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quarta-feira, 12 de setembro de 2012

"O Brasil é rico em conteúdo, mas pobre na criação de meios de distribuir esse conteúdo..."


ENTREVISTA - 12/09/2012 11h20 - Atualizado em 12/09/2012 11h33
TAMANHO DO TEXTO

“Não há como conteúdo ser totalmente grátis”, diz Francis Gurry, executivo de agência da ONU

O australiano da agência da ONU que defende as patentes e os direitos autorais considera o Brasil “rico em conteúdo”, mas pobre na criação de meios de distribuir esse conteúdo

Francis Gurry, executivo de agência da ONU (Foto: Divulgação)
MARCOS CORONATO
Quando as fabricantes de eletrônicos Apple e Samsung trocam acusações de cópia e se engalfinham nos tribunais mundo afora por causa de patentes, elas estão: A) buscando o máximo de retorno financeiro por suas criações e, assim, garantindo fundos e incentivo para as próximas melhorias e invenções que vão beneficiar o consumidor ou B) 
arriscando-se a desperdiçardinheiro, tempo e energia numa tentativa de extrair vantagens de detalhes técnicos pouco relevantes, o que poderá retardar as próximas melhorias e invenções e, assim, prejudicar o consumidor?
Se você tem uma resposta pronta, parabéns. O diretor-geral da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), Francis Gurry, não tem essa sorte. Embora seja especialista no tema, ele admite ter dúvidas sobre quais serão as consequências, para a inovação e o consumidor, das guerras judiciais entre companhias. A OMPI se autodefine como a agência da ONU responsável por estimular a inovação e a criatividade, mundo afora, por meio de um sistema de propriedade intelectual equilibrado e que funcione. Gurry vê progressos nessa causa dificílima e acha que os sistemas de patentes e direitos autorais ainda poderão ser usados em favor de países como o Brasil, sem tradição em criar tecnologia nem marcas globais. O jurista australiano e o presidente do Instituto Nacional de Propriedade Intelectual, Jorge Ávila, eram dois dos palestrantes esperados para o seminário PI & Esportes, marcado para 12 e 13 de setembro, no Rio de Janeiro, a fim de debater o legado econômico a ser deixado no Brasil pela Copa e pela Olimpíada. Antes de viajar para o Rio, Gurry conversou com ÉPOCA.
ÉPOCA - Há uma guerra sobre patentes em andamento no setor de tecnologias da informação e de telecomunicações – o exemplo mais recente é o da disputa entre AppleSamsung. Essa guerra não atrapalha a inovação?
FRANCIS GURRY - 
Depende do jeito que você olha para o que está acontecendo. Acho que três fatores ajudam a explicar, em certa medida, a guerra de patentes no setor de tecnologias da informação e comunicação: há evidência de que esses períodos de litigância mais intensos ocorrem toda vez que surge uma tecnologia importante. É mais ou menos normal que haja um nível crescente de disputas em torno de inovações fundamentais. Por exemplo, isso ocorreu com a indústria química no final do século XIX.


No setor de tecnologias da informação e comunicações, especificamente, esse é um momento do jogo em que as empresas têm de fazer as suas apostas. Algumas companhias estiveram investindo em pesquisa e desenvolvimento nesse setor por 30 anos. Então chegam novos jogadores, como o Google, e aproveitam os investimentos feitos pelos antigos jogadores, ou compram empresas e partes de empresas a fim de ter acesso a uma tecnologia ou conjunto de tecnologias. E há um monte crescente de evidências de que a competição, no futuro, se dará em cima da superioridade na capacidade de inovar. Inovação é o campo de batalha. Há consenso global sobre o valor da inovação para o crescimento, criação de empregos, melhora da qualidade de vida. Quando vemos o nível atual de disputa, estamos vendo a confirmação de que inovação é a base para a competitividade no futuro.
Os motivos ajudam a entender a guerra de patentes, mas volto à sua pergunta: isso é bom ou ruim para a inovação? Eu não tenho como responder essa pergunta no momento. Temos de observar o impacto [da guerra] e ser vigilantes para garantir que as patentes estão servindo bem à inovação.
ÉPOCA - A disputa entre Apple e Samsung faz parte dessa tendência?GURRY - Acho que sim. É parte de um movimento maior. Há uma enorme disputa por causa do valor do mercado de dispositivos móveis.
ÉPOCA - Há um nível de disputa que possamos considerar aceitável ou adequado?GURRY - Não há uma resposta para isso. Mas há diferenças no jeito de cada cultura enxergar essas disputas. Há sociedades menos litigantes, como o Japão e outros países orientais, que tendem a tentar resolver os conflitos com negociação e usando mediação. E há outras sociedades mais litigantes – a primeira coisa que alguém faz é processar você, em vez de conversar com você. Os Estados Unidos são uma sociedade muito litigante.
ÉPOCA - Há anos, a indústria farmacêutica é alvo de críticas, segundo as quais as empresas se dedicam mais a driblar o sistema de propriedade intelectual e prorrogar suas patentes e menos a inovar de verdade. Essa crítica é pertinente?GURRY - Uma das questões sociais mais complexas da atualidade é como lidar com patentes relacionadas a saúde. Seremos 9 bilhões de pessoas no mundo até 2050 e vamos precisar ser mais inventivos que os micróbios. Precisamos de um ambiente de negócios que garanta o investimento em inovação em saúde. Hoje, as empresas nos Estados Unidos apresentam o maior nível de investimento em pesquisa e desenvolvimento nesse setor, seguidas pela finlandesas.
Mas sabemos que o setor afeta as vidas das pessoas. Não tem sentido haver inovação em saúde, se as pessoas não conseguem se beneficiar dela.
Temos de buscar o equilíbrio – conseguir um nível adequado de investimento pelas empresas, sabendo que elas não investirão a troco de nada, e compartilhar a inovação, num sistema com justiça social.
Não acho que haja respostas curtas e fáceis. Há empresas que tentam jogar com o sistema? É claro que sempre haverá companhias que tentarão fazer isso. O setor inteiro faz isso? Não. Devemos tomar cuidado com generalizações e olhar para as situações individuais, práticas, específicas. Se houver um abuso, lidaremos com ele.
ÉPOCA - O sistema de propriedade intelectual vai conseguir, em algum momento, dar benefícios concretos a países e grupos étnicos por sua riqueza cultural, se essa riqueza for aproveitada num modelo de negócios?GURRY - Sim. Acho que já está acontecendo, mas é uma situação complexa. Estamos numa revolução digital cujas implicações são tão profundas quanto o advento da imprensa. É uma revolução na democratização da informação. Muitos países em desenvolvimento, como o Brasil, são ricos em criação de conteúdo, mas pobres em [criação de tecnologia de] distribuição. Por conteúdo, quero dizer qualquer coisa que seja possível transmitir, como música, filmes, literatura. Numa generalização, devo dizer que a maior parte da inovação hoje está na distribuição, como na internet e nos modelos de negócios construídos na internet. Até agora, a revolução digital trouxe muitas vantagens para as tecnologias de distribuição e seus provedores, e menos vantagens para os criadores de conteúdo. Temos de garantir que haja inovação também do lado do conteúdo – é onde estão os músicos, compositores, artistas. Temos de ser muito cuidadosos para reformular a arquitetura legal do mundo analógico no ambiente digital. Essa transição vai acontecer como resultado de política pública ou de evolução do mercado, de darwinismo de mercado? Vai acontecer com governos e formuladores de políticas, que tentam equilibrar os interesses dos envolvidos, ou apenas com novos modelos de negócio? Já vimos alguns exemplos positivos de modelos de negócios, como serviços de streaming ou downloads, como iTunes (a loja digital da Apple para baixar conteúdo pago) e Spotify (serviço de música por streaming, sem necessidade de baixar conteúdo, que cobra assinaturas dos usuários que não quiserem ver ou ouvir publicidade). Não estamos mais no estágio em que estávamos há dez anos, quando os donos do conteúdo diziam “não queremos essa coisa de internet”. Mas essa é uma questão que temos de enfrentar: não há como conteúdo ser totalmente de graça. É possível tecnologicamente, mas não economicamente. Artistas, músicos, compositores e escritores têm de comer. Eles têm de ser pagos pelo que produzem.

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