“We built it” (nós construímos isso) – a frase, estampada nas telas e entoada pelos delegados, foi o tema central da convenção republicana do ano passado. Os republicanos estavam dizendo que os empresários criam seus negócios pelos próprios esforços e nada devem a ninguém. Mitt Romney, o candidato escolhido, extraiu um corolário negativo da mensagem, sintetizando-o no célebre parágrafo sobre os “47%”, registrado por uma câmera clandestina num jantar fechado de coleta de fundos: 47% dos americanos votariam em Barack Obama em qualquer circunstância, pois são “dependentes do governo” e “acreditam-se vítimas”. Como um maestro oculto na coxia, o vulto de Margaret Thatcher regia a orquestra republicana – e, por oposição, também a democrata.
No 10, Downing Street, sede do governo britânico, em setembro de 1987, a primeira-ministra concedeu uma entrevista à revista feminina Woman’s Own. Confrontada com uma pergunta confusa sobre a ganância e os yuppies da City, ela disse que nada havia de errado com o desejo de ganhar sempre mais dinheiro e, na sequência, delineou seu credo filosófico: “Acho que atravessamos um período no qual muitas crianças e pessoas foram levadas a acreditar que, se tenho um problema, é a missão do governo resolvê-lo ou que conseguirei uma subvenção para lidar com ele ou que, se sou um sem-teto, o governo deve dar-me moradia – de tal modo que essas pessoas estão arremessando seu problemas sobre a sociedade. Mas o que é a sociedade? Não existe essa coisa. O que existe são homens e mulheres, indivíduos, e famílias (…)”.
Thatcher não inventou essa crença, mas inscreveu-a com letras de fogo na cena política do pós-guerra. Ronald Reagan, eleito presidente dos EUA um ano depois da ascensão da “revolucionária conservadora” britânica, certamente subscreveria sua passagem sobre a “sociedade”. A polêmica que marcou as últimas eleições americanas não foi deflagrada por Romney, mas por Obama, semanas antes da convenção republicana, num discurso de improviso na Virginia. No fundo, o presidente respondia a Thatcher e a Reagan: “Se você foi bem-sucedido, não chegou lá por conta própria. Se você triunfou, alguém no caminho lhe deu alguma ajuda. Houve um grande professor em algum ponto de sua vida. Alguém ajudou a criar esse inacreditável sistema americano que permite que você prospere. Alguém investiu em estradas e pontes. A internet não nasceu espontaneamente. A pesquisa financiada pelo governo criou a internet, de modo que todas as empresas pudessem lucrar com ela. Quando alcançamos sucesso, triunfamos por nossa iniciativa individual, mas também porque fizemos coisas juntos”.
O capitalismo contemporâneo diferencia-se, no espaço e no tempo, ao sabor das oscilações eleitorais entre o ‘partido do indivíduo’ e o ‘partido da sociedade’
Obama tinha razão – e poderia acrescentar que a nova revolução energética em curso nos EUA deriva de pesquisa básica pública nos campos do fraturamento hidráulico e da perfuração horizontal. Mas, de certo modo, Thatcher também estava com a razão ao traçar círculos de giz em torno do indivíduo e da responsabilidade individual. A fé cega na “sociedade” fabricou corpos sociais fragmentados em fortalezas corporativas, vincados pelas linhas férreas das regulamentações e dos privilégios, entorpecidos sob uma pesada manta de garantias intocáveis. A Itália e a Grécia, entre tantos outros casos, evidenciam a virulência dessa enfermidade que arruína a capacidade de inventar e inovar das nações.
Thatcher não era rica nem defendia os privilégios de casta numa Grã-Bretanha que por tanto tempo acreditara nas distinções de berço e de sangue. Seu primeiro triunfo eleitoral decorreu do esgotamento do modelo de “República sindical” esculpido por sucessivos governos trabalhistas. Os britânicos não aguentavam mais a combinação de estagnação e inflação oferecida por social-democratas presos nas teias dos compromissos sindicais. Thatcher erguia o estandarte do “capitalismo popular”, uma ideia que renovou o Partido Conservador e década e meia depois, com o advento de Tony Blair, acabou provocando uma reinvenção vital do Partido Trabalhista.
Segundo uma lenda persistente, Thatcher e Reagan inauguraram o “neoliberalismo”. Em 1964 os gastos públicos britânicos representavam 38% do PIB. Durante a “era Thatcher”, entre 1979 e 1990, retrocederam de 45% para 39% do PIB. Em 2009, no ponto de partida da crise atual, estavam de volta à marca dos 48%, perto do recorde histórico, atingido em 1975. Hoje giram em torno de 43%, ainda acima do patamar thatcherista. Nenhuma utopia sobre o Estado mínimo tem o poder de fazer a História retroagir aos anos 1920, suprimindo o Estado de bem-estar erguido paulatinamente desde a Grande Depressão. Essa “coisa de sociedade” certamente existe, mas essa coisa de “neoliberalismo” não passa de uma fraude intelectual primitiva.
A dinâmica política das sociedades abertas articula-se como um debate incessante sobre os argumentos de Thatcher e de Obama. O capitalismo contemporâneo diferencia-se, no espaço e no tempo, ao sabor das oscilações eleitorais entre o “partido do indivíduo” e o “partido da sociedade”. Dois anos depois da entrevista de Thatcher à Woman’s Own, a queda do Muro de Berlim assinalou o colapso do “socialismo real”. O sistema soviético não tinha lugar nem para o indivíduo nem para a sociedade – mas unicamente para um Estado totalitário que sufocava tanto a criatividade individual quanto os direitos sociais.
Dominic Phillips, um jornalista de esquerda que pedia a cabeça de Thatcher durante a greve dos mineiros de 1984, escreveu o seguinte, um quarto de século mais tarde: “Ainda odiamos Margaret Thatcher. Mas ela me legou ambição e oportunidade. E não só a mim. Aprendemos que nossa carreira profissional era nossa responsabilidade mesmo. E, por isso, também a agradecemos”. Desconfio que ela emolduraria esse elogio de alguém que acredita nessa “coisa de sociedade”, preferindo-o às homenagens convencionais dos estadistas.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 11/04/2013