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domingo, 22 de abril de 2012

"Alice no país de Freud, Marx ou Hegel"


COLUNAS 

Quarta-feira, 16/1/2002
Alice no País de Freud, Marx ou Hegel
Paulo Polzonoff Jr 



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Daniela Mountian
Existem leitores e leitores. Os primeiros, que são a grande maioria, quero crer, lêem por um estranho instinto que os guia página após página, até o êxtase final. Outros, lêem por uma necessidade estranha de encontrar sentidos ocultos em cada uma das frases impressas. Ao último time pertencem toda uma gama de acadêmicos, guiados por gurus como Marx, Freud e Hegel. Eles infestam os departamentos das universidades com teses que anunciam descobertas as menos interessantes possíveis: uma visão primitiva do fluxo de pensamento em Ulisses, de Joyce; uma cosmovisão da influência política da prosa dickensiana na União Soviética durante o regime stalinista; ou o falo e o totem nas Líricas de Camões. São livros cheios de aspas e citações nos mais remotos dialetos, que se sustentam por uma visão sempre específica demais sobre determinado parágrafo de tal página do romance tal. É como se, de cada obra-prima, brotassem obras-parasitas, que acabam, muitas vezes, por matar o hospedeiro.

Um dos casos mais explícitos é Lolita, o clássico de Vladimir Nabokov. O livro conta a história de um professor universitário que se apaixona perdidamente por uma menina de apenas doze anos. Pior: ele é seduzido por ela. Lolita é um verdadeiro demoniozinho, com consciência plena de cada ato seu. Claro que o professor não é nenhum santo; tanto que ele acaba por matar a mãe da menina quando ela descobre o flerte entre os dois. Nabokov, contudo, que não é bobo nem nada, tratou de dar uma explicação, logo nas primeiras páginas do livro, para a fascinação do professor Humbert Humbert pela pequena e lasciva Lolita: ele teria se apaixonado perdidamente, na puberdade, por uma menina que morrera dias depois de trocarem carícias, em algum lugar da Europa.

O livro, como se vê, é um prato cheio tanto para freudianos, como para marxistas e para sociólogos de todas as tribos. Além disso, é matéria-prima para leituras cristãs, mulçumanas e até médicas. Não estaria exagerando se dissesse que é um dos livros mais discutidos do século 20. Os freudianos, obviamente, se atém ao comportamento sexual de Humbert Humbert e de sua amante-mirim. Eles criticam a explicação de Nabokov para o desvio, por assim dizer, do professor — o argumento do romancista seria pouco consistente do ponto de vista analítico. E toneladas e toneladas de papel são gastas para se explicar o comportamento de Nabokov de acordo com esta ou aquela corrente da psicanálise. Já os marxistas, estes, mentes geniosas capazes de enxergar um chifre em cabeça de cavalo a quilômetros de distância nas largas e geladas estepes russas, gostam de ver no romance de Nabokov toda a degeneração moral causada pelo capitalismo. Ainda mais em se tratando de um escritor de origem russa, que se tivesse crescido e desenvolvido sua narrativa sob os auspícios do regime vermelho, jamais teria escrito tamanha pornografia. Para os adoradores de Marx, Lolita seria a encarnação do demônio estampado na nota de cem dólares. Os sociólogos, estes gostam de dar explicações as mais estapafúrdias possíveis. Rir, nestes casos, é o melhor remédio para não se irritar. A última que li até que não era das piores, e dizia que o livro de Nabokov nada teria a ver com pedofilia; o romance seria um retrato da hipocrisia americana, já que, na viagem empreendida pelos amantes por toda a América, ninguém questiona o fato de aquele homem dormir com uma menina. Até que parece plausível, não fosse reduzir o romance a um tratado antropológico. Os cristãos, obviamente, condenam o livro, sério candidato a entrar para o próximo Index Librorium Prohibitorium, por suas cenas de sexo, por sinal, narradas com extrema delicadeza por Nabokov. Eu, particularmente, jamais esquecerei uma cena em que Lolita se senta no colo de Humbert Humbert enquanto ele lê jornal e.

Escrevi sobre Lolita para anunciar o mais recente edição de Aventuras de Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho, pela Jorge Zahar Editor (R$ 38,50), com as ilustrações originais de John Tenniel, e devidamente comentada pelo carrolliano Martin Gardner. O livro é enriquecedor do ponto de vista interpretativo. Jamais li, em toda a minha pequena vida, tantas notas inúteis.

Para quem não conhece e venha a se interessar pelo romance, As Aventuras de Alice no País das Maravilhas narra um sonho da pequena Alice numa terra imaginária. A divagação começa quando Alice decide seguir um coelho e entra na toca dele. Cai até o centro da Terra ou lugar próximo e lá conhece as mais estranhas criaturas, que estão sempre a se agredirem com piadinhas e trocadilhos. Já Através do Espelho conta uma viagem da menina por um... espelho! Lá ela se envolve num intrincado jogo de xadrez, também com criaturas estranhas, também com agressões mútuas. Para o comentador Martin Gardner, contudo, Alice... é mais do que uma história muito bem engendrada pela mente matemática de Carroll; é um verdadeiro Finnegans Wake do século 19. Por vezes, a impressão deste leitor foi de estar entrando na mente de Carroll e desvendando segredos nem por ele imaginados. Numa mistura de biografia com psicologismos fáceis, alguma erudição de enciclopédia e conclusões capazes de ligar a palavra guarda-chuva com uma civilização perdida no mar da Arábia, Gardner torna o livro de Carroll uma muralha intransponível, escrito, ao que parece, desde a primeira até a última linha, para ser um dos alicerces da literatura americana. Claro, como não poderia deixar de ser, na edição comentada faz-se alusões ao suposto envolvimento de Carroll com a garotinha a quem o livro foi dedicado.

Ler um livro sem este tipo de ruído (para usar um tipo de jargão que os comunicólogos adoram) é, por outra, uma experiência gratificante. As Aventuras de Alice... é uma obra-prima do nonsense, capaz de dar nó nas imaginações mais férteis. Esqueça os simbolismos matemáticos, a sexualidade sempre duvidosa de Carroll, a hipótese do consumo de drogas durante a criação do livro, as interpretações freudianas, marxistas, hegelianas, católicas ou protestantes, e tente ler o romance como uma história capaz de fazer os mais intrincados ziguezagues para se ir de a até z.

Não faço aqui, como podem pensar os mais precipitados, uma apologia da leitura retilínea, homogênea, pastosa e superficial. A mim me parece óbvio que livros como o de Carroll ou Nabokov (entre tantos) foram escritos com a tinta carregada da ambigüidade, e por isso mesmo é que são considerados grandes romances. A ambigüidade, contudo, permite muitas leituras individuais, e é nesse sentido que as leituras acadêmicas, seja de que corrente forem, são perniciosas. Porque reduzem o leitor-indivíduo a um leitor-seguidor, não raro membro de sociedades que se voltam para o estudo da arte numa espécie de tertúlia conspiratória sob os mandamentos deste ou daquele pensador. Quando nada há de maisindividual (quer chamar de egoísta? Pois chame) do que a arte. 


Paulo Polzonoff Jr 
Rio de Janeiro, 16/1/2002

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