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sexta-feira, 7 de junho de 2013

Nove em cada dez crimes graves ficam impunes no Brasil....



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"Impunidade relativa aos crimes mais graves alcança 92%"
Raízes do imobilismo político na segurança pública
Por Luiz Eduardo Soares
(Antropólogo, cientista político e escritor, professor da UERJ e ex-secretário nacional de segurança pública)
A sociedade brasileira tem sido capaz de promover transformações profundas nas mais diversas esferas de sua experiência coletiva, mas permanece inerte e impotente ante alguns problemas históricos que persistem, entre os quais a insegurança pública.
Cerca de 50 mil brasileiros são vítimas de homicídios dolosos, anualmente, dos quais apenas 8%, em média, são esclarecidos e um número bem menor chega a ser julgado e condenado[1]. Portanto, a taxa de impunidade relativa aos crimes mais graves alcança o espantoso patamar de 92%. Somos o segundo país mais violento do mundo, considerando-se os números absolutos referentes aos crimes letais intencionais. Examinando o baixíssimo índice de esclarecimento, um observador poderia ser instado a deduzir que o Brasil é o país da impunidade. Não é verdade. Temos a terceira população prisional do mundo, abaixo apenas da China e dos Estados Unidos, e um dos mais velozes crescimentos da taxa de encarceramento do planeta: havia 160 mil presos em 1995; hoje, são 540 mil.
Segundo pesquisa da professora Luciana Boiteux, a partir de dados fluminenses, o foco prioritário do encarceramento, nos últimos seis anos, são jovens pobres do sexo masculino, de baixa escolaridade, frequentemente negros, capturados em flagrante e condenados à privação de liberdade por negociarem substâncias ilícitas sem uso de arma ou prática de ato violento, e sem vínculo com organização criminosa. Esse grupo responde por 65% das prisões efetuadas no período. Estudiosos crêem que os resultados têm valor nacional, o que significa o seguinte: o país está prendendo transgressores não violentos que operam no varejo do tráfico de drogas, relegando os crimes mais violentos à impunidade. Registre-se que custa R$ 1.500,00 ao mês esse método irracional e injusto de tornar os jovens piores, empurrando-os para uma carreira marginal, induzindo-os a ingressar em organizações criminosas. As consequências do encarceramento nesses casos são desastrosas para suas vidas e destrutivas para a sociedade. Ou seja, gastamos muito para armar uma bomba relógio contra a segurança pública –como a crise paulista está demonstrando.
Do lado das instituições policiais, a situação também preocupa. Além da baixa capacidade investigativa demonstrada pela polícia civil –cujas lideranças, paradoxalmente, empenham-se em pressionar o Congresso para que seja aprovado um projeto de emenda constitucional impedindo o Ministério Público de realizar investigação criminal–, multiplicam-se casos de corrupção envolvendo seus membros. Nas polícias militares não é diferente. Além disso, são frequentes as acusações de que os milhares de autos-de-resistência que se acumulam, em todos os estados da federação, ocultem inúmeras execuções extra-judiciais. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, entre 2003 e 2011, houve 9.231 mortes provocadas por ações policiais. As máfias policiais, chamadas milícias, continuam expandindo seus negócios e os territórios sob seu domínio. O número de desaparecimentos continua crescendo, ano após ano.
Nos últimos anos, alguns estados lograram reduzir os homicídios, mas os ganhos foram neutralizados, no agregado nacional, pelo agravamento da violência em outras regiões do país. Além disso, avanços locais revelaram-se efêmeros e foram sucedidos por rápida degradação. Impasses persistem onde programas inovadores conquistaram resultados expressivos e amplo apoio popular. Tome-se o caso das UPPs no Rio de Janeiro: como transformar o projeto em política pública, dotando-o de sustentabilidade e universalidade, sem promover profunda reforma policial? Por isso, convivem, no Rio, boas práticas com a propagação das milícias, da corrupcão em larga escala e da brutalidade letal. O assassinato da juíza Patricia Acioli por policiais, em 2011, é a manifestação trágica e extrema das contradições.
Na raiz dos problemas está a arquitetura institucional da segurança pública, estabelecida pelo Artigo 144 da Constituição, que atribui à União poucas responsabilidades (salvo em crises), não confere qualquer autoridade relevante ao Município (na contramão do que ocorre nas demais áreas) e concentra praticamente todo o poder nas polícias estaduais, ordenadas segundo modelo que fratura o ciclo de trabalho e, por seu desenho incompatível com as funções atribuídas, condena as instituições à ingovernabilidade e à mútua hostilidade.
Apesar do amplo consenso entre profissionais da área quanto à irracionalidade da arquitetura institucional, em especial do modelo de polícia, nenhum passo objetivo foi dado em direção à reforma[2].
Nesse contexto em que o desempenho é negativo, as estruturas não potencializam as competências profissionais mobilizadas, a maioria dos policiais desaprova o modelo institucional e a sociedade manifesta sua inconformidade, sistematicamente, ante a gravidade da insegurança pública, por que não logramos, enquanto Nação, promover as mudanças profundas e inadiáveis? Por que os poderes públicos têm sido incapazes de encetar uma iniciativa concertada? É fato que há lobbies atuantes de delegados e oficiais contrários a mudanças. É verdade que o consenso mínimo não foi negociado entre todos os atores pertinentes e que a sociedade mantém-se crítica, mas não se envolve na formulação de alternativas. Mesmo assim, permanece enigmático o imobilismo das lideranças políticas ante a agenda urgente da segurança.
Visando lançar as bases de uma análise mais profunda que ofereça hipóteses explicativas sobre a inércia nacional diante da complexidade da insegurança, convido os leitores a uma reflexão multidimensional sobre nossa história recente.
***
Ingressamos em 2013, o vigésimo quinto ano de vigência da Constituição cidadã, em cuja letra instituiu-se o Estado democrático de direito, consagrando-se, formalmente, o vasto repertório de conquistas históricas que a resistência à ditadura acumulara, as negociações políticas viabilizaram e o árduo aprendizado coletivo ensejaram. Não é pouca coisa: um quarto de século de experiência em novo ambiente normativo, sob nova moldura institucional, recuperando o tempo perdido, atando linhas de tradição rompidas pelo arbítrio do regime militar, calibrando expectativas que idealizaram a transição, e abrindo picadas e horizontes para os complexos e inusitados desafios contemporâneos na arena global.
Esse período foi curto, em perspectiva histórica, porém intenso e denso. O tempo compactou-se e acelerou transformações estruturais, promovendo uma espécie de vertigem ontológica, cujas manifestações alcançam a sensibilidade, os valores, as dinâmicas inter-subjetivas, as relações sociais e os processos econômicos. As temporalidades na vida social não são unívocas, unidimensionais e contínuas, nem correspondem a mensurações isomórficas e universalizáveis. No Brasil, entre ontem e hoje, um rio caudaloso de mudanças –das quais ainda não nos demos conta, suficientemente– carregou-nos para longe de nós mesmos ou do que supúnhamos ser como nação e do que pensávamos ser como atores. O fluxo arrastou cenários, embaralhou papéis e está exigindo que reescrevamos a dramaturgia para a sociedade das próximas décadas numa linguagem arejada, liberta de velhos fantasmas e de suas correntes enferrujadas. Certamente, há os dilemas atávicos que persistem. Contudo, até mesmo eles assumem novas formas e significações no novo contexto. Os problemas permanentes e endêmicos também exigem descrições em novas linguagens. Onde está a fonte fresca de água cristalina para a língua jovem estalar a pronúncia da palavra livre? Procuremos. Mapas não há. Far-se-ão, a posteriori. Bússolas não há. Entretanto, temos a razão –é o que dizem–, sobretudo a razão argumentativa. E alguma coragem cívica, alguma ousadia intelectual –creio eu. Ou não teríamos chegado até aqui vivos, criativos, com esperança, e com bons motivos para cultivá-la. Adiante, portanto.
O capítulo anterior à conjuntura democrática pós-1988 não se esgotou no regime político autoritário. Foi marcado por vários processos sócio-econômicos e culturais relevantes, em especial por um fenômeno anterior a 1964, que completou seu ciclo sob a névoa discricionária. Refiro-me à migração interna e ao deslocamento do eixo de gravidade nacional do campo para a cidade. Importa destacar mais do que a natureza do processo, a escala, a velocidade e as implicações. O Brasil era 75% rural, nos anos 1950, e se tornaria 75% urbano, ao longo dos anos 1970. Sociologicamente, deu-se um deslizamento de placas tectônicas de efeitos extraordinários. O saudoso professor Vilmar Faria chamava a atenção para o caráter excepcional do fenômeno, que só encontrava paralelo na União Soviética dos anos 1930. A magnitude demográfica e a concentração temporal conferiram ao caso brasileiro sua significação singular. Acredito que não seria leviano afirmar que as ciências sociais brasileiras não chegaram a aplicar-se com a atenção necessária sobre as consequências dessa transformação, considerando as condições nas quais se realizou. Ou melhor, não cessou de fazê-lo –uma vez que os impactos da “urbanização acelerada” projetaram-se sobre praticamente todas as questões sociais subsequentes–, subestimando, no entanto, a conexão entre seus objetos e a profundidade da desestabilização identitária e da desorganização das referências valorativas e prescritivas provocada pela transição migratória.
Passar a viver na cidade implica revolucionar as relações de trabalho, envolver-se em diferentes ambientes normativos e em distintas experiências com o tempo e a natureza, submetendo-se a diferentes disciplinas e rotinas. Mudar para o meio urbano implica também redefinir a relação com a religiosidade, com os rituais e com a família –a mudança incide sobre o sentido que se atribui ao conceito de família e ao modo como se vivenciam os laços familiares. Transformam-se os significados da propriedade, os vínculos com a terra, a casa, a vizinhança, os outros, assim como as modalidades de consumo. Instalar-se na cidade tende a provocar a renúncia a tradições, a pautas morais, a concepções sobre autoridade. O convívio com a complexidade urbana promove a mudança na visão relativa a justiça e lealdade, nas percepções a respeito das instituições públicas e nas próprias ideias sobre a distinção entre público e privado. Mudam comportamentos, sentimentos, imagens de si e do outro, crenças, compromissos, gramáticas (individuais e coletivas) de construção da memória, projetos para o futuro, critérios de juízo sobre certo e errado, belo e repulsivo, verdadeiro e falso, aceitável e inaceitável, natural e anti-natural, honra e desonra, masculino e feminino, superior e inferior. Nessa travessia, a impressão frequente é de que as “garantias ontológicas” –as colunas da fé que sustentam o mundo em que se crê, a que se dá o nome “realidade”—fenecem, porque desmoronam as estruturas de plausibilidade em que se apoiam as convicções pessoais. Nesse quadro, tudo pode ruir. A segurança mítica do universo parece ingressar numa zona instável, como se oscilasse, ameaçando a solidez de tudo o que há. Vive-se a angústia do colapso iminente. Não se trata (apenas) do colapso financeiro, com ruinosas consequências para a própria subsistência, quando as contas não fecham, empregos não há ou o trabalho (informal) não rende o indispensável. Trata-se de uma insegurança mais radical.
Claro que há o outro lado das migrações internas e da urbanização vertiginosa. A condição social que corresponde ao ponto de partida da viagem para a cidade não deve ser idealizada. A cidade só atrai se e na medida em que o campo expulsa; a cidade seduz porque o campo representa miséria e estagnação; a cidade brilha porque a tradição pode estar sendo vivida como obscurantismo opressivo; a cidade torna-se convidativa porque, no meio rural, o trabalhador é explorado; migrar afirma-se como opção porque ficar deixa de ser uma possibilidade ou porque, na ausência da reforma agrária, a fronteira agrícola permanece bloqueada para imobilizar a força de trabalho e beneficiar a especulação e a grilagem. Em outras palavras, a desestabilização radical provocada pela urbanização acelerada traz consigo a contraditória promessa da libertação. A perda das referências eventualmente significa quebrar as cadeias. A dissolução de convenções também representa a expansão do cardápio das escolhas e mais espaço para o exercício da individualidade. Economicamente, dependendo das circunstâncias e dos desdobramentos, pode implicar melhoria da qualidade de vida e ampliação de expectativas.
Contemplados os dois lados desse processo, conclui-se que, independentemente das avaliações que a posteridade autoriza, a sociedade brasileira foi sacudida por transformações muito profundas, cujos efeitos alcançaram o mais recôndito da vida privada e o domínio mais remoto da experiência de si dos sujeitos. Observe-se, ainda, que o sofrimento precipitado pela violência do fenômeno não encontrou a compensação de uma trama institucional tecida por um generoso Welfare State. O Brasil atravessou a tormenta sob ditadura –sem canais orgânicos de representação popular, portanto–, cuja política econômica promovia a concentração de renda e o aprofundamento das desigualdades.
Os aspectos negativos desse quadro não foram amenizados pelo declínio progressivo do regime militar, ao longo da segunda metade da década de 1970 até os primeiros anos da década seguinte, uma vez que o fator provavelmente decisivo para o enfraquecimento político da ditadura era a crise econômica, cujo impacto sentia-se mais intensamente nas camadas populares. A surpreendente votação do partido de oposição, o MDB, em 1978, corroeu a força do regime, politicamente, mas talvez expressasse mais inconformidade com a decadência econômica do que indignação com a tirania, ainda que este componente estivesse presente. De qualquer forma, a leitura democrática impôs-se graças à hábil operação das lideranças oposicionistas, que disputaram com vigor a tradução pública dos resultados eleitorais.
A tímida “descompressão” política, iniciada pelo general Ernesto Geisel, sucedida pela “abertura lenta e gradual”, ainda sob a regência de Golbery do Couto e Silva, e depois pela estratégia da transição negociada, já no governo do general João Figueiredo, encontrou nas eleições para os executivos estaduais de 1982 uma oportunidade de inflexão e fortalecimento. O avanço obtido em 1982  seria complementado na campanha por eleições “diretas já” para a presidência da República, a despeito da derrota do projeto de Lei no Congresso Nacional. O amplo apoio popular à “emenda Dante de Oliveira” pavimentaria o caminho de Tancredo Neves ao Palácio do Planalto, que o destino obstou na undécima hora.
Inaugura-se um período voltado para a solução do impasse da dívida externa e da inflação, cujos efeitos perversos se derramavam sobre o conjunto da sociedade, desorganizavam o Estado, em todos os níveis, e bloqueavam a retomado do crescimento ou eventuais arremedos de política social distributivista. Anos difíceis que formariam a chamada “década perdida”. As desigualdades sociais competiam com o controle da inflação pelo privilégio de ocupar o centro da agenda pública. O dilema teria de aguardar o Plano Real, em 1994, nos governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, para que o nó da moeda fosse desatado, o país se tornasse governável e estratégias distributivas voltassem a reclamar prioridade, agora com chances de efetiva e consistente implementação, como demonstraria o governo Lula. Permaneceram, entretanto, (relativamente) excluídos da pauta (ou insuficientemente incluídos) alguns temas chave para o presente e o futuro, como a sustentabilidade e a segurança pública. Mas este não é o momento de focalizá-los. Convém estender um pouco mais a contextualização histórica.
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