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segunda-feira, 7 de abril de 2014

"A vida é assim, simples assim; gestos eternos surgem do nada." / Dois gestos / Ricardo Setti

05/04/2014
 às 19:00 \ Política & Cia

Roberto Pompeu de Toledo: Dois gestos

Bellini-placar
Bellini, o inesquecível capitão da Seleção de 1958, e o gesto que imortalizou (Foto: Placar)
Artigo publicado em edição impressa de VEJA

DOIS GESTOS

Hideraldo Luís Bellini e Adolfo Suárez González, dois personagens falecidos nas últimas semanas, tinham em comum o fato de se terem congelado cada qual em um gesto célebre.
Hideraldo Luís Bellini, para quem não está ligando o nome à pessoa, é o Bellini capitão da seleção brasileira de 1958, a primeira a ganhar a Copa do Mundo. Seu gesto foi estender os braços e erguer a taça acima da cabeça, traduzindo a conquista em efígie épica.
Adolfo Suárez é o político espanhol que, em 1976, foi nomeado primeiro-ministro (ou “presidente de governo”, como se diz por lá) pelo rei Juan Carlos com a delicadíssima missão de conduzir a transição da ditadura do general Francisco Franco para a democracia.
Seu gesto foi, cinco anos depois, quando um bando de estouvados golpistas invadiu as Cortes (o Parlamento espanhol), começou a atirar a esmo e mandou os deputados se deitar no chão, ter permanecido teimosamente sentado, “sozinho, estatuário e espectral”, como descreveu o escritor Javier Cercas, autor de brilhante livro sobre o assunto (Anatomia de um Instante), enquanto os outros rastejavam atrás das bancadas.

Durante a tentativa de golpe contra a democracia na Espanha, Adolfo Suárez (à esq.) enfrentou os militares golpistas que acossavam seu vice para assuntos de Defesa, o general Gutierrez Mellado (Foto: EFE)
Durante a tentativa de golpe contra a democracia na Espanha, em 1981, Adolfo Suárez (à esq.) enfrentou no plenário do Parlamento os militares golpistas que acossavam seu vice para assuntos de Defesa, o general Gutierrez Mellado (Foto: EFE)
[Suárez teve um segundo gesto, que merece ser lembrado: ao ver que militares golpistas, armados, agarravam seu vice para assuntos de Defesa, o septuagenário general da reserva e deputado Gutierrez Melado, afastou-os no grito.]
Há estranhas coincidências na vida desses dois homens tão diferentes, de países diferentes e de universos diferentes como o esporte e a política.
Ambos, para começar, eram considerados medíocres no que faziam. Bellini impunha-se nos gramados pelo porte físico. Todos os companheiros da seleção de 1958 eram tecnicamente melhores do que ele.
Adolfo Suárez foi péssimo estudante, formou-se em direito aos trancos e barrancos e ascendeu na política à custa de espertezas.
Bellini foi escolhido capitão porque era zagueiro (reza a cartilha do futebol que zagueiros dão melhores capitães), porque era branco (em 1958 vigia a lenda de que o Brasil perdera as copas anteriores por excesso de negros no time) mas também porque era um homem reto e tinha espírito de liderança.
Adolfo Suárez, “o protótipo perfeito do arrivista que a corrupção generalizada do franquismo criou”, segundo Javier Cercas, nem fama de homem reto tinha ao ser escolhido para o cargo. Causou surpresa e desconfiança que um homem com raízes no passado ditatorial tivesse sido incumbido de conduzir o processo destinado à democratização.
Os dois se superaram em seus papéis.
Bellini foi o capitão exemplar. Se não tinha a técnica, encarnou o empenho e a entrega ─ a “raça”, como se diz no futebol, que também foi característica daquele time, e de outros times que defendeu. Virou o paradigma do capitão no futebol brasileiro.
Suárez, para completa surpresa dos compatriotas, assumiu em sua inteireza a nova persona de democrata e com coragem e habilidade, além das habituais espertezas, levou a bom termo a missão. Tanto grudou em sua pessoa a causa da democracia que até se arriscou por ela, naquele fim de tarde nas Cortes, com seu gesto solitário, enquanto as balas zuniam.
O gesto de Bellini não teve perigos a cercá-lo, mas coincide com o de Suárez na solidão que igualmente o caracteriza. Levantar a taça virou praxe, depois que ele inventou tal procedimento, mas foi assumindo novas feições.
Hoje não é mais um gesto solitário. Depois de erguida pelo capitão, a taça vai passando de mão em mão entre os demais jogadores, enquanto todos pulam, gritam e cantam. O que era celebração de triunfo em modo hierático como de general romano virou carnaval.
Por que Bellini levantou a taça? “Porque todos queriam vê-la e fotografá-la”, respondeu mil vezes o capitão.
Por que Suárez se manteve sentado? “Porque um presidente de governo não deve nunca deitar-se ao chão”, respondia o dirigente espanhol.
A vida é assim, simples assim; gestos eternos surgem do nada. Os dois gestos tiveram significado profundo e duradouro para as respectivas pátrias. O de Bellini simbolizou a vitória sobre o complexo de vira-latas. O de Suárez tornou-se a expressão da altivez e da coragem que contribuíram para a consolidação da democracia.
Uma última coincidência entre os dois homens é que ambos viveram os anos finais fulminados pela tragédia da doença de Alzheimer, sem reconhecer os parentes, escondidos em seus cantos, sem saber nem mesmo quem eram, e muito menos lembrar-se de que um dia protagonizaram gestos que ficaram para a história.
A vida também é assim.

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