As coringas da língua e seu mau uso
Essa necessidade de dizer mais coisas com menos esforço está levando algumas palavras à loucura. Sobrecarregadas, usadas fora de contexto, corrompidas e cuspidas como bagaços, elas acabam desfiguradas ao gosto do cliente.
Como pragas, esses coringas da língua são capazes de levar sinônimos à extinção, expulsar ironias, excomungar subjetividades, limitar lirismos, guaribar argumentações, apressar conclusões ou, simplesmente, bajular as circunstâncias.
Juntei nesta crônica alguns exemplos, usados de maneira mais compulsiva. Aceito mais dicas para espinafrações futuras.
GÊNIO — Na ciência, nas artes e na tecnologia, os gênios deixaram de ser exceções: eles agora brotam às dezenas, centenas, milhares por ano, todos os dias.
Há um gênio a cada esquina. Os rankings de gênios estão lotados, e já há até gradações.
“Um dos maiores gênios da atualidade” é uma expressão muito usada.
O que leva a crer que não existem apenas gênios dando bobeira, mas também vice-gênios, gênios medianos, gênios medíocres e gênios de quinta categoria.
Assim como a informação se democratiza e se fragmenta, também a genialidade se multiplica. A genialização global é um fenômeno sem volta, e, para os menos assistidos, sempre haverá uma “bolsa-gênio”.
Vivemos um renascimento neurobiológico: da sopa borbulhante de gênios emergirá, em breve, a nova espécie, o homo gandhi, trazendo a cura da burrice e o fim das guerras.
HISTÓRICO — Um bi-vice-campeonato inédito; a maior inflação trimestral desde o ano retrasado; o novo tablet da Apple: hoje, tudo é histórico. Como se vivêssemos, semanalmente, uma queda do muro de Berlim às segundas-feiras, uma chegada do homem à Lua às quartas e um gol 1.000 do Pelé às sextas.
Talvez seja só a reparação de uma grande injustiça: se examinarmos bem os fatos, tudo é histórico mesmo, sempre foi, sempre será.
O que houve foi uma revolução silenciosa, ou melhor, palavrosa, dos fatos corriqueiros, reivindicando e alardeando obsessivamente seu pertencimento à linha do tempo, que ficou bombada de efemérides.
Chegará o dia em que teremos, em tempo real, numa Rádio Relógio infinitesimal, as notícias de centenas de fatos históricos por milésimo de segundo, simultaneamente, e celebraremos cada um como o jubileu de um rei.
CONTEÚDO — Conteúdo, antigamente, era só algo dentro de um recipiente ou espaço. Água. Geleia de rosas. Palavras. Textos. Terra. Lixo. Ou coisa pior. Foi muito associado também a saber, substância, significado de fundo, consistência: uma pessoa de conteúdo, uma obra de conteúdo.
Nas últimas décadas transformou-se num fluido que abrange tudo o que é expresso por algum meio, e franqueado ou vendido a granel.
São commodities, grãos de informação, aos quais, necessariamente, devem-se atribuir valores, ainda que simbólicos e independentes do seu... conteúdo.
Como se a acepção original (“algo dentro de um recipiente”) recebesse um upgrade denominativo, de forma que hoje qualquer porcaria investe-se de importância: afinal, se é conteúdo, como é que pode ser ruim?
POLÊMICA — Não existe mais controvérsia. Não existe mais fuzuê. Não existe discussão. Não existe mais debate. Não existe mais “imbróglio”. Não existe polifonia.
Só existe a polêmica. Mesmo que não seja nada demais. Mesmo que ninguém esteja dando a mínima. Basta uma ínfima dualidade e acende-se o farol: polêmica!!!!!!
Uma vez instaurada a polêmica, é preciso, rapidamente, resolvê-la: as votações são abertas, o resultado computado e divulgado, e pronto: a situação está equacionada, não é preciso mais pensar no assunto, não há meios-termos, matizes de luz, paradoxos.
POLITICAMENTE CORRETO — Criado para designar a doutrina que prega a utilização de uma linguagem específica para neutralizar discriminações e preconceitos, o termo (e a prática) foi alvo de muita crítica, por seus excessos e seu caráter limitador dos costumes. Mas, com o tempo, seu uso, pelos detratores, passou a estigmatizar não apenas os excessos, mas qualquer precaução com o próximo, qualquer impulso ético, qualquer delicadeza. Quem escolhe usar um tratamento verbal cuidadoso com as diferenças corre o risco de ser visto como besta opressora da liberdade de expressão.
STEAK TARTARE — Essa é só pra relaxar ou pirar os caçadores de legendas ruins: num episódio da série “Mad Men” em vídeo caseiro, uma das peguetes do publicitário Don Draper pede um steak tartare. Tradução na tela: “Por favor, um bife ao molho tártaro .”