terça-feira, 29 de maio de 2012
Uma rua como aquela*
postado por nadiakaku às 19:39
“Não é tão bom assim… Tem muito problema com vizinho, sabe?”
Era assim que minha mãe respondia às (muitas) pessoas que diziam “Você mora em uma vila!? Que delícia!”. Eu me surpreendia com as duas coisas: para uma criança, morar em uma rua sem saída era um sonho, só não imaginava que fosse para tantos adultos também. Quanto aos problemas com vizinhos…
Bom, tinha o seu De Paula, tenente do Exército aposentado que andava de bengala e ficava muito, mas muito bravo quando caía bola no quintal dele.
Estacionamento era um problema – havia mais carros do que vagas e uma discussão interminável sobre quem tinha direito de estacionar no “balão” no fim da rua (o equivalente a uma clareira, se ali fosse uma floresta, rs). Volta e meia um vizinho “trancava” o outro e o trancado tocava a campainha às cinco da manhã (“você pode tirar seu carro?”). Uns mais, ahn… (“folgados” é a única palavra, não adianta) jogavam a chave da janela – “tira aí”.
Dona Graci entrava na vila – estreita, claro, e cheia de crianças brincando – a toda “vula”, como se dizia na época, buzinando e contando que saísse todo mundo da frente. O apelido dado a ela pelos moleques da rua era “BipBip” (o Papaléguas).
O Paulinho também entrava correndo. Já o vizinho do Fusca azul celeste defendia que o balão (não lembro o nome dele) não era para estacionar, era para manobrar. Então fazia questão de entrar de frente e fazer mil e dois vaivéns com seu carro até deixá-lo de frente para a saída. Já a Gladys, com carta de motorista recente, ficava horas treinando entrar e sair de ré com o Corcel II branco do pai dela, o seu Fausto. Não era mesmo fácil dirigir ali.
Minha mãe ficava fula da vida com os vizinhos que levavam o cachorro para usar nossa calçada (gramada) como banheiro. E também com quem varria a própria sarjeta e, em vez de recolher o lixo – folhas, basicamente – o empurrava para a casa ao lado. Como a nossa era a penúltima casa – justo no balão! – também sobrava pra gente ali. E o pior, a boca de lobo no fim da rua vivia entupida e quando chovia, a água chegava na altura do joelho. As crianças achavam divertidíssimo.
Dona Deomina, avó de vários dos meus amigos que também moravam ali, organizava grupos para rezar o terço na casa dela às seis da tarde. Eu ia.
A Marilene, um pouco mais nova do que eu e vizinha de parede, estudava piano. A gente escutava tudinho – toda escala, todo exercício. O que significa que ela escutava a minha aula também… Nosso cachorro, o Achilles, coitado, latia muito quando sozinho e incomodava todo mundo. E a Dona Iolanda, vizinha do outro lado, não se conformava com as trepadeiras enormes que cobriam a parede lateral e, segundo ela, enchiam sua casa de formiga e lagartixa.
Envolvendo a vila havia uma chácara da TFP. O lado bom: era um bosque, lindo e refrescante. O lado ruim: eles marchavam e entoavam seus cânticos e palavras de ordem a noite toda (!); também tinham cachorros bravíssimos que corriam atrás dos moleques que se arriscavam a roubar ameixa ou uvaia das árvores mais próximas. Não que eles fizessem a menor questão das frutas; elas caíam no chão e aprodreciam. Era a invasão que eles não toleravam.
Tanta história, tanta…
Parece que eu só falei de problemas – ops, é verdade – mas, como sempre acontece, o que era uma baita dor de cabeça lá atrás vira lembrança divertida décadas depois. E havia muito mais coisas legais na casa e na vila onde eu cresci. Éramos muitas crianças e a vila era nosso quintal compartilhado. Às vezes meninos e meninas brincavam separados, às vezes todos juntos. De “saquinho” (ou Cinco Marias), pular elástico, pular corda, Aumenta-aumenta, Pega-pega, Esconde-esconde, Duro-ou-mole, Passa-passa-três-vezes, Amarelinha, Caracol, Casinha, Escolinha, Mês, Passa-Anel, restaurante, Estátua, Mãe-da-Rua, teatrinho, bicicleta, jornal.
Também jogávamos bola, muito. Taco, Paredão (chute a gol – na parede do prédio da esquina), volei (com uma corda amarrada a um portão de um lado, uma grade de janela do outro). Mas os esportes “nacionais” da vila eram Stop (ou Alerta) e, principalmente, QUEIMADA. Eram jogos épicos… Especialmente quando eram meninos contra meninas. Eles eram mais fortes; nós éramos muito ágeis. Eu era forte também rs. Fui muitas vezes a principal jogadora do time – a última a ser queimada ou a vencedora. Inclusive quando do outro lado só tinha sobrado o Reneé (acho que era assim) ou o Humberto, os mais fortes entre eles. Quem perdia pagava picolé de maçã para os outros. Ou se sujeitava a um banho de esguicho – como se não quiséssemos todos tomar banho de água fria… Maior farra.
O Reneé foi minha primeira paixão avassaladora. Coração disparava, sangue nas bochechas dedurava o sobressalto. Eu ficava muito vermelha. Nossa, como eu queria impressioná-lo. Foi meu primeiro beijo – na Vila… – no dia do meu aniversário (de 13 anos, eu acho).
A Cuca era minha amiga inseparável. A Denise, um pouco mais velha que nós duas, também era bem chegada – mas ela era mais próxima da Andrea, a primogênita da família argentina da casa 19. A mãe delas, Dona Suzana, gritava o nome das três na hora do banho: AndreaDianaLaura! Aliás, era um sarro imitar o jeito de cada mãe chamar o seus.
Eu era feliz, muito feliz na minha casa. Sala, cozinha, 2 quartos, um banheiro, um mínimo quintal (pra mim era enorme), lavanderia, quarto de empregada. De lá eu saía correndo para pegar o ônibus para o Colégio quando estudava à tarde e saía bem cedo quando já estudava de manhã. Lá comemorei vários aniversários. Para lá voltei da maternidade quando tive minha primeira filha (ainda não tinha me casado com o pai dela). Estudei piano, tive cães, um coelho, porquinhos-da-índia. Namorei… Ouvi muito Beatles e Queen, Police e Carpenters – na vitrola, no rádio AM/FM ou no toca-fitas. Ou os discos do Ray Coniff do meu pai. Chorei muito na hora de dormir, pensando “minha mãe vai morrer um dia”. FIz lição-de-casa. Briguei (muito) com a minha mãe. Brinquei e briguei com meu irmão, mais do que com a irmã caçula. Passei muitas tardes com a minha avó, na segunda à noite comíamos a pizza que meu avô trazia enquanto eu assistia Satiricon ou outro programa do Jô.
Naquele sobradino cor-de-rosa, eu era bem feliz. E eu sabia.
*Livro da Lucilia Junqueira de Almeida Prado em que a ficção era quase tão legal quanto nossa vida ali
Soninha Francine já foi vereadora em São Paulo, hoje faz parte do partido PPS, escreve na revista Vida Simples e edita um blog na Folha Online.
Nenhum comentário:
Postar um comentário