Existe “Brasília” e existe Brasília, não confunda
Josias de Souza
A Capital da República completa 55 anos nesta terça-feira (21). E a melhor homenagem que se pode render à cidade é a proclamação da existência de duas brasílias. Existe Brasília, o lugar, e existe “Brasília”, a entidade supra-geográfica. Conheço ambas por dentro. E posso assegurar: Brasília não se confunde com “Brasília”. Sem aspas, é coletivo majestático. Com aspas, é coletivo pejorativo. “Brasília” dá a Brasília uma péssima e imerecida fama.
Lembro da ocasião em que Brasília entrou na minha vida. Criança, perdi momentaneamente o pai para a alucinação de JK. Serralheiro, ele deixou mulher e filhos na periferia de São Paulo e foi ajudar a tirar do papel as obras de arte de Niemeyer. Só buscou a família depois da inauguração. Cheguei à nova capital com seis anos.
Para os servidores públicos arrancados da orla marítima do Rio, Brasília era o inferno banhado por um oceano de poeira. Para o peão que içou a família dos fundões medonhos de São Paulo, a cidade era um mar de oportunidades. Impressionavam-me mais as boas escolas públicas do que o pó vermelho.
Foi graças a essas escolas que pude perceber Brasília como parte de um Brasil fervilhante, em que o stalinismo de Niemeyer se misturava ao reacionarismo de Nelson Rodrigues, ao gênio de Guimarães Rosa, à Bossa Nova, ao Cinema Novo, à poesia concreta… Hoje, imagino que fantástica unidade estilística teria o Brasil se a ditadura militar não tivesse atrapalhado esse surto redentor.
Só na adolescência tive consciência plena da existência da outra “Brasília”, espécie de marco das desilusões nacionais, gênese do país da inflação crônica e da nação refém das empreiteiras. Jovem jornalista, comecei a percorrer as entranhas obscuras do poder exercido nessa cidade com aspas.
Já estava tudo lá: o “quanto eu levo nisso?'' como estilo de vida, o lobby como regime de governo, o patrimonialismo como programa de ação, a licitação mutretada como método de enriquecimento… A diferença é que, hoje, todas essas mazelas são praticadas em escala industrial.
Diz-se que uma cidade nascida de um imenso canteiro de obras plantado no meio do nada, com máquinas pesadas movimentando-se sobre a lama, não poderia dar em outra coisa. Tolice. A Lava Jato está aí para demonstrar que grandes obras públicas terminam em falta de escrúpulos em qualquer outro lugar do Brasil.
Aliás, a “Brasília” aética é uma eterna forasteira em Brasília. Ela vem de todos os lugares do Brasil, rouba (ops!) a cena de terça a quinta-feira, e volta às origens. Deixa para trás uma Brasília habitada por duas gerações de pessoas que sonham com a chegada do dia em que poderão festejar o aniversário de sua cidade sem o incômodo das aspas.
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