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domingo, 4 de outubro de 2015

Ensaio sobre Direita e Esquerda / Expresso

Aos pés da direita, nas mãos da esquerda 

A única hipótese de haver governo estável seria o PS entrar em acordos parlamentares com a coligação de direita. Alinhar-se em vez de aliar-se. Mas esse cenário é improvável com Costa. Na verdade, todos os cenários são improváveis com Costa. Porque o improvável agora é Costa, que só fica vivo no PS se aprender a respirar espetado nas costas como um faquir. A vitória do PSD/CDS é grande mas, sem mais, só chega para um governo provisório. Se Passos era o Lobo Mau, Costa foi o Poucochinho Vermelho. 

A campanha do PàF foi muito boa, a campanha do PS foi muito má, etc. e tal mas o assunto agora não é o balanço do que foi, é a balança do que será. A configuração do Parlamento é tão polifónica quanto polimórfica. Não há evidências. Mas só o PS pode fazer com que este governo não seja ele próprio a duodécimos, capaz de mugir mas não de mungir. Mesmo que o cálculo dominante seja sobre a melhor forma de chegar às próximas eleições, pelo que nenhum acordo será mais do que o prelúdio de uma discórdia.

O António Costa de 2015 aprendeu com o Pedro Passos Coelho de 2013: quando toda a gente pensava que a demissão era óbvia, não se demitiu. No caso de Costa, o calculismo de ficar é engolir o veneno cuspido contra Seguro. Mas isso também só é talvez possível porque o PS não tem sucessor óbvio. Seguro era sombra de Sócrates, Costa a sombra de Seguro, mas quem é o desafiador de Costa? Há vários que podem emergir, o que é o mesmo que dizer que nenhum estava imerso no partido à espera da oportunidade. E o PS sabe que a possibilidade de guerra civil é também um exercício de autodestruição, porque de cisão.

Neste mapa astral, é admissível que António Costa, aguentando a contestação no partido e a vingança daqueles que apeou, seja arrepanhado internamente entre uma postura de derrube e uma posição institucional. O presidente do partido, Carlos César, será importante no processo. E o discurso de derrota de António Costa, sendo surreal, foi suficientemente ambíguo para dar para tudo. Mesmo tudo. Incluindo o nada.

Se o PS aceitar negociar com o PSD/CDS termos do programa do governo, será possível negociar o Orçamento do Estado. Isso implica cedências de Pedro Passos Coelho, que terá de perder a virgindade na falta de vontade (e de jeito) para negociar no poder com quem lá não está. Mas também o discurso de Passos, de vitória, revelou mais disponibilidade para ir ao encontro do que para ir de encontro. Mesmo que, no mesmo discurso, a reforma das pensões tenha sido imediatamente citada. Lembra-se do buraco anual de 600 milhões de euros na Segurança Social?...

Este cenário de cedências recíprocas teria o apoio do Presidente da República, embora fendesse o PS e levantasse a demais esquerda. Uma negociação destas seria dura, até porque estaria na mesa sempre a hipótese de a coligação de direita abdicar e entregar o governo a uma coligação de esquerda, que aliás pode cair na tentação de a querer: seria outra forma de apressar eleições antecipadas, que aliás reforçariam a direita para a eleição seguinte. Como Cavaco em 84/86. Mas por difícil que seja, e é, o cenário de acordos com o PS é o único que pode dar estabilidade mínima. Sem isso, pode haver governo, não haverá governação.

É por isso que a estabilidade está nas mãos da esquerda. Mesmo que o país tenha deposto a sua vontade aos pés da direita. Diga-se o que se disser, o PàF teve uma grande vitória, depois de quatro anos de austeridade, injustiça social e aumento da pobreza e da desigualdade. O sucesso apregoado dificilmente escapa à mistificação, quando se depara com uma dívida pública que permanece próxima do insustentável, quando a retoma económica está a ser feita semeando os mesmos desequilíbrios macroeconómicos de outrora, quando o desemprego desce à custa de subsidiação do Estado e da emigração, quando o emprego cresce sobre precariedade e salários baixos. Mas o programa que não existe, da coligação que não tinha nome, liderado pelo homem que se escondeu, ganhou. E ganhou com uma margem tão grande face às expectativas de há tão poucos meses que não se pode dizer que foi só por culpa do PS. O povo quis eleger Passos. E para uma votação desta dimensão, muitas das vítimas da austeridade e dos excluídos terão votado Passos. Pobres e ricos votaram Passos. Pensionistas votaram Passos. Funcionários públicos votaram Passos. Jovens votaram Passos. Passos teve uma vitória incrível.

Como incrível foi o resultado do Bloco de Esquerda. O partido que ia acabar acabou por ter a maior votação de sempre, ganhou votos ao PS, ultrapassou o PCP e ainda viu os dissidentes encaminhados para o Livre serem dizimados. Catarina Martins fez uma campanha brilhante e afirmou-se na liderança de um grupo político desfeito em grupos políticos que, assim parecia, tinha dois líderes pelo que não tinha nenhum.

O PS lutou à esquerda contra a direita e perdeu à esquerda e à direita. O PSD/CDS criou uma nova lei da física e passou a ser o único governo revalidado por um eleitorado sob a austeridade que ele próprio impôs. Isto diz muito do povo e tudo da sua vontade, incluindo da falta de vontade de desafiar o conhecido, mesmo que o conhecido seja austeridade. Passos disse o que traria: manter o que trouxe. O resto foi perceção, mais que informação. O povo não teve o que quis, mas quis o que terá. Se há alternativa, o povo não crê nela. E se o PSD/CDS não pôs caras nos cartazes, é porque entende que o povo não gosta dos seus líderes, mas gosta do que eles fazem.

Numa eleição em que a adesão recuperou, o que é uma excelente notícia, o eleitorado escolheu o vencedor e o vencido, mas o vencedor não acolhe o domínio vitorioso e o vencido não recolhe para o dominó de derrota. A tentação do derrube imediato será grande, mas é um abismo, para si próprio e para a pressão externa, política e financeira, sobre o país. O Presidente da República será árbitro predominante: este e o próximo. Porque a direita PàF, o BE pof!, os pequenos partidos PAM! e o PS puf…

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