPOCA descobriu que os investigados formam uma célula especializada em lavagem de dinheiro, suspeita de apoiar o terrorismo. Seus integrantes defendem execuções em massa, a morte do presidente americano Barack Obama e o Estado Islâmico, a mais perigosa organização terrorista da atualidade.
A operação Mendaz foi planejada com discrição. Mencionou apenas o desbaratamento de uma rede de empresas e CPFs falsos, montada para enviar dinheiro para fora do país sem identificar quem recebe. Conduzida pela Diretoria de Inteligência da Polícia Federal, a ação foi acompanhada pela Embaixada dos Estados Unidos, pela seção comandada por Steve Moore, agente do FBI. Na manhã daquela sexta-feira, a Embaixada de Israel também recebeu o informe da PF sobre a ação. Há um esforço conjunto para rastrear as conexões do grupo no exterior. É a primeira vez que uma operação da PF chega a um grupo tão estruturado de simpatizantes do terror no Brasil.
No topo do esquema de lavagem está o libanês Firas Allameddin. Em 2009, Allameddin tentou que o governo brasileiro o reconhecesse como refugiado. Isso poderia evitar que ele fosse expulso ou extraditado do Brasil. O pedido foi rejeitado. De acordo com as investigações, o grupo de Allameddin se valia de empresas de fachada e nomes falsos para enviar valores ao Líbano.
O dinheiro provém, suspeita a PF, de golpes na praça, como estelionato, cheques sem fundo e empréstimos fraudados. “Tal rede se utilizaria de informações falsas para a obtenção de documentos que propiciaria a criação de pessoas físicas e jurídicas ‘fantasmas’ a fim de promover a abertura de contas, solicitar cartões, realizar operações de câmbio, remessa e saque de valores no exterior, ao arrepio das leis brasileiras”, diz a decisão que autorizou as buscas.
Allameddin e seus parceiros adotavam expedientes vários e dividiam tarefas no envio de dinheiro ao Líbano. Allameddin usava três CPFs. Seu irmão Fadi criava identidades falsas, com uma predileção por “Felipe”. Outro irmão, Toufic, pagava cartões de crédito com valores acima da fatura, para o excedente ser sacado no Líbano. Também usavam empresas de fachada. Uma casa de câmbio clandestina transferia dinheiro para uma corretora, que o remetia ao exterior. A tática dificultava o rastreamento.
Outra operação da Polícia Federal chegou a um muçulmano que vendia em Brasília análises simpáticas ao terrorismo
O libanês e os outros investigados publicam na internet imagens a favor do Estado Islâmico (EI), com vídeos com o anúncio do advento do califado – o mítico Estado a unir muçulmanos sob um único governo e um único chefe, que o EI acredita estar construindo, à base de matança, escravidão e estupros. Allameddin divulga na internet imagens de execuções pelo EI, com tiros na cabeça de prisioneiros. “Morram de inveja! O Estado Islâmico vai ficar para sempre e vai se espalhar”, afirma um dos textos publicados por um irmão de Allameddin. Corpos carbonizados são a imagem do perfil de Facebook de outro parceiro do libanês, também investigado. Se a lei antiterrorismo brasileira já estivesse aprovada, a situação deles poderia ser diferente – no projeto de lei em tramitação no Senado, já aprovado pela Câmara, a pena seria de até 13 anos de cadeia.
O grupo usava com frequência uma corretora especialista em transferências de dinheiro, localizada no bairro paulistano do Brás. Funcionários da agência relatam que os investigados davam explicações diferentes para as remessas e ficavam irritados quando o sistema não completava a operação. O grupo fazia transferências de baixo valor, sem a necessidade de conta bancária. Só Allameddin fez cerca de 300 operações em menos de dois anos, para enviar cerca deR$ 2,5 milhões ao Líbano. É algo como um envio a cada dois dias, sempre abaixo de R$ 10 mil. Ficaram registrados na corretora do Brás cerca de 20 destinatários dos repasses, mas sem detalhes, apenas o primeiro nome. Pelas regras da agência, o limite diário é de US$ 1.900. Basta fornecer um nome e a senha para que qualquer um, em outro país, saque um valor em dinheiro vivo. Muitos saques foram feitos por Mohamed, um nome tão comum no Líbano quanto José no Brasil.
A investigação da PF começou a partir do egípcio Hesham Eltrabilypara chegar à célula financeira de Allameddin. Radicado no Brasil pelo menos desde 2002, Eltrabily leva uma vida discreta como comerciante em São Paulo. Era parceiro comercial de Allameddin numa loja chamada Nuclear Jeans. O local está fechado. Para o governo do Egito, Eltrabily é um terrorista, acusado de participar de um atentado que matou 62 pessoas em 1997. O Egito pediu a extradição dele e justificou: “O réu liderou e juntou-se a um grupo ilegal. Esse grupo usou o terrorismo para alcançar seus objetivos, marcando e assassinando homens da segurança e personagens públicas, bombardeando e destruindo instituições”. O Supremo Tribunal Federal negou o pedido, em 2003. Queria descrição melhor dos crimes cometidos.
O grupo usava com frequência uma corretora especialista em transferências de dinheiro, localizada no bairro paulistano do Brás. Funcionários da agência relatam que os investigados davam explicações diferentes para as remessas e ficavam irritados quando o sistema não completava a operação. O grupo fazia transferências de baixo valor, sem a necessidade de conta bancária. Só Allameddin fez cerca de 300 operações em menos de dois anos, para enviar cerca deR$ 2,5 milhões ao Líbano. É algo como um envio a cada dois dias, sempre abaixo de R$ 10 mil. Ficaram registrados na corretora do Brás cerca de 20 destinatários dos repasses, mas sem detalhes, apenas o primeiro nome. Pelas regras da agência, o limite diário é de US$ 1.900. Basta fornecer um nome e a senha para que qualquer um, em outro país, saque um valor em dinheiro vivo. Muitos saques foram feitos por Mohamed, um nome tão comum no Líbano quanto José no Brasil.
A investigação da PF começou a partir do egípcio Hesham Eltrabilypara chegar à célula financeira de Allameddin. Radicado no Brasil pelo menos desde 2002, Eltrabily leva uma vida discreta como comerciante em São Paulo. Era parceiro comercial de Allameddin numa loja chamada Nuclear Jeans. O local está fechado. Para o governo do Egito, Eltrabily é um terrorista, acusado de participar de um atentado que matou 62 pessoas em 1997. O Egito pediu a extradição dele e justificou: “O réu liderou e juntou-se a um grupo ilegal. Esse grupo usou o terrorismo para alcançar seus objetivos, marcando e assassinando homens da segurança e personagens públicas, bombardeando e destruindo instituições”. O Supremo Tribunal Federal negou o pedido, em 2003. Queria descrição melhor dos crimes cometidos.
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Operação Mendaz cumpriu 18 mandados de busca e apreensão. Agora, a PF analisa o material apreendido, para desvendar com quem o grupo se comunicava no Líbano e se há, entre eles, terroristas ou apoiadores do terror. Eltrabily, que morava no bunker no Pari, tinha em casa dez celulares. ÉPOCA procurou suspeitos da investigação em 15 locais, em endereços residenciais e comerciais. As lojas estão fechadas ou não existem. Nas residências, ninguém quis se identificar. A Embaixada dos Estados Unidos disse que não se pronunciaria.
A Operação Mendaz não foi a única, em poucos meses, a encontrar conexões com o terrorismo no Brasil. A comunidade de informação foi alertada sobre o trabalho de Marcelo Bulhões, membro da comunidade muçulmana sunita em Brasília. Bulhões vendia informações sobre muçulmanos, embaixadas e agências de inteligência, segundo os investigadores. Seu tema preferencial era o terrorismo. Não era uma atuação discreta: oferecia relatórios a quem quisesse pagar.
O caso, contudo, foi enquadrado pela PF como falsificação de documentos. Isso porque Bulhões colocou em seus relatórios brasões oficiais. As informações produzidas por ele traziam, segundo os investigadores, “o perfil característico de simpatizantes, apoiadores e operativos terroristas”. No informe, a PF alertou as embaixadas de que tais relatórios não tinham nenhuma chancela de órgão brasileiro. “Marcelo se vale de seu acesso à comunidade islâmica para angariar dados e produzir, com base em seu interesse pessoal, informações que serão oferecidas a serviços de inteligência brasileiros e estrangeiros. O objetivo é fazer dessa dinâmica de venda de informações seu meio de vida”, diz o alerta enviado.
Além de emitir análises simpáticas a organizações perigosas e falsificar documentos, Bulhões também adotava táticas similares às de um agente duplo, segundo o documento enviado pela PF às embaixadas. “É sabido também que Marcelo não hesita em oferecer informações sobre um ‘cliente’ a outro. Deste modo, na medida em que angaria a confiança de um Serviço, brasileiro ou estrangeiro, passa a vender a outras informações que produz a respeito deste Serviço, atuando como um ‘agente duplo’”, afirma a PF. Há uma agravante: Bulhões era advogado e, entre seus clientes, estavam integrantes da comunidade sunita. Como advogado, ele não pode vender informações sobre seus clientes.
No dia 24 de abril, a PF cumpriu mandado de busca e apreensão na casa de Bulhões. Foi empregado todo o aparato de um filme de ação, com o grupo antibomba e apoio de policiais do Comando de Operações Táticas, a tropa de elite da PF. A situação chamou a atenção da vizinhança. Levantou-se a suspeita de que a operação seguia os protocolos de uma ação antiterrorismo. A PF nunca negou. Procurado, Bulhões disse, por meio de seu advogado, que não vendia informação. “O senhor Bulhões é advogado atuante na área de imigração e, por tal motivo, mantém contato com diversas embaixadas e órgãos públicos. Além de sua atividade profissional, Bulhões não tratou nem repassou informação ou documento a qualquer representação diplomática e nunca divulgou informação referente a seus clientes. As questões do processo tramitam em segredo de Justiça, e aguardamos que o mal-entendido seja esclarecido judicialmente”, afirmou o advogado Ariel Foina.
As investigações seguirão na trilha dos crimes financeiros, no caso da Mendaz, e de falsificação de documentos, no caso do agente duplo – mesmo que a PF e a Justiça saibam que as suspeitas são de atos muito mais perigosos. No Brasil, não são crimes o terrorismo nem o apoio a ele, muito menos a apologia. Se o projeto de lei aprovado pela Câmara estivesse em vigor, a pena mais leve seria de quatro a oito anos de detenção, para o crime de apologia. Atentados terroristas seriam punidos com 12 a 30 anos de prisão – ou seja, em qualquer caso, a punição seria sempre em regime fechado. Pela lei, todos que fossem condenados a mais de oito anos de prisão, por qualquer desses crimes, ficariam obrigatoriamente em presídio de segurança máxima.
A um ano das Olimpíadas no Rio de Janeiro, o governo aguarda uma definição do Congresso para colocar, em lei, o que é um atentado terrorista, o que configura apoio a atividades terroristas e o que significa a apologia desse tipo de causa. A discussão, contudo, esbarra numa polêmica descabida: o receio de que movimentos sociais possam ser enquadrados. Enquanto isso, o crime de terrorismo fica, no Brasil, num limbo jurídico. Restando à Justiça, por enquanto, enquadrar os casos em outras leis, com penas mais leves do que se tais agressões à sociedade fossem classificadas como terrorismo.
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