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quinta-feira, 3 de junho de 2021

O conto do "candidato moderado" (J R Guzzo)

Prepare-se para lhe oferecerem, a partir de agora e até o dia das eleições para presidente de 2022, o conto do vigário do ano: há um “candidato moderado” na disputa, vão lhe propor os vigaristas, e ele se chama Luiz Inácio Lula da Silva. É como um desses telefonemas em que uma moça educadíssima, com voz de artista de novela e alguma explicação muito coerente, diz que você tem um crédito de R$ 1,5 mil a receber por conta de um erro de lançamento do banco — para receber, basta mandar a senha do seu cartão etc., etc., etc. O crédito falso é a história de que Lula virou um modelo de tolerância, de respeito pela opinião alheia e de espírito democrático. A senha do cartão é o seu voto para presidente. Estão querendo convencer o público pagante, para começo de conversa, de que Lula está botando na caçamba do seu caminhão uma quantidade incalculável de votos do “centro” — é exatamente por isso, aliás, segundo nos dizem os analistas de eleição e os prêmios Nobel de ciência política, que as “pesquisas de intenção de voto” estão dando essa montanha de votos para Lula. Não existem tantos lulistas assim no Brasil nem no mundo; de onde estariam vindo, então, os números publicados pelos institutos? Estariam vindo, explica a moça do telefone, dos brasileiros que não querem “extremos”. Muitos dos quase 58 milhões que votaram no presidente Jair Bolsonaro, diz ela antes de pedir a senha, se cansaram do seu radicalismo e estão à procura de um sujeito equilibrado, safo e boa gente para 2022. Esse sujeito é Lula. Ajuda um colosso, é claro, o fato de que os institutos de pesquisa, a esta altura do jogo, não precisam documentar suas descobertas com nenhum elemento de ordem técnica; isso a lei só exige para depois, já mais perto das eleições. Por enquanto é um vale-tudo em que qualquer um pode dar como verdade matemática, virtualmente, qualquer número que lhe passar pela telha, sobre qualquer candidato, real ou imaginário. Outro passo para criar a fábula de que há um novo Lula na praça, diferente daquele que ameaçava chamar “o exército do Stédile” para castigar os seus inimigos, e vivia dizendo que o problema da Venezuela era ter “democracia demais”, é incluir seu nome entre os possíveis “Bidens brasileiros”. Sim, acredite se quiser: há gente falando, a sério, que o mundo político nacional está preocupadíssimo em encontrar esse possível cruzamento de Atlas com São Francisco de Assis, ou o presidente ideal para qualquer país do planeta — e Lula poderia ser um belo Biden made in Brazil. Até agora, porém, o comercial mais ambicioso que o Lula moderado pôs no ar foi a visita que fez a Fernando Henrique — mais o aperto de mão que recebeu do seu antecessor e, sobretudo, a inscrição do inimigo de cinco minutos atrás como seu mais recente cabo eleitoral para 2022. Foi um show de “equilíbrio” — ou, talvez mais propriamente, de equilibrismo. Fernando Henrique, ao fim desse último número, declarou inclusive que vai votar em Lula no segundo turno, na disputa com Bolsonaro. (FHC ainda achou uma boa ideia fazer um pouco de humor: fez questão de esclarecer aos companheiros tucanos que só votaria em Lula se não houvesse nenhum “candidato do PSDB” na disputa final. Poderia ter dito que votará num nome do seu partido se ele aparecer de disco voador no dia da eleição; daria na mesma.) A sinceridade dessa “moderação” centrista de Lula é exatamente a mesma da sua aliança com Fernando Henrique. Lula vai lá, tira retrato e aparece no jornal; ninguém faz o mínimo esforço para lembrar que ele passou os últimos dezenove anos, desde que assumiu a Presidência da República em 2002, dizendo que recebeu uma “herança maldita” do antecessor. Em nenhum momento, desde então, retirou uma sílaba da acusação-insulto que fez; ao apertar a mão de FHC, outro dia, a “herança” continuava “maldita”. Qual é o problema? A hipocrisia é o mandamento número 1 da vida política brasileira; sem ela ninguém vai a lugar nenhum. Do mesmo jeito que Lula passou a vida falando da “herança maldita”, o PT passou todo o governo de Fernando Henrique exigindo o impeachment; sua palavra de ordem número 1 era “Fora, FHC”. Lula, até agora, continua convencido de que ele e seu partido agiram com perfeição. O homem “de centro” que circula hoje na política brasileira jamais admitiu a vitória do adversário nas eleições presidenciais de 1994; só aceita as derrotas eleitorais porque não tem força militar para virar a mesa e porque o seu dispositivo MST-CUT-OAB-etc. não consegue assustar uma galinha de granja. Foi a favor de todas as manobras frustradas de golpe contra o homem de quem hoje aperta a mão. Sua ideia de liberdade de imprensa é o “controle social da mídia” pela máquina sindical do PT. É contra a mínima reforma no sistema apodrecido da política brasileira de hoje; tudo tem de ficar absolutamente igual ao que é, sempre. Sua democracia ideal é a da Venezuela.

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