"Todo o trabalho intelectual e artístico tem mais sucesso na mente da multidão, quando a multidão sabe que, algures por detrás da grande obra, ou do grande embuste, se encontra uma pila e um par de tomates." Palavras de Harriet Burden, a personagem central de Mundo Ardente (ed. Dom Quixote, 463 págs., €22,90).
O sexto romance de Siri Hustvedt conduz os leitores ao universo de uma artista plástica que, menosprezada no meio intelectual nova-iorquino, põe em marcha um plano arrojado: oculta a identidade e esconde-se por detrás de três homens que assinam e expõem o seu trabalho, com o intuito de desmontar preconceitos vigentes.
Deixemos agora o alter ego da autora e passemos à própria, com quem a VISÃO conversou no Bairro Alto Hotel, em Lisboa. As calças de fazenda, os sapatos de salto raso e a ausência de acessórios conferem-lhe um estilo casual chic e realçam o seu porte alto, magro e, aparentemente, frágil. "Não quero que isto soe como banal, mas gosto muito de cá estar", admitiu, no final da entrevista.
Quando vem a Portugal, sente-se em casa (a última vez foi em novembro, para o Lisbon & Estoril Festival, acompanhada pelo marido, o escritor Paul Auster, e a filha, a cantora Sophie Auster): "Os portugueses têm bom coração, não são nervosos, desagradáveis e competitivos." Ao longo de 40 minutos e sem papas na língua, contou-nos o que pensa de mundos que conhece bem. Arte.
Escrita. Neurociência. Psicanálise.
Temas recorrentes nos seus livros, onde coabitam múltiplas vozes, de forma tão fluida quanto ambígua, por ser assim, acrescenta, "que tocamos a profundidade das coisas".
Por trás de um grande homem está sempre uma grande mulher. É este o seu lema?
Quando escrevo, mergulho nas personagens e torno-me nos seus múltiplos eus. Associar um nome masculino a uma criação artística, realça-a. Se a autoria for feminina, denigre-a. Não tenho dúvidas de que isto existe e está longe de acabar. Numa assinatura, as iniciais são uma maneira de esbater o género.
As suas heroínas, ou alter egos, refletem isso?
Escrevi duas vezes como homem. No primeiro romance, Iris (anagrama de Siri) veste-se de homem, é a armadura dela. Em Elegia para um americano, Burton veste-se de mulher e o narrador descreve-o como um homem que está a voltar a si. Os meus livros estão cheios de transformismo (vestir-se como sendo do sexo oposto). Esta é a primeira vez que a história é contada através de vinte vozes.
As heroínas submissas continuam em alta. Basta lembrar o estrondoso sucesso de As Cinquenta Sombras de Grey.
[Altera a expressão e faz uma pausa, antes de responder] O sucesso dessa obra está além da minha compreensão! Neste livro quis criar uma personagem colossal. Um monstro, não no sentido de Frankenstein, antes alguém que não cabe em nenhuma categoria. Harriet (ou Harry) foi antecedida por Margaret Cavendish, a poetisa, encenadora e filósofa naturalista do século XVII, com quem a personagem se identifica, e que foi praticamente rejeitada no seu tempo.
Se vivesse noutro tempo, seria não um monstro mas uma bruxa destinada à fogueira.
No ensaio O Meu Pai/Eu Mesma menciono a relação entre a Bruxa e Joana d'Arc, feita pela antropóloga Mary Douglas. Há um momento [em O Mundo Ardente] em que Harriet diz: "Na vizinhança chamam-me bruxa. Eu aceito."
Lançou a sua obra no atelier de Joana Vasconcelos, o que vê na obra dela?
Gosto particularmente das peças em que usa o croché, muito feminino. Há muita coragem no que ela faz.
Teve um irmão imaginário e fantasiava ser rapaz. Ser mulher ainda é como usar corpete?
[Sorriso enigmático] Surpreende-me como é que a cultura ocidental insiste em associar a masculinidade à mente e a feminilidade ao corpo, na vida pública, doméstica, emocional e pessoal. Não acredito na visão cartesiana, que separa corpo e mente.
Como lidou com isso, durante o longo processo de tratamento da enxaqueca e das convulsões com causa indefinida, após a morte do seu pai?
É um problema crónico que controlo relativamente bem. Aprendi exercícios de relaxamento profundo, para aliviar a dor. As auras são interessantes e não me importo de tê-las. Creio que o envelhecimento e as mudanças hormonais tiveram um efeito positivo nas dores de cabeça. Durante muito tempo eu fui controlada por convulsões, tive uns cinco episódios. A minha neurologista leu A Mulher Trémula ou Uma História dos Meus Nervos (não ficção, 2010), concorda comigo: os diagnósticos foram sempre ambíguos.
Ambiguidade é um termo presente em todas as suas obras. Que valor tem para si?
"É o meu chamamento estético e intelectual. Acredito que a complexidade da natureza humana não cabe num único modelo teórico e situa-se em zonas focadas de ambiguidade. O mesmo problema é visto de múltiplas perspetivas e não há uma só resposta, é fascinante."
A psicanálise e a neurociência marcam presença constante no seu trabalho. Porquê?